Mídia: regular para democratizar
A regulação dos meios de comunicação é um assunto que vai e vem e invariavelmente está presente no período eleitoral. Apesar de frequente, é comum que a discussão seja reduzida à tentativa de censura e de restrição da liberdade de expressão. Argumentos que desconstroem essa ideia existem, mas dificilmente têm espaço nos tradicionais veículos de comunicação — afinal, eles são parte interessada e, em geral, partilham da ideia comum no setor empresarial de que quanto menos regras, melhor.
Mas menos regras para a mídia é pior para a democracia, na opinião de Bia Barbosa, coordenadora da organização Intervozes, que atua pelo direito à comunicação no Brasil. Jornalista especialista em Direitos Humanos e mestre em Políticas Públicas, Bia Barbosa explica, a seguir, porque atualizar o marco regulatório das comunicações no Brasil é fundamental para garantir mais — e não menos — liberdade de expressão.
Idec: É possível regular os meios de comunicação sem praticar censura?
BIA BARBOSA: A censura, entendida como o controle a priori por parte do Estado do que vai ser divulgado, é uma forma de regulação, mas o inverso não é verdadeiro. Nem toda forma de regulação é necessariamente censura. Há países de democracia bem mais consolidada que a brasileira que têm regulações robustas das comunicações. É o caso dos Estados Unidos, França, Espanha, Portugal, Austrália e muitos outros. Aqui no Brasil também há mecanismos de regulação, o problema é que eles estão defasados.
Idec: Quais são os principais aspectos do marco regulatório brasileiro que precisam ser atualizados?
BB: A principal lei que rege o setor hoje, o Código Brasileiro de Telecomunicações [CBT], tem mais de 50 anos de idade. O avanço tecnológico vivido nas últimas cinco décadas exige uma atualização do marco regulatório.
Além disso, o Brasil aprovou em 1988 uma Constituição que estabelece princípios para os meios de comunicação, porém, o capítulo que trata desse tema até hoje não foi regulamentado. Não há leis específicas para colocar em prática os princípios constitucionais estabelecidos para a mídia. O artigo 220, por exemplo, prevê que o sistema de comunicação não pode ser objeto de monopólio. Só que não se definiu em nenhuma lei o que significaria monopólio das comunicações no país. A concentração que existe nas organizações Globo configura monopólio? Precisamos fazer esse debate, pois não há lei que defina isso.
Idec: Há duas formas de regulação dos meios de comunicação: a econômica e a de conteúdo. Qual é a diferença e a importância de cada uma?
BB: A regulação econômica diz respeito a regras sobre a propriedade dos meios de comunicação. Há várias formas de se fazer isso. Nos EUA, há normas que proíbem o que se chama de "propriedade cruzada", ou seja, grupos que controlam outorgas de rádio e televisão não podem controlar jornais e revistas; os que controlam jornais e revistas não podem controlar telecomunicações etc. Os EUA, país altamente liberal, entenderam que a concentração é prejudicial para a diversidade cultural e para o pluralismo político e, portanto, prejudicial para a democracia.
Já a regulação de conteúdo é a análise do que está sendo veiculado e a fixação de regras para tal. É diferente de censura porque visa a estabelecer parâmetros gerais para o conteúdo, e as emissoras podem livremente veicular programas adaptados a eles. Não é que um órgão do governo vai assistir ao conteúdo previamente e decidir se ele pode ir ao ar, como acontecia na Ditadura Militar. Há vários exemplos de regulação de conteúdo que já existem no Brasil, como a regra que prevê que as emissoras veiculem pelo menos 5% de conteúdo jornalístico e a classificação indicativa.
Idec: A limitação à concentração de mercado seria suficiente para garantir mais pluralidade de informações e de representação na mídia?
BB: A quebra da concentração das propriedades é um caminho para aumentar a diversidade, mas ela não será de fato garantida se não houver fortalecimento do sistema público de comunicação. Por mais que haja diversidade nos meios comerciais, a finalidade dessas emissoras é diferente da de uma pública ou comunitária.
Também é possível prever mecanismos de conteúdo que favoreçam a diversidade. Um exemplo bastante desenvolvido na Espanha e em Portugal é o chamado "direito de antena". Na Espanha, a grade de programação de um canal é fatiada para a veiculação de programas da sociedade civil organizada: a ordem dos advogados tem o seu programa, o conselho de medicina, o movimento sem teto etc. Além da radio-difusão, pode-se pensar em políticas públicas de fomento à mídia alternativa impressa ou na internet. A França tem um fundo público para jornais regionais, por exemplo.
Idec: Qual é a diferença entre sistema "público" e "estatal" de comunicação?
