Avanços na América Latina
Os países da América Latina têm sido palco de intensas mudanças nos mecanismos de defesa do consumidor nos últimos tempos. Leis estão sendo criadas ou reformuladas para garantir os direitos dos cidadãos no contexto de avanços tecnológicos e de novos estilos de vida. Parte delas visa a fortalecer os órgãos governamentais e as entidades civis de defesa do consumidor, bem como as instâncias administrativas e judiciais para a resolução de conflitos. Além disso, destacam-se as iniciativas para frear o consumo excessivo de alimentos não saudáveis. Diante desse novo cenário que se desenha, conversamos com Juan Trímboli, diretor da Consumers International (CI) para a América Latina e Caribe, a fim de conhecer as principais questões em discussão e saber em que ponto o Brasil se situa nele. Formado em Sociologia e com licenciatura em Ciências Políticas, o uruguaio Trímboli faz parte da equipe que fundou o escritório da organização mundial na região, em 1988, com sede no Chile. De lá, ele concedeu esta entrevista por e-mail.
Idec: A Argentina aprovou recentemente uma reforma na lei de proteção ao consumidor e um projeto com a mesma finalidade está em discussão no Chile. Quais são os principais pontos de cada um deles?
JUAN TRÍMBOLI: No caso da Argentina, o mais relevante é a adoção do Sistema de Resolução de Conflitos nas Relações de Consumo, que compreende a criação do Serviço de Conciliação Prévia nas Relações de Consumo (Coprec) e de juizados específicos para o tema. O Coprec funcionará como uma instância de conciliação obrigatória para todas as reclamações de consumidores registradas junto aos órgãos governamentais. Se a conciliação for bem-sucedida, é firmado um acordo, que deve ser aprovado pela agência de proteção ao consumidor. Se não, o consumidor pode optar por continuar na via administrativa, por meio de uma Auditoria das Relações de Consumo, ou apresentar a demanda aos juizados.
No projeto chileno, o foco é fortalecer o Serviço Nacional do Consumidor (Sernac), conferindo-lhe poderes para punir com multas e determinar a restituição de encargos abusivos, por exemplo. Ao mesmo tempo, o Sernac passaria a ter o poder de interpretar os regulamentos, emitir instruções gerais e realizar mediações coletivas. O projeto inclui ainda medidas para fortalecer as organizações de consumidores, abrindo espaço para a venda de serviços, por exemplo, para apoiar a sua viabilidade financeira, e a possibilidade de demandar judicialmente a reparação de danos morais, que até agora era uma restrição injustificada.
Idec: O Código de Defesa do Consumidor (CDC), em vigor há mais de 20 anos no Brasil, já foi considerado uma das leis mais avançadas do mundo. Qual é o panorama dos outros países latino- americanos hoje e como a legislação brasileira se situa nele?
JT: De fato, o CDC foi uma lei avançada para seu tempo. Enquanto a maioria dos países desenvolvia timidamente uma estrutura legal de defesa do consumidor, a lei brasileira tinha conceitos revolucionários, como a responsabilidade objetiva e solidária, assim como as ações coletivas. Nos dias atuais, as leis de defesa do consumidor na América Latina vêm avançando muito e o Código brasileiro tem sido um modelo a se espelhar. No entanto, hoje já há leis tão avançadas quanto a do Brasil e, em alguns casos, novas fronteiras vêm sendo colocadas. Por exemplo, o caso do Peru, que sancionou um código faz quatro anos, e o da Colômbia, que fez uma reforma na legislação recentemente. Como o CDC brasileiro não foi modificado de forma substancial desde sua aprovação, ele não abarca temas como o superendividamento e o comércio eletrônico, que estão presentes em outras legislações latino- -americanas. Além disso, em questões como o apoio financeiro às organizações de consumidores por parte do Estado, o Brasil ainda está em dívida.
Idec: Além de legislação, como são as estruturas e os órgãos estatais de defesa do consumidor nos países latino-americanos? Quais são os exemplos mais bem-sucedidos?
JT: Há vários exemplos de sucesso nos países da região. Sem dúvida, o Brasil é um deles, sobretudo com a criação da Secretaria Nacional do Consumidor [Senacon] e do desenvolvimento de uma política nacional de consumo, potencializada a partir do Plandec [Plano Nacional de Consumo e Cidadania, lançado em março de 2013]. O caso da Profeco [Procuradoria Federal do Consumidor], no México, também é bem interessante, pois é um órgão governamental com muitos poderes e recursos para realizar seu trabalho. O mesmo se pode dizer do Indecopi [Instituto Nacional de Defesa da Concorrência de Proteção da Propriedade Intelectual], no Peru, ou do Sernac, no Chile. Um dado importante é que têm sido criados na região órgãos como o Instituto Pró- Consumidor, na República Dominicana, ou a Defensoria do Consumidor, em El Salvador, que são autônomos, e isso lhes dá dimensão e relevância muito fortes.
Idec: Recentemente, entrou em vigor no Equador uma lei pioneira que obriga o uso do semáforo nutricional no rótulo dos alimentos. Como foi possível aprovar e fazer valer essa lei, considerando o poder de influência das multinacionais do setor?
