Sem pedir licença
PROTEÇÃO DO ESTADO
Diante da insuficiência da autorregulação para atender às demandas sociais, para muitos estudiosos do assunto a solução é ter maior participação do Estado, que tem capacidade para regular e aplicar sanções mais efetivas. "Como a autorregulamentação que existe hoje não pode punir, ela acaba virando acordo de cavalheiros. Não gera receio", explica Henriques.
Vale lembrar que, embora a publicidade esteja sujeita às regras previstas na Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), essas legislações regulam de maneira muito geral. "Como não falam especificamente sobre um ou outro assunto, essas leis possibilitam interpretações subjetivas, inclusive pelo juiz", explica Bortoletto. Por isso, defende-se a criação de regras específicas para a publicidade.
Permitir a intervenção do Estado e regulamentar a publicidade com leis mais rígidas seria uma forma de "censura" à atividade publicitária, como o setor argumenta? Para Henriques, do Instituto Alana, definitivamente, não. "A liberdade de expressão está relacionada ao trabalho artístico, jornalístico etc. A publicidade é atividade comercial, que tem como finalidade o lucro, não tem nada a ver com cerceamento de liberdade de expressão. Regrar a atividade publicitária não passa pela censura", explica.
O Conar, todavia, é contrário à regulamentação da publicidade pelo Estado por acreditar que seria um retrocesso nos mecanismos de controle alcançados pelo setor. "Defendemos e comprovamos a eficácia do sistema misto de legislação e autorregulamentação", coloca Leifert, presidente do Conar.
Cerco à publicidade infantil
Na seara da publicidade infantil, um passo importantíssimo foi dado para proteger mais efetivamente esse público do alcance das estratégias publicitárias: no início de abril, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), composto por entidades da sociedade civil e ministérios do governo federal, aprovou uma resolução que considera abusiva a publicidade direcionada a crianças. "Esta resolução foi uma conquista histórica para a proteção da criança", comemora Henriques, do Instituto Alana (o órgão integra o Conanda na condição de suplente).
A advogada explica que uma resolução não cria uma lei, mas se vale de leis já existentes no país para definir uma questão importante. Neste caso, o Conanda remeteu-se ao ECA, à Constituição Federal e ao CDC. Como conselho federal, o Conanda entendeu que, se publicidade infantil é abusiva (isso está no CDC!), então ela é proibida, é crime, passível de pena de detenção e reparação pecuniária. "A questão agora já está definida. Qualquer outra lei mais restritiva, como limitar horários para a publicidade de produtos infantis, por exemplo, terá apenas a função de somar", acredita Henriques.
No entanto, o setor não parece disposto a seguir a resolução do Conanda. Em nota divulgada à imprensa no mês passado, o Conar afirmou que "normas que imponham restrições à propaganda comercial dependem de lei federal".
Em muitos países, a publicidade infantil é a que recebe maior atenção do governo, de empresas e de organizações sociais. Isso se deve ao fato de que, segundo pesquisas, a criança de até 12 anos não consegue analisar o caráter persuasivo da publicidade e não dispõe de ferramentas para lidar com a sofisticação do discurso publicitário, com suas ironias e metáforas. Assim, ela facilmente constrói identificação com a marca (ou produto), o que vai desembocar no seu desejo. "Por essa razão, ela não deve nunca ser alvo dessa conversa direta com o mercado. A mensagem precisa passar antes pela mediação do adulto, independentemente de quem é o público-alvo do produto [anunciado]", complementa a diretora do Alana.
O Conanda é um conselho federal como muitos outros, por exemplo, o Conselho Nacional de Justiça. Ele foi criado na Constituição de 1988 e tem grande força política. É um conselho deliberativo, e suas resoluções são assinadas pela ministra das Relações Institucionais, Ideli Salvatti.