BB: As emissoras estatais são aquelas diretamente vinculadas ao poder público, legislativo e judiciário, como a TV Câmara, a TV Justiça etc. Já o sistema público inclui as emissoras educativas, as comunitárias, as universitárias etc.
O sistema público de comunicação precisa ter autonomia financeira e editorial para garantir que o interesse público seja o guia condutor de sua programação. Essa definição está muito distante da realidade brasileira. A TV Cultura [emissora educativa estadual], por exemplo, depende essencialmente do orçamento do governo do Estado de São Paulo, assim como a EBC [Empresa Brasileira de Comunicação] depende do orçamento do governo federal. Quando se depende do orçamento de um governo, ele pode influenciar na programação veiculada.
Idec: Existem muitos projetos de lei que tratam da regulação da comunicação no país. Qual tem sido o grande impedimento para que eles avancem no Congresso?
BB: Quando existe vontade política, ela é barrada pelo poder dos grandes grupos de comunicação que querem deixar o mercado como está. Além disso, cerca de um terço do atual Congresso está vinculado direta ou indiretamente à concessionárias de rádio e de televisão – são parlamentares parentes de radiodifusores ou radiodifusores em si, que estão lá para defender interesses próprios e impedem que qualquer tentativa de tornar o sistema mais democrático avance. É um desafio muito grande, pois a atualização do marco regulatório precisa passar pelo Congresso, mas sabemos que ele hoje é altamente resistente.
Idec: A iniciativa de atualizar o marco regulatório não pode partir do Executivo?
BB: Pode, mas o Executivo deve propor um projeto de lei (PL), que também passa pelo Congresso. No final do segundo mandato do governo Lula, o então ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Franklin Martins, elaborou um PL sobre o tema, que foi entregue na transição para o governo Dilma. Estamos no fim do governo Dilma e esse projeto nunca veio a público. Isso mostra mais um desafio, porque temos um Congresso que não está interessado na mudança e um Executivo que não está disposto a comprar essa briga, porque sabe do enfrentamento que vai ter com os grandes grupos de comunicação. Nos países vizinhos que recentemente fizeram a mudança [na regulação do setor] – além da Argentina, a Bolívia, o Uruguai e a Venezuela também fizeram – havia vontade do Executivo em promover esse debate. Aqui, só com muita pressão da sociedade é que vamos conseguir mudar o marco regulatório. Por isso, a sociedade civil criou um projeto de lei de iniciativa popular para propor um novo marco regulatório, que está em fase de recolhimento de assinaturas em todo o país.
Idec: Como você mencionou, há muitos parlamentares donos de veículos de comunicação no país. Essa situação influencia as eleições?
BB: Sem dúvida. A Constituição proíbe que detentores de cargos eletivos tenham contrato com empresas de concessão pública porque claramente pode haver favorecimento. No caso das comunicações, esse impacto é ainda maior, porque envolve veiculação de informação e formação da opinião pública.
O Intervozes entrou com uma ação no STF [Supremo Tribunal Federal] para obrigar os parlamentares a se desfazer das emissoras que detêm. Sabemos que isso resolveria apenas parte do problema, porque há uma série de políticos que colocam laranjas para tomar conta dessas emissoras. Esse é um desafio ainda maior para fiscalizar. Mas no caso das emissoras que são diretamente controlada por políticos é fácil agir. Na nossa ação, listamos 40 parlamentares da atual legislatura que têm várias outorgas de rádio ou de televisão em seus estados. Os casos mais conhecidos são o da família Sarney no Maranhão, Collor em Alagoas, do Jader Barbalho no Pará e da família ACM na Bahia, mas essa prática é disseminada em todos os estados, o que é muito prejudicial para a nossa democracia. Esperamos que o Supremo dê uma decisão favorável para começarmos a mudar esse quadro.
Idec: Quais são os principais exemplos de regulação da mídia que deram certo em outros países e que se aplicariam à realidade brasileira?
BB: A norma de propriedade cruzada dos EUA, por exemplo, seria interessante para o Brasil; as regras sobre sistema público de comunicação da França e da Inglaterra; as de fomento à comunicação comunitária da Argentina; o exemplo de Portugal e da Espanha em relação ao direito de antena e da Suécia em relação à publicidade infantil. Há muitos exemplos que deram certo e que podem inspirar o Brasil. O mais importante é que eles mostram que a regulação é fundamental para garantir que o exercício da liberdade de expressão seja do conjunto de toda a população, e não só de quem controla a propriedade dos meios. Temos o desafio de desconstruir o mito de que regulação significa censura e, mais do que isso, esclarecer que a regulação precisa existir para garantir mais diversidade, mais liberdade – para garantir que mais vozes possam se expressar.
• Conheça o Projeto de Lei de Iniciativa Popular sobre o tema: http://www.paraexpressaraliberdade.org.br/