O Ministério Público e o Consumidor
O Ministério Público Estadual de São Paulo (MP-SP) acaba de reativar o Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva (CAO – Consumidor), instância que organiza o trabalho das promotorias de defesa do consumidor e é responsável pelo planejamento, pela articulação com outros órgãos e pela identificação dos assuntos que merecem a atenção do Ministério. O CAO havia sido integrado a um centro de apoio mais amplo, que englobava todos os mecanismos de tutela coletiva. Recentemente, porém, ele ganhou vida própria novamente e voltará a cuidar apenas de defesa do consumidor.
Para entender melhor a atuação do MP-SP na defesa do consumidor e saber quais são os desafios da CAO, conversamos com o seu novo coordenador, Vidal Serrano Nunes Júnior, nomeado em julho. Procurador de Justiça do MP-SP e professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Serrano era também conselheiro do Idec, função da qual se licenciou para assumir o cargo na CAO. Confira, a seguir, a entrevista.
Idec: Qual é o papel do Ministério Público na defesa do consumidor?
VIDAL SERRANO NUNES JR: A Constituição estabelece que o Ministério Público (MP) tem que se dedicar fundamentalmente à defesa dos direitos individuais indisponíveis e direitos sociais relevantes. Ou seja, o MP não atua em qualquer caso relacionado à defesa do consumidor, mas apenas naqueles que possuem características coletivas. Por exemplo, questões relacionadas à segurança de um produto (produtos que possuem vício/erro de concepção e podem causar dano a um número infinito de pessoas) cabem ao MP. Já se um único consumidor teve problema com determinado produto, não. Esse seria um caso para os Procons.
Ao tomar conhecimento de um problema de dimensão coletiva, o MP instaura inquérito civil público, por meio do qual pode expedir requisições, ouvir testemunhas e determinar a realização de perícias. É com essas provas que o promotor forma uma convicção acerca do que aconteceu e, eventualmente, ajuíza uma Ação Civil Pública.
Idec: Quais são as principais diferenças entre os Ministérios Públicos estaduais e o Ministéro Público Federal (MPF)?
VSNJ: O MPF só se envolve em casos em que há interesse ou participação de órgãos federais, por exemplo, em ações ajuizadas contra uma agência reguladora. Se o réu for uma empresa privada, quem entra em ação é o MP estadual.
Idec: Quais são as principais preocupações do CAO nessa nova fase de atuação?
VSNJ: Primeiramente, estabelecer contatos com parceiros, entidades de defesa do consumidor – entre elas o Idec – e com o DPDC [Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor] para formular um plano de atuação. Queremos criar uma espécie de convênio. Assim, quando uma entidade de defesa do consumidor receber uma reclamação que tenha caráter coletivo, ela encaminhará para o MP, que passará a acompanhar o caso. Queremos focar em alguns temas relevantes, como segurança alimentar, comércio eletrônico e planos de saúde.
Idec: Outro tema prioritário para o CAO é a segurança em eventos, certo? O senhor pode explicar por que este é um assunto importante para a defesa do consumidor?
VSNJ: Em São Paulo, ocorrem eventos de grandes proporções (shows, festivais, eventos esportivos, festas universitárias, baladas de grande porte etc.) sujeitos aos mais variados problemas. Já houve eventos em que a questão da segurança fugiu do controle dos realizadores porque é comum que estes sejam realizados sem os cuidados de segurança necessários, como o respeito ao número de pessoas que o local comporta, a adoção de normas de proteção do público, a comunicação sobre o evento à Polícia Militar etc.
Idec: E como o MP-SP atua nesses casos?
VSNJ: Primeiramente, fiscalizando o fiscalizador (município e Estado) para saber se exercem adequadamente o seu papel e verificam se as regras estão sendo cumpridas. Em segundo lugar, expedindo recomendações e, em terceiro, entrando com ações para responsabilizar os realizadores dos eventos que não cumprem as regras de segurança.
Há casos recentes de eventos que não aconteceram após o MP-SP entrar com ação judicial por falta de segurança. Nem sempre isso é divulgado pelos meios de comunicação, mas acontece com certa frequência. Impedir a realização de um evento tem caráter pedagógico porque serve de exemplo para os outros. Mas, para que isso ocorra, tem de ser divulgado.
Idec: Qual é a importância dos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs), firmados entre os MPs e as empresas?