JT: Não foi fácil. Houve muita resistência por parte da indústria, que conseguiu afrouxar alguns dispositivos do regulamento. Por exemplo, o semáforo é disposto na lateral da embalagem, e não na parte frontal, como inicialmente estabelecido; os prazos para implementação foram prorrogados; e as empresas também conseguiram retirar a proibição ao uso de figuras, como o tigre Tony [da marca Kellogg’s] e outros personagens que atraem o público infantil, grupo com alto índice de obesidade e sobrepeso no Equador e em toda a América Latina.
Apesar disso, o mais relevante é que os consumidores equatorianos agora contam com uma rotulagem mais eficiente para indicar se um produto é rico em gorduras, açúcar ou sal. Trata-se de um grande avanço para o país e para toda a região. Grandes indústrias, como a Coca-Cola, estão cumprindo esta obrigação, sob pena de cassação definitiva de seu registro sanitário. Na onda mundial contra a obesidade, a indústria tem de repensar suas ações para atender às necessidades e expectativas de consumidores cada vez mais informados e preocupados com sua saúde. A indústria no Equador pode ver o semáforo nutricional como uma oportunidade.
“NA ONDA MUNDIAL CONTRA A OBESIDADE, A INDÚSTRIA DE ALIMENTOS TEM DE REPENSAR SUAS AÇÕES PARA ATENDER ÀS NECESSIDADES E EXPECTATIVAS DE CONSUMIDORES CADA VEZ MAIS INFORMADOS E PREOCUPADOS COM SUA SAÚDE”
Idec: A lei equatoriana regulamenta ainda a rotulagem de transgênicos, medida também obrigatória no Brasil, mas restrita a poucos países no mundo. Por que há tanta dificuldade em fazer que o direito à informação seja respeitado nesse caso?
JT: A maior razão é o lobby das indústrias. Sabemos que há interesses escusos – muito denunciados, como o poder de influência e o alcance que tem a multinacional Monsanto – que têm impedido que se privilegie o princípio da precaução e o direito à informação. Muitos produtos teriam de modificar seu rótulo, mencionando a origem de seus ingredientes, com a possível consequência de que os consumidores prefiram outros alimentos – uma boa consequência para preservar o princípio da precaução, mas nada interessante para os negócios das multinacionais do setor.
Idec: No ano passado, a ONU alertou para o aumento da obesidade na América Latina e Caribe, que já atinge 23% da população da região. Em sua opinião, os governos locais estão agindo a contento para combater esse problema? Quais iniciativas nesse sentido o senhor destacaria?
JT: A obesidade é um problema sério em nossa região. Por isso é tão importante o plano para combater a obesidade e o sobrepeso infantil recém-aprovado pelos governos da América Latina e do Caribe na 53a reunião do Conselho da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), realizada em setembro. Esse plano é um marco histórico, pois deve ser traduzido em políticas públicas efetivas contra essa epidemia, que tem afetado cada vez mais os jovens.
Antes disso, houve uma série de iniciativas importantes na América Latina, como o imposto sobre bebidas açucaradas e alimentos não saudáveis no México. Uma boa lei sobre rotulagem e publicidade de alimentos não saudáveis também foi adotada no Chile, mas a sua regulamentação ainda não foi aprovada. O Peru tem situação similar: sancionou uma boa lei sobre alimentação saudável, mas os regulamentos propostos são tão ruins que a Opas enviou ofício à Comissão expressando a sua preocupação.
Um aspecto importante da situação alimentar em nossa região é que alguns países da América Central e do Caribe são confrontados com um aumento da taxa de obesidade ao mesmo tempo em que parte da população passa fome. Em El Salvador, por exemplo, as organizações-membro da CI cobram uma reforma constitucional que reconheça a alimentação como direito humano.
Idec: Quais são os principais desafios para fortalecer a defesa do consumidor latino-americano e como a CI tem atuado para atingir esses objetivos?
JT: Os desafios são muitos e de natureza diferente. Vou priorizar dois deles. Nas últimas décadas, o mapa de proteção dos consumidores na região mudou favoravelmente. Houve avanços importantes na lei e no acesso à Justiça, na extensão de normas para a regulação de serviços públicos, entre outros. Nenhum desses avanços teria sido possível sem a existência e o trabalho das organizações de consumidores. Portanto, o desafio para a CI é reforçar a capacidade institucional das organizações- membro na região. A CI tem centros de recursos para o fortalecimento institucional [das organizações], faz treinamentos online, informa sobre as oportunidades de financiamento e sobre experiências bem-sucedidas. Além disso, busca facilitar o contato e a comunicação entre os membros, com o objetivo de maximizar o potencial desta rede global de organizações. Um segundo desafio, que está intimamente ligado ao primeiro, é melhorar a força e a qualidade das nossas campanhas globais e regionais, a fim de colocar nas agendas nacionais questões relevantes para os consumidores, de modo a projetá-las em políticas públicas que beneficiem os interesses da sociedade em geral. É preciso saber como combinar essas campanhas com as prioridades locais e conseguir que elas se reflitam nos programas e atividades de cada uma das organizações.