Um tal "cadastro positivo"
Pesquisa revela que, embora o banco de dados esteja em vigor há oito meses, falta clareza sobre o seu funcionamento e os seus benefícios
Apesar da propaganda que promete aos bons pagadores taxas de juros diferenciadas para empréstimos e financiamentos, o cadastro positivo ainda não pegou. Embora esteja em vigor desde agosto de 2013, a adesão dos consumidores permanece pequena. Em janeiro, o Idec colocou a seguinte enquete em seu portal: "Você sabe o que é e como funciona o Cadastro Positivo?". Dos 472 internautas que participaram, 43% disseram não saber do que se trata. Apenas 5% afirmaram conhecer e ter aderido.
E você, já ouviu falar desse cadastro? Trata-se de um banco de dados no qual são registrados os hábitos de consumo e de pagamento dos consumidores considerados bons pagadores, ou seja, aqueles que quitam suas dívidas em dia. Esses dados são fornecidos, com a autorização do consumidor, por instituições financeiras e por empresas públicas (fornecedoras de água e energia, por exemplo) e privadas (operadoras de telefonia, de planos de saúde etc.), reunidos e administrados por empresas privadas com atuação no segmento de proteção ao crédito – chamadas de gestoras – e divulgados a estabelecimentos que concedem crédito – os consulentes.
Entre as principais regras previstas na Lei do Cadastro Positivo (lei n° 12.414/2011) em relação aos direitos do consumidor, está: o cadastramento deve ser expressamente autorizado, assim como o compartilhamento dos dados com outras gestoras; e o consumidor pode acessar o seu cadastro uma vez a cada seis meses e cancelá-lo a qualquer hora.
Mas você deve estar se perguntando: "E esse cadastro não é bom para nós, consumidores?" Após avaliar o serviço oferecido pelas três principais gestoras que atuam no país – Boa Vista Serviços, Serasa Experian e SPC Brasil –, o Idec concluiu que falta clareza sobre o seu funcionamento. O principal atrativo, a redução das taxas de juros para quem tomar crédito não é garantida por nenhuma delas. "Se há pontos positivos para o consumidor, eles ainda não estão claros", declara Ione, economista do Idec e responsável pela pesquisa. Ela recomenda que o consumidor não tenha pressa em aderir ao cadastro positivo até que as empresas expliquem de forma mais transparente como ele funciona. Veja, a seguir, os principais resultados da pesquisa.
O objetivo da pesquisa era investigar o processo de adesão ao cadastro positivo, descobrir quais informações são fornecidas aos consumidores, como estes poderão acompanhar o seu cadastro e quais são os benefícios que o serviço proporciona.
A pesquisa foi feita em duas etapas. Na primeira, realizada entre os dias 27 de janeiro e 10 de fevereiro, seis voluntários foram às unidades de atendimento da Boa Vista e da Serasa, em São Paulo (SP), para aderir ao cadastro positivo. Como a SPC não tem unidade de atendimento, a adesão foi feita a distância e, depois, o voluntário levou os documentos ao escritório administrativo da empresa, para se assegurar de que seriam entregues. Desses seis voluntários, três não permitiram o compartilhamento de dados com outras gestoras e três autorizaram o compartilhamento.
Na segunda etapa, o Idec enviou questionários a essas empresas, com 19 perguntas a respeito das funcionalidades do cadastro positivo e do tratamento dado às informações dos consumidores.
O Idec também enviou uma correspondência à Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão ligado ao Ministério da Justiça, a fim de saber as expectativas e o posicionamento da entidade acerca do cadastro positivo, mas ela não respondeu.
DIFICULDADES PARA ADERIR
A primeira parte da pesquisa avaliou as condições de adesão; o acesso à informação pelos consumidores e pelos consulentes; e os critérios utilizados para determinar se o consumidor é ou não um bom pagador.
Os principais problemas detectados foram: o processo para a adesão ao cadastro não é padronizado; as informações não são confiáveis, já que cada atendente informa uma coisa; há muita burocracia; e os sistemas não estão preparados para fazer o compartilhamento de dados com outras gestoras, direito garantido pela lei.
