Poluição: A Solução é Mobilidade
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a poluição provocou a morte prematura de sete milhões de pessoas em todo o mundo no ano passado. A exposição a níveis elevados de poluentes causa câncer, doenças cardíacas e respiratórias. No inverno, que começa oficialmente dia 21 deste mês, os seus efeitos no organismo são ainda mais perceptíveis, principalmente por quem já é portador de alguma dessas doenças, além de idosos e crianças.
Muito embora seja um problema de saúde pública, a solução para a poluição está fora do campo da medicina: ela depende, fundamentalmente, da melhoria da mobilidade urbana nas grandes cidades. É o que explica o médico Paulo Saldiva, uma das maiores autoridades no tema do mundo. Professor titular do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e membro do Comitê Científico da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard (EUA), Saldiva acredita que os brasileiros estão começando a enxergar que investir em transporte público e desestimular o uso do carro é fundamental. "A redução da poluição será um efeito colateral benigno da melhoria da mobilidade", diz.
Idec: A poluição causa ou agrava as doenças respiratórias?
PAULO SALDIVA: Ambas as coisas, ela causa e agrava. Mas não é só doença respiratória. Hoje, a poluição do ar é considerada pela OMS como "evidência 1" de câncer, a mesma condição atribuída ao amianto e ao cigarro. Lógico que a poluição provoca muito menos câncer do que esses outros dois elementos, mas o número de pessoas expostas é muito maior.
Além disso, a American Heart Association também afirma que a poluição do ar é a causa ambiental mais importante para deflagrar infarto do miocárdio, arritmia fatal e infarto cerebral; o New England Journal of Medicine e o Lancet, as duas revistas de maior impacto na área médica, colocam a poluição como fator importante na redução da expectativa de vida por câncer, doença cardiovascular e respiratória. Costumava-se descaracterizar essas colocações [a respeito dos malefícios da poluição] dizendo que era coisa de "abraçador de árvore", mas não. Os órgãos oficiais da área médica reconhecem essa condição.
Idec: Por que o número de casos de doenças respiratórias aumenta consideravelmente no inverno?
PS: Quando está frio, as mucosas ficam mais espessas, e o risco de doença nas vias aéreas aumenta. Com a baixa umidade, se alguém tossir ou espirrar um vírus, ele fica mais tempo voando. Além disso, no inverno os poluentes atmosféricos têm uma dispersão menor, justamente pela queda de vento e baixa umidade. Esses três fatores são determinantes para as doenças respiratórias.
As doenças cardiovasculares também acontecem com mais frequência, pois, no frio, a pressão arterial aumenta e o sangue fica mais concentrado. Então, quem tem uma coronária "pendurada" ou se o coração já estiver "meio assim", há mais chances de um infarto. Ao mesmo tempo, a poluição também aumenta a pressão arterial e diminui a capacidade de dilatação dos vasos [sanguíneos].
Idec: O que a população pode fazer para evitar os efeitos da poluição à saúde nesse período crítico?
PS: Essa é a pergunta mais frustrante que tenho de responder. Tem algumas medidas, como beber mais água, porque [nesse período] tem-se um aumento da desidratação; adotar uma dieta rica em frutas, verduras e legumes, que garante a ingestão de antioxidantes; evitar os períodos de maior congestionamento, se puder escolher o horário de trabalho; e escolher ir pelas ruas de menor tráfego. Veja, são medidas de defesa que se restringem ao "andar de cima" da sociedade. Quem bate ponto, quem pega o ônibus etc., fica mais exposto. O remédio para a poluição, infelizmente, tem muito pouco a ver com o indivíduo. Ele tem a ver com políticas públicas.
Idec: Em maio, a OMS divulgou que o nível de poluição de São Paulo (SP) em 2013 era duas vezes maior que o aceitável. Como está a situação da cidade em comparação com a de outros países?
PS: Hoje, São Paulo e a maior parte das capitais brasileiras não têm um cenário tão ruim quanto o das cidades chinesas ou indianas, porém ainda têm níveis muito maiores do que as cidades europeias e norte-americanas. O paradoxo é que na Europa e nos EUA se consome muito mais energia, só que ela é obtida de maneira mais limpa.
Podemos dizer que o Brasil saiu da terceira divisão e chegou à segunda. Essa melhora se deve à implementação do Programa de Controle de Emissões Veiculares (Proconve), um dos experimentos mais bem sucedidos de controle de emissões. A título de exemplo, um [automóvel] Gol antigo, fabricado nos anos 1980, poluía o equivalente a 100 Gols atuais. Além disso, o papel das indústrias nas grandes cidades foi caindo, em decorrência do aumento do custo do imposto, dos terrenos e também das normas de emissões nesses locais.