É assim que a publicidade entra na vida de milhares de brasileiros. Embora haja regras para a propaganda, para o Idec e outras entidades, elas são insuficientes. Entenda por quê
Para promover um novo modelo, o comercial de uma grande indústria automobilística, veiculado recentemente na TV, mostra um belo jovem executivo ficando invisível em seu ambiente de trabalho. Desesperado, ele corre para o seu carro e, uma vez dentro do veículo, passa a existir novamente, por completo, o que lhe traz alívio. Uma das frases que permeiam o vídeo é "Mais um que tem um carro que não diz nada". E o slogan decreta: "Você com tudo".
Na internet, alguns consumidores mostraram indignação com a mensagem embutida no vídeo, segundo a qual a posse de determinados bens (como um carro novo) é o que determina a existência do sujeito, se ele merece ou não visibilidade. Alguns consideraram a propaganda apelativa. Outros, que ela é desprovida de responsabilidade social.
Suponhamos que um desses internautas quisesse reclamar oficialmente dessa publicidade. O que ele poderia fazer? Um dos caminhos seria denunciar o comercial ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), órgão privado criado em 1978 e responsável por fazer valer as diretrizes do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária – um conjunto de regras feitas pelo mercado publicitário para si mesmo com o objetivo de impedir a veiculação de mensagens enganosas ou abusivas, que causem constrangimento ou prejuízo a consumidores e empresas.
Assim, qualquer reclamação dessa natureza pode ser feita pela sociedade civil e por empresas no site do Conar (www.conar.org.br). A partir dessas denúncias, são abertos processos éticos para investigar o caso.
Contudo, como não é um órgão governamental, o Conselho não tem competência para punir empresas que veicularem propagandas que descumprem as exigências do Código – o qual, vale ressaltar, não tem força de lei. De acordo com Gilberto Leifert, presidente do Conar, as sanções do órgão dizem respeito exclusivamente à ação publicitária em si. "Nos casos mais graves, podemos interrompê-la, inclusive mediante uma liminar de sustação", explica. Ainda segundo o executivo, a autorregulação parte do princípio de que o mercado tem "experiência e maturidade para se autodisciplinar".
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabelece a proteção contra a propaganda enganosa e abusiva como um direito básico do cidadão. Mas qual é a diferença entre um conceito e outro?
De acordo com o Procon, publicidade enganosa é aquela que passa informações falsas sobre produtos ou serviços, ou deixa de dar informações importantes, levando o consumidor a se enganar sobre as características do que está sendo anunciado. Já a publicidade abusiva é aquela que faz discriminação, se vale de alguma fragilidade do consumidor (medo, superstição, inocência etc.), levando mensagens que podem provocar comportamentos prejudiciais à saúde ou à segurança dos receptores.
Quando há relação de consumo, o cidadão pode registrar queixas sobre propagandas abusivas, enganosas e métodos de venda desonestos ou intimidadores ao Procon, que irá se valer do Código de Defesa do Consumidor (CDC) para apurar as irregularidades.
ATUAÇÃO LIMITADA
Diversos movimentos sociais e entidades não governamentais, contudo, consideram que a autorregulação, tal como exercida hoje no Brasil, é passível de críticas, uma vez que não coloca o interesse do cidadão em primeiro lugar e aplica sanções excessivamente brandas e de maneira muito lenta.
Segundo Ana Paula Bortoletto, nutricionista do Idec e defensora da ideia de que a regulação da publicidade deve ser feita com a participação do Poder Público, o canal de denúncias disponibilizado para a sociedade é bastante informal em comparação com o das empresas. "A denúncia da população demora muito pra ser julgada e, quando é, raramente acontece sanção. Além disso, quando o Conar pede para retirar o comercial do ar, ele até já saiu espontaneamente, tamanha foi a demora no processo. Ou seja, a empresa denunciada acaba não tendo que fazer nada a respeito", argumenta.