A adesão deve ser feita presencialmente, exceto na SPC Brasil, que não possui unidade de atendimento ao público. "A adesão presencial é um ponto positivo, pois evita fraudes e preserva a identidade do consumidor", opina Ione. No caso das três empresas, somente quem possui certificação digital (assinatura eletrônica) pode aderir ao cadastro pelo site. Quem não tem, deve imprimir o termo de adesão e entregá-lo pessoalmente (caso exista uma filial próxima) ou enviar pelo correio junto com as cópias do RG e do CPF. Contudo, na Boa Vista, o processo foi truncado: após 10 dias da entrega dos documentos pelos dois pesquisadores, eles descobriram, por meio de contato telefônico, que seus CPFs não haviam sido registrados, embora tivessem recebido protocolos confirmando o cadastro. Para conseguir efetivar a adesão, eles precisaram se cadastrar no portal Consumidor Positivo. Só que essa condição não fora informada pelos atendentes.
Na Serasa, o voluntário que autorizou o compartilhamento de seus dados com outras gestoras não conseguiu efetivar a sua adesão, pois o funcionário não sabia como inserir os dados das outras empresas no sistema. O pesquisador deixou os seus documentos e o formulário para que os funcionários dessem seguimento ao processo. No entanto, 10 dias depois, o status apresentado no site era "aguardando documentação". "As gestoras não querem compartilhar os dados com outras empresas porque, segundo elas, a carteira de clientes é diferente, assim como os critérios utilizados e os benefícios oferecidos", informa Ione. Mas, afinal, qual é a vantagem desse compartilhamento? "Em princípio, parece ser bom para o consumidor, pois, assim, mais consulentes terão acesso ao seu cadastro, o que pode ser útil quando ele for tomar crédito. Mas essa é só uma hipótese: como outros itens do cadastro, as regras e os benefícios do compartilhamento não estão claras. Além disso, não se sabe qual é a responsabilidade das gestoras em relação à segurança dos dados compartilhados", explica a economista do Idec.
Os voluntários perguntaram aos atendentes da Boa Vista e da Serasa como eles poderiam acessar o banco de dados. Na Boa Vista, foram dadas três respostas diferentes: duas indicaram que a consulta não era possível (em um caso, provisoriamente e, no outro, indefinidamente), o que fere os direitos garantidos pela lei; e a terceira, que seria enviada por e-mail uma senha para acesso. Já a Serasa informou que a consulta aos dados poderia ser feita apenas presencialmente ou por correio, mediante solicitação prévia.
Os voluntários também perguntaram a quais informações as consulentes terão acesso. O pior desempenho nesse quesito foi o da Serasa: em uma das adesões, o atendente não respondeu e, na outra, orientou o pesquisador a ler a lei!
Durante o processo de adesão, nem a Boa Vista nem a Serasa forneceram informações sobre o sigilo das informações, as regras para a utilização e o critério de avaliação desses dados, bem como sobre a vigência do cadastro e a possibilidade de cancelamento. Também não há orientações no site das gestoras.
A advogada Caroline da Rosa Pinheiro, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora da dissertação de mestrado Cadastro Positivo: A Possibilidade de Acesso ao Crédito como um dos Caminhos para o Desenvolvimento Social, de 2012, acredita que muitos consumidores ainda não aderiram ao cadastro porque se sentem inseguros, já que não recebem informações suficientes e não sabem como os seus dados serão tratados. "Talvez, no Brasil, a preocupação com a segurança dos dados seja mais acentuada do que em outros países, porque há o temor de que ele seja mais um mecanismo fraudulento", argumenta Caroline.
RESPONSABILIDADE TERCEIRIZADA
Para entender melhor o funcionamento do cadastro positivo, o Idec também enviou um questionário às três empresas gestoras avaliadas. A SPC Brasil, porém, não respondeu.
