No escuro
QUEM GANHA COM ISSO?
Para as concessionárias, o pré-pagamento significa uma série de redução de custos: com impressão e entrega de faturas ao fim do mês, com a leitura do medidor e com o envio de funcionários para cortar o fornecimento quando o cliente deixa de pagar a conta e religar quando este quita a dívida, por exemplo. A ação também representa o fim dos "gatos" (roubo de energia) e a diminuição da inadimplência. Contudo, mesmo com todas essas vantagens, as empresas não têm demonstrado, até o momento, muito interesse em aderir ao novo sistema, segundo Santos, da Abradee. Os motivos, de acordo com ele, são as "dificuldades operacionais" e a indefinição acerca de como será cobrado o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). "Pedimos à Aneel regras mais flexíveis e um período para testes antes de o regulamento ser aprovado, mas ela não nos atendeu", diz Santos. "Como ainda vai levar tempo para o sistema ser oferecido, pode ser que até lá alguma empresa se interesse. Mas como a adesão é facultativa, corre-se o risco de nenhuma delas oferecer o novo sistema de pagamento", completa. Se de fato poucas concessionárias aderirem ou, até mesmo nenhuma, a quem terá interessado a aprovação dessa norma? "Aos consumidores, definitivamente, não", opina a advogada do Idec.
A Aneel defende que o sistema pré-pago é bom para os usuários porque eles podem comprar os créditos quando puderem e gastar de acordo com a sua disponibilidade financeira. Além disso, se livram de erros de leitura e não receberão mais a conta de luz em casa.
O regulamento também permite que as distribuidoras ofereçam desconto aos consumidores que optarem pelo serviço, mas isso pode não ocorrer, uma vez que não é obrigatório.
"Garantir tarifas mais baratas a quem opta pelo sistema pré-pago deveria ser condição sine qua non, já que o consumidor está capitalizando a empresa antecipadamente, além de diminuir os custos dela", rebate Tornero.
O Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo (Seesp) – que, como o Idec, é membro da Frente de Defesa dos Consumidores de Energia Elétrica –, não vê nenhum ponto positivo para o consumidor. "Além do risco de ficar sem energia, pode haver aumento de custo, já que o valor pago pelos medidores tende a ser repassado aos usuários", afirma Carlos Kuchner, diretor do Sindicato.
Para o Idec, o único caso em que o pré-pagamento parece interessante é para locais em que a energia é usada esporadicamente, como em casas de veraneio, pois eliminaria o gasto mensal com a tarifa mínima de luz e possibilitaria que o proprietário comprasse créditos somente quando fosse utilizar o imóvel.
Outro ponto a ser considerado é que o novo sistema muda a rotina do consumidor. "As pessoas estão acostumadas a pagar a sua conta de luz sempre na mesma data; elas pagam e se livram daquela dívida. Com o pré-pagamento, o custo será fracionado", aponta a advogada do Instituto, que destaca, ainda, que o usuário não saberá ao certo quanto precisará colocar de crédito para o mês inteiro. "E se a recarga acabar antes do fim do mês, e o dinheiro também?", questiona.
Diante de tantas ressalvas que ameaçam o acesso a esse serviço essencial, o Idec está estudando medidas para tentar reverter a decisão da Aneel.
SAIBA MAIS
Reportagem "Energia pré-paga: boa para quem?", publicada na edição nº 168: http://goo.gl/98KOc2 COMO VAI FUNCIONAR
Segundo a Aneel, o regulamento aprovado prevê que a adesão ao sistema pré-pago de energia será facultativa tanto para as distribuidoras quanto para os consumidores. A exemplo do que ocorre na telefonia, o consumidor poderá comprar créditos (em kWh) junto à sua distribuidora e receberá um código que deverá ser digitado no teclado do medidor, instalado no interior de sua casa. Quando os créditos estiverem chegando ao fim (o conceito fica a critério da empresa: faltando 10 kWh, 5 kWh etc.), o medidor emitirá sinais sonoros para lembrar o proprietário de realizar uma recarrega.
O consumidor deverá inserir no mínimo 5 kWh de crédito por mês (considerando o valor da tarifa em São Paulo hoje, essa recarga custaria cerca de R$ 1,15). Quando o tema estava em discussão em audiência pública, as empresas haviam pedido um valor mínimo maior. "A venda de créditos tem um custo para a empresa, por isso valores muito baixos [de recarga] não compensam", explica José Gabino Matias dos Santos, diretor da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee).