Para ela, a autorregulação no Brasil funciona bem apenas para evitar a concorrência desleal entre empresas, ou seja, para proteger o mercado. O Movimento Infância Livre de Consumismo, que representa pais interessados em proteger as crianças da publicidade infantil, compartilha da mesma opinião. "O Conar é uma entidade do mercado e, como tal, tem o intuito de protegê-lo e preservar a qualidade da publicidade. Cidadania e defesa da infância pertencem a outra esfera, a do Estado", afirma Mariana Sá, publicitária e cofundadora do Movimento.
Para o presidente do Conselho, a crítica não procede. "No ano passado, mais da metade dos processos abertos [pelo órgão] foram a partir de denúncias de consumidores. Cerca de dois terços dos casos julgados pelo Conselho de Ética em 2013 resultaram em reprovação total ou parcial", contrapõe Leifert.
Isabella Henriques, advogada e diretora do Instituto Alana, organização de defesa dos interesses da criança, também percebe uma limitação na atuação do Conar. "O órgão é representante do mercado, não do consumidor. E tudo bem, pois foram fundados e são financiados pelo mercado. O problema é a falta de transparência", pontua, referindo-se ao fato de que o Conselho tenta, em sua comunicação institucional, passar uma imagem de que atende aos interesses da sociedade.
Apesar dessas questões frequentemente levantadas, é para o Conar que dezenas de reclamações de consumidores sobre propagandas são encaminhadas todos os dias. Recentemente, porém, o Conselho mostrou certa intolerância para queixas ditas "exageradas", evidenciando isso em sua campanha institucional. Veiculada em mídias impressas e em horário nobre na TV, ela satirizou as reclamações feitas pelos consumidores em relação aos abusos nas propagandas (por exemplo, mostrou um palhaço chamado "Peteleco" sendo acusado de apologia à violência em função de seu nome). E destacou: "Muitas [reclamações] são justas, outras, nem tanto. E saber a diferença é fundamental. Confie em quem é especialista no assunto. Confie no Conar".
Para Sá, do Movimento Infância Livre de Consumismo, a campanha traduz a resistência do órgão em trazer para perto dele representantes da sociedade e o seu desinteresse em regular certos tipos de publicidade. "A campanha tenta desestimular consumidores a exercer sua cidadania e a reclamar quando percebem algum abuso", comenta. Enfurecido com a Campanha e com seu teor difamatório e pejorativo, o Movimento Infância Livre de Consumismo resolveu denunciá-la. Para quem? "Para o Conar", responde Sá, com certa desesperança. Em abril, o Idec assinou uma carta, junto com outras organizações, em repúdio à campanha (para saber mais detalhes, acesse: http://goo.gl/crvoMT).
ALIMENTOS: O DESAFIO CONTINUA
A publicidade de alimentos também já foi alvo de uma tentativa de regulação, que, infelizmente, naufragou. Em 2010, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou a resolução no 24, que dispunha sobre os critérios para a divulgação de produtos alimentícios com quantidades elevadas de açúcar, gordura saturada, gordura trans e sódio, bem como bebidas de baixo teor nutricional.
A norma exigia que as propagandas desses produtos viessem acompanhadas de mensagens de alerta sobre os riscos do seu consumo excessivo. Um exemplo de frase de alerta seria: "Este produto contém muita gordura saturada e, se consumida em grande quantidade, aumenta o risco de desenvolver diabetes e doenças do coração". No entanto, por considerar que esse tipo de regulamentação extrapolaria a competência da Anvisa, a Advocacia Geral da União invalidou a resolução.
O Idec, assim como outras organizações, lamentou o veto à norma. "Ela traria um avanço significativo para alertar os consumidores de forma clara sobre os riscos à saúde que o consumo excessivo de determinados alimentos pode representar", destaca a nutricionista do Instituto.
SAIBA MAIS
• Entrevista sobre publicidade infantil com Isabella Henriques (edição nº 181). Acesse: http://goo.gl/bmDRcb