Pelas respostas, a Boa Vista e a Serasa deixam claro que cada empresa segue suas próprias regras para administrar o cadastro positivo e que a responsabilidade pelo uso das informações disponibilizadas é exclusiva de seus clientes, ou seja, das empresas que concedem crédito. "As gestoras se apresentam como meras intermediárias: não se responsabilizam nem pelos dados fornecidos a elas nem pela concessão ou negativa de crédito pelas consulentes", diz Ione.
Quanto à tão propalada redução de juros, as empresas também ressaltaram que não são responsáveis pelos critérios de classificação de risco. Ou seja, elas apenas reúnem os dados dos consumidores e repassam para as empresas que concedem crédito, e a decisão final é destas últimas. As empresas também afirmam que a formação do histórico de crédito demanda tempo, por isso não é possível informar quando o benefício dos juros mais baixos será garantido aos bons pagadores que aderiram ao cadastro. "Se a propaganda do serviço fosse honesta, ela diria: 'consumidor, faça o seu cadastro hoje e, um dia, quem sabe, você pode ser beneficiado com taxas de juros mais baixas", ironiza Ione.
Caroline acredita que, em médio prazo, pode, sim, haver redução das taxas de juros para os participantes do cadastro, mas que isso será resultado de um processo do qual o banco de dados é apenas um dos meios. "O cadastro positivo deve estar atrelado a mecanismos de controle e mudanças de estratégias em relação ao acesso ao crédito", ela diz.
Em relação aos critérios de avaliação do consumidor, também nada foi esclarecido. O Idec perguntou se há um sistema de pontuação que classifica os consumidores como bons e maus pagadores. A Boa Vista respondeu que não e reforçou, mais uma vez, que apenas fornece informações aos seus clientes e que são eles quem analisam os riscos com políticas e critérios próprios. A Serasa não respondeu sobre o sistema de pontuação, mas também disse que a decisão de conceder ou negar créditos é da consulente e que a Serasa não interfere no processo.
No que diz respeito à privacidade das informações, questão de suma importância, a Boa Vista disse que tem uma certificação que garante que seu sistema é seguro e atende plenamente à Lei n° 12.414/2011, em relação ao controle de acesso, à criptografia de dados etc. A Serasa disse proibir contratualmente o armazenamento, a divulgação e/ou o fornecimento dos dados obtidos pelas consulentes e destaca que as instituições financeiras têm o dever de sigilo, registrado na Lei Complementar n° 105/01.
"Apesar de as respostas dadas serem detalhadas, elas não são objetivas. Além disso, muitas informações importantes não foram fornecidas, o que torna urgente a realização de um debate não apenas com as gestoras, mas também com os outros envolvidos no processo, como as instituições financeiras, o Banco Central e a Senacon [Secretaria Nacional do Consumidor, do Ministério da Justiça]", finaliza Ione.Como é lá fora
Enquanto o cadastro positivo ainda é novidade no Brasil, ele já é utilizado há muito tempo em países da Europa e nos Estados Unidos. A advogada Caroline da Rosa Pinheiro, autora da dissertação de mestrado sobre o tema, é a favor de que o país se espelhe nos modelos mais antigos para saber quais foram as estratégias utilizadas e as soluções para os problemas oriundos do compartilhamento de dados, como foi tratada a questão da privacidade e como os consumidores foram incentivados a aderir ao cadastro. "É preciso buscar as respostas para essas questões", afirma.
O Cadastro Positivo brasileiro até tem pontos comuns com os cadastros europeus e o americano, como, por exemplo, a preocupação com a definição de conceitos, como "banco de dados", "gestor", "cadastrado", entre outros; a necessidade de consentimento do consumidor interessado em fazer parte do cadastro; a determinação de prazo para o armazenamento das informações nos bancos de dados; e a utilização dos dados de acordo com a finalidade da coleta.
No entanto, alguns pontos relevantes ainda precisam ser discutidos, como a adoção de medidas de segurança para impedir o acesso não autorizado aos dados e a definição de uma autoridade de governo para regulamentar e fiscalizar as atividades das gestoras de banco de dados e serviço de proteção ao crédito. "A questão do mau uso das informações é o maior desafio a ser superado pelo cadastro positivo no Brasil", aponta Caroline.