Assim, a saída das indústrias e a criação de veículos mais eficientes compensaram o aumento da frota de veículos e houve uma redução efetiva da poluição. Contudo, isso não resolveu o problema. A partir de 2004, o nível de poluição estacionou e, em alguns parâmetros, tende a subir. Além disso, a mobilidade urbana piorou – o último levantamento da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) mostra que, no horário de pico da tarde, a velocidade média na cidade é de 6 km por hora. Ou seja, se eu andar depressa, chego antes.
Idec: O que as cidades europeias e americanas fizeram para reduzir o nível de poluição?
PS: Elas deram uma alternativa de transporte ao cidadão. Houve um desestímulo programado ao uso do carro e um estímulo com subsídio ao transporte coletivo. Em Boston [EUA], o ônibus é mais barato do que aqui. Berlim [capital da Alemanha] tem mais carros do que São Paulo, mas é tão mais prático e eficiente ir de transporte coletivo, que as pessoas só usam o veículo para sair à noite, viajar. Quer dizer, a posse do carro não é o problema, e sim o seu uso intensivo. No nosso caso, não temos essa alternativa. Eu não uso carro porque moro numa distância que me permite vir a pé [para o trabalho], a calçada é boa para andar. Uma pessoa que mora no Grajaú ou em Itaquera [bairros da capital paulista] não tem a mesma condição. Lento por lento, as pessoas preferem ir sentadas, ouvindo a música que querem, sem sofrer assédio ou serem apertadas como sardinha.
Idec: Considerando que o maior responsável pela emissão de poluentes nas cidades são os veículos, melhorar o trânsito é a solução para a poluição. Por que isso é tão difícil?
PS: Porque ainda há muita resistência cultural. As pessoas ainda pensam que os corredores [de ônibus] atrapalham o trânsito, mas não é o corredor que atrapalha, é o excesso de carros. Quando falamos de pedágio urbano, todo mundo tem um chilique. Agora, pare [o carro] na [avenida] Paulista e pague um estacionamento: vai custar R$ 40 por um período, possivelmente. Isso é uma forma de pedágio urbano, só que, como as pessoas não acreditam no governo, preferem deixar esse dinheiro na mão privada do que pagar para investir em transporte coletivo.
A solução do problema passa por um pacto, um entendimento social. Em algumas cidades da Europa o carro já está "careta". A exemplo da bebida e do cigarro, agrega-se um valor ao carro que ele não tem. É preciso descontruir isso e colocá-lo na dimensão exata do bem que ele é: um meio de transporte.
Idec: O senhor acha que essa resistência para a implementação de mudanças a favor da mobilidade urbana está diminuindo?
PS: Existem vários indicadores de que a sociedade está começando a mudar. Há uma valorização importante dos imóveis ao redor de corredores de ônibus e do metrô. Todo mundo gostaria de não usar tanto o carro. Desde as manifestações de junho do ano passado, o transporte coletivo virou assunto de campanha eleitoral.
Se for impopular fazer corredor de ônibus, ele não será feito. Mas acho que vai dar jogo, porque a situação está muito ruim. Não será por causa da poluição que vai mudar, mas sim pelo tempo que se perde, pelo desconforto. A redução da poluição será um efeito colateral benigno da melhoria da mobilidade.
Idec: A implementação da inspeção veicular em São Paulo contribuiu para reduzir a emissão de poluição na cidade?
PS: Há países que não precisam de inspeção porque o combustível é bom, a tecnologia veicular é boa e não há ônibus e caminhões antigos rodando. Mas no Brasil, é importante que os veículos emitam o mínimo possível. Nesse sentido, a inspeção é uma medida que exige pouco investimento, mas que tem um efeito periférico na melhoria da qualidade do ar. Calcula-se que a inspeção tenha o potencial de reduzir de 3% a 5% da poluição. Particularmente, defendo a inspeção, mas não vamos tornar a cidade mais habitável só com isso.
Idec: Há regiões do país onde a emissão de poluentes pela indústria ainda é muito alta?
PS: Em geral, os processos mais sujos migram para lugares onde não há capacidade de medir [a qualidade do ar]. Há grandes polos siderúrgicos no Pará, onde não há medição da poluição. A maior parte das capitais brasileiras não tem sistemas de medição. Por isso São Paulo leva fama de poluída. Mas, na cidade, hoje, há uma certa fiscalização, e as empresas são obrigadas a seguir a lei. Em lugares onde não há, vai depender do "bom mocismo". Hoje, não temos informação sobre os níveis de poluição da grande maioria das cidades brasileiras, o que é inaceitável na oitava maior economia do mundo.