VSNJ: Por meio dos TACs, o MP pode mudar os prazos e a forma de cumprimento da legislação, mas sem negociar o direito em si, diminuir o nível de proteção do consumidor, ou abrir mão de uma prerrogativa prevista em lei. Assim, esses termos acabam sendo muito importantes porque dão efetividade imediata ao que está estabelecido em lei. Quando há a possibilidade de um TAC, ele é sempre interessante e mais eficiente do que a Ação Civil Pública, pois promove a integração dos interesses empresariais e dos consumidores. Além disso, enquanto a ação pode se arrastar por muito tempo, o TAC é uma forma mais rápida de se atingir o objetivo. Muitas empresas são abertas ao TAC porque têm medo de serem processadas.
Idec: No início de julho, governos, bancos e empresas de telefonia assinaram um termo de compromisso para adotar estratégias de mediação com consumidores, a fim de reduzir a enxurrada de processos nos tribunais. O senhor acredita no sucesso dessa medida?
VSNJ: O Código de Defesa do Consumidor [CDC] estimula a autocomposição, ou seja, a resolução do problema pelo fornecedor, evitando, assim, que o consumidor tenha que recorrer a outras instâncias. Estas ficariam responsáveis pelos problemas de maior gravidade, envolvendo, por exemplo, a saúde e a segurança do consumidor.
Se compararmos com o período anterior à elaboração do CDC, sem dúvida as empresas evoluíram na criação de mecanismos de atendimento ao cliente. A mudança não é tão rápida, mas acaba acontecendo. E em alguns setores, essa melhoria é fundamental, como no de saúde, segurança e serviços essenciais (telefonia, energia elétrica, fornecimento de água, planos de saúde e sistema financeiro).
Idec: Os setores financeiro e de telecomunicações foram, mais uma vez, líderes de reclamações no Procon-SP, de acordo com relatório divulgado em março: nove de dez empresas pertencem a esses segmentos. O que precisa ser feito para que elas saiam dessa posição?
VSNJ: A gama de problemas nesses setores é grande, mas é preciso considerar também a quantidade de pessoas que utilizam o serviço de telecomunicação, por exemplo. Os valores precisam ser proporcionalizados. Por serem setores agigantados, há uma espécie de burocracia privada. Quando o consumidor encontra uma irregularidade, nem sempre ele consegue fazer com que sua reclamação chegue à instância competente, porque muitas vezes o atendente do SAC [Serviço de Atendimento ao Consumidor] não tem capacidade para solucionar o problema. Esses serviços de atendimento acabam exercendo mais o papel de dar satisfação do que o de solucionar problemas.
A reinvindicação de consumidores, a mobilização de órgãos de defesa do consumidor, as ações judiciais ajuizadas e a pressão de órgãos reguladores, dos Procons e do DPDC devem gerar melhoria nas empresas.
É diante desse cenário, aliado à vontade da empresa de querer melhorar e preservar a sua marca, que a evolução acaba acontecendo.
Idec: Como o senhor avalia a criação do recém-lançado site de registro de reclamações (www.consumidor.gov.br), nos moldes de outros que já existiam na internet, pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon)?
VSNJ: A ideia do site foi uma iniciativa muito positiva e efetiva do DPDC, que tem se envolvido muito com a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Esse site pode servir como um banco de dados de reclamações e acabar virando uma espécie de referência para entidades de defesa do consumidor, Procons, Ministérios Públicos, ajudando-os a atuar de maneira mais convergente.
Outros sites anteriores de reclamação também funcionam bem, mas são de empresas privadas. Este, por ter sido criado pelo DPDC, um órgão ligado ao Ministério da Justiça, pode ser considerado uma fonte oficial, o que faz com que a ferramenta tenha um poder coercitivo maior no mercado. Vamos aguardar para ver o que acontece, mas foi uma iniciativa muito feliz.
Idec: A lista de produtos essenciais, prometida pelo governo federal, ainda não foi divulgada. Como o MP-SP vê essa demora? Ele tem feito pressão para que ela seja publicada?
VSNJ: Não sei o porquê da demora, mas ela é ruim. Os produtos essenciais têm características diferentes, por isso o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor deve tratar os problemas relacionados a eles de forma distinta. Não dá para dar o mesmo tratamento a um problema com uma peça de carro e ao serviço de fornecimento de água, por exemplo. Por isso a identificação desses produtos e serviços acaba sendo fundamental, inclusive para modular a atuação dos diversos órgãos governamentais e não governamentais que atuam na defesa do consumidor. A pressão desses órgãos para que a lista seja divulgada é muito importante. E os Ministérios Públicos estaduais e o federal também podem pressionar o governo.
O governo deveria liberar uma lista com os produtos sobre os quais já há consenso em relação à essencialidade e, depois, publicar a lista completa, quando os casos mais complicados fossem resolvidos. A lista não precisa ser estanque, ela pode ir crescendo.
SAIBA MAIS
Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva (CAO – Consumidor): http://goo.gl/AHWXu4