Antes de implementar o sistema, as empresas terão três anos para testá-lo. Nesse período, ele poderá ser oferecido apenas em alguns municípios. Encerrada a fase experimental, se resolverem adotá-lo, as concessionárias serão obrigadas a disponibilizar o pré-pagamento em toda a sua área de concessão. O consumidor que aderir e não gostar ou não se adaptar ao pré-pagamento, pode retornar ao sistema convencional. No entanto, essa transição pode demorar até 30 dias.
Essas são as principais regras previstas no regulamento. Agora, para o Idec, na prática, muitas delas podem ser postas em dúvida. A começar pelo caráter facultativo do sistema. "Existe o risco de que os consumidores de baixa renda – mais vulneráveis ao corte de energia – sejam pressionados a migrar para o pré-pago e que em determinadas regiões, sobretudo nas mais carentes, seja oferecida apenas essa modalidade do serviço. Ou seja, o receio é que o consumidor fique sem opção", afirma Tornero.
Além disso, no modelo convencional de conta de luz, há uma série de condições favoráveis ao usuário, em função da essencialidade do serviço, que deixam de existir no pré-pago. Por exemplo, em caso de inadimplência, a concessionária é obrigada a avisar o usuário previamente de que o fornecimento de luz será suspenso – o que pode demorar até 90 dias para acontecer. Já no pré-pagamento, acabou o crédito, apagou a luz.
É verdade que o regulamento prevê um "crédito de emergência", que é de 20 kWh – quantidade suficiente para suprir três dias de uso, considerando o consumo médio dos brasileiros, segundo a Abradee. "E se nesse período o usuário não conseguir organizar seu orçamento para colocar mais créditos? No sistema convencional, o prazo para regularizar a situação é de três meses, nesse são só três dias", critica Mariana.
Sem falar que, hoje, o corte só pode ocorrer durante a semana e em horário comercial. Com a nova opção de pagamento, o consumidor corre o risco de ficar sem luz em pleno domingão. Já pensou ter de sair do conforto do sofá para ir até um posto de venda comprar créditos? Como caberá à distribuidora definir os canais para recarga, nada garante que a opção de venda por telefone, SMS ou pela internet será oferecida.
A Aneel também costuma usar o argumento de que a energia pré-paga já é adotada em vários países, como Chile, Inglaterra e Moçambique. Contudo, para a advogada do Idec, isso não garante que o sistema seja bom para os consumidores daqui. "A nossa realidade é muito diferente da desses países", ressalta.
A energia elétrica pré-paga, aprovada recentemente pela Aneel, aumenta o risco de o consumidor ficar sem luz. Entenda por que esse sistema não é um bom negócio
Osistema pré-pago já é velho conhecido dos usuários de celular. Para fazer ligações é preciso comprar créditos; quando estes acabam, o consumidor não pode mais ligar, apenas recebe chamadas por um período. Daqui um tempo, essa forma de pagamento pode estar disponível também para o serviço de energia elétrica. Com uma importante diferença: sem créditos, a luz é cortada por completo.
O regulamento que permite que as distribuidoras de energia elétrica ofereçam o sistema pré-pago em todo o Brasil foi aprovado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) no dia primeiro de abril (só que não era mentira, infelizmente), mas ainda não fora publicado no diário oficial até o fechamento desta edição. Segundo Oberdan Alves de Freitas, assessor da superintendência de regulação dos serviços comerciais da Aneel, ainda é preciso homologar o modelo de medidor que será utilizado e, depois disso, as empresas interessadas terão de adquiri-lo e instalá-lo. Elas também precisarão implementar o sistema de faturamento, criar postos de venda dos créditos e acertar a questão tributária. Ou seja, ainda deve demorar para que o pré-pago saia do papel.
De qualquer forma, a autorização desse sistema preocupa o Idec, assim como outras entidades de defesa do consumidor. "A energia elétrica é considerada um serviço essencial à saúde, de acordo com o artigo 10, I, da Lei n° 7.783/1989. O acesso a ela faz parte do direito a uma vida digna e é condição fundamental para o bem-estar do cidadão. O corte imediato, que ocorre quando o crédito pré-pago acaba, vai contra a essencialidade do serviço", declara Mariana Alves Tornero, advogada do Instituto.
Em 2013, o Idec lançou a campanha "Energia pré-paga: você vai ficar no escuro" para convocar os consumidores a enviar mensagens para a Aneel e para a Presidência da República pedindo que a energia pré-paga não fosse aprovada. Infelizmente, o interesse público foi ignorado pela agência reguladora.