Medicamentos demais
A diferença entre o remédio e o veneno está na dose, diz a célebre frase atribuída ao médico suíço-alemão Parecelso, morto no século XVI. Uma versão mais atual do alerta diria que não é só na dose que mora o perigo, mas também na frequência e nos motivos que levam à ingestão dessas substâncias. O chamado "uso racional de medicamentos" é uma forte preocupação nos dias de hoje, em que o consumo de remédios com prescrição médica supera o de drogas ilícitas em alguns países americanos, segundo dados da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (Jife), das Nações Unidas. Para discutir essa questão, conversamos com o médico sanitarista José Ruben Bonfim, coordenador-executivo da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime), que dedica-se ao estudo de políticas farmacêuticas há mais de 20 anos. Nesta entrevista, ele alerta para os riscos dos fármacos (como ele faz questão de denominar) e afirma que falta "consciência sanitária" entre os seus colegas de profissão. "Quanto mais eu estudo os fármacos, mais eu tenho medo deles", diz.
Idec: Um estudo francês publicado em 2012 afirma que metade de todos os medicamentos prescritos na França são inúteis, 20% apresentam riscos aos pacientes e 5% são efetivamente perigosos. O senhor acredita que a situação no Brasil seja semelhante?
JOSÉ RUBEN BONFIM: Creio que a situação no Brasil seja pior. Primeiro, porque a França é um país pioneiro na abordagem independente dos benefícios e dos riscos dos fármacos. Lá, sempre existiram condições de se fazer uma análise profunda do mercado farmacêutico, que é representante do mercado mundial. E, segundo, porque existem muitos medicamentos antigos que continuam sendo comercializados, e outros não tão antigos, mas comprovadamente perigosos, que foram retirados do mercado europeu e do de outros países, mas permanecem no brasileiro.
Idec: Qual é a diferença entre um medicamento "perigoso" e um "inútil", de acordo com o estudo?
JRB: Por "perigoso", entenda-se aquele fármaco cuja relação benefício-risco não é comprovada. Não existem medicamentos destituídos de riscos, mas, para que ele seja considerado útil, essa relação deve ser a melhor possível, ou seja, máximo benefício e mínimo risco.
Já "inútil" é aquele que apresenta mais riscos e/ou menos benefícios que outro semelhante que existe no mercado. Quando um fármaco é submetido a registro para ser aprovado, idealmente, ele deveria ser analisado em comparação com o melhor tratamento existente, coisa que não é feita nem na Europa, nem nos EUA e muito menos no Brasil. É algo que afronta os direitos dos pacientes, que em suma são consumidores.
Idec: Muito se fala que a indústria farmacêutica intervém em pesquisas médicas e nos sistemas de saúde, a fim de minimizar os riscos e de promover as drogas que produzem. De que maneira se dá essa interferência e o que pode ser feito para evitá-la?
JRB: A indústria adota estratégias condenáveis de "aliciamento" dos profissionais. Tenho 40 anos de formado e, desde quando comecei a frequentar o hospital, no terceiro ano de curso, já recebia propagandas [de produtos farmacêuticos]: me entregavam uma montanha de amostras grátis, prospectos maravilhosos etc. Essa prática persiste até hoje.
Trabalhos científicos muito sérios no campo da psicologia mostram que, ao receber um brinde, por menor que seja, o médico se sente "devedor" e, como forma de gratidão, passa a prescrever os produtos daquela empresa. Há 15 anos, os médicos recebiam bips [de brinde]. Agora, eles recebem smartphones e tablets. Essa forma de assédio deveria ser completamente vedada.
Idec: O uso incorreto de medicamentos é a principal causa de intoxicação no país. Por que, apesar dos riscos, a automedicação ainda é tão enraizada entre os brasileiros?
JRB: sso é o resultado de uma cultura de quase 100 anos de publicidade maciça, principalmente de analgésicos e antitérmicos. No Brasil, o ácido acetil salicílico (AAS) e a primeira marca comercial da dipirona são divulgadas desde o fim do século XIX e início do século XX. É por isso que, quando têm uma dor de cabeça, as pessoas vão à farmácia e pedem esses remédios.
Em relação aos índices de intoxicação [por medicamentos], as notificações são inconsistentes. Os registros estão relacionados a acidentes domésticos e a tentativas de suicídio, mas a realidade é mais complexa do que isso. Nunca vi, em 40 anos de medicina, uma declaração de óbito que tivesse como causa da morte um remédio. Mas não é isso que acontece nos países desenvolvidos. Só nos EUA, existem mais de 1,5 milhão de notificações de reações adversas importantes e que causaram internação. Dessas, cerca de quase 10% das pessoas morreram. Ou seja, há mais de 100 mil mortes por ano nos EUA relacionadas ao consumo de fármacos que foram prescritos. Não tem nada a ver com a pessoa tomar o remédio por conta própria.
Não há esses registros no Brasil porque isso depende de consciência sanitária dos médicos. É preciso estimulá-los a notificar mesmo uma reação adversa já registrada na literatura, a fim de gerar estatísticas sobre o uso desse fármaco. É importante frisar que a notificação espontânea pode ser feita por qualquer profissional da saúde e também pelo paciente. Todos têm o direito e o dever de fazer isso.
Idec: A venda dos chamados "tarja preta" é rigorosa no país. Embora possa haver falhas no controle, pode-se considerar que hoje o principal problema é a prescrição excessiva dessas drogas e não a aquisição indevida?
JRB: Sim. Há uma epidemia de dependência desses medicamentos no Brasil e a responsabilidade é dos meus colegas médicos. O segundo fármaco mais prescrito no país é o [tranquilizante] clonazepam. Segundo a OMS [Organização Mundial da Saúde], o tratamento da ansiedade só deve ser feito em casos graves e limitado a duração de quatro a oito semanas. Depois disso, o tratamento básico tem de ser a psicoterapia. Hoje, porém, se toma ansiolítico até para dor de cotovelo.
Os médicos prescrevem essas drogas porque acreditam que estão ajudando o paciente, mas não estão. Só se pode prescrever ansiolítico ou antidepressivo em situações-limite, quando a intervenção clínica não-farmacológica não pode ser feita, ou quando o bom juízo clínico determina que se use isso. Regra geral, dois terços ou mais das situações habituais relacionadas à ansiedade e à depressão não requerem tratamento farmacológico. Há pesquisas sérias por toda a parte falando isso.
Idec: Uma pesquisa da Anvisa detectou que, entre 2009 e 2011, o uso de medicamentos para transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) por crianças e adolescentes aumentou em 75% no Brasil. O senhor acha que está havendo diagnósticos errados?
JRB: Há uma discussão muito grande se o TDAH realmente é uma doença, considerando os aspectos sociais, econômicos etc. do problema. Porém, existem profissionais de "corrente biológica", digamos, que acham que por meio de um fármaco é possível modificar as coisas. Os tratamentos médicos se baseiam, em muitos casos, em hipóteses de que isso causa aquilo, muitas vezes não comprovadas. Em minha opinião, o tratamento deve começar primeiro com um enfoque não-farmacológico e envolver profissionais não médicos, como psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais etc., assim como a escola.
Na Inglaterra, não é qualquer médico que pode prescrever metilfenidato [medicamento usado no tratamento de TDAH], só os que têm um treinamento especial para isso. A dependência é um só um dos riscos desse fármaco. Não está comprovado que ele tenha uma ação benéfica em longo prazo, por isso, esse medicamento só deveria ser prescrito para uso pelo menor tempo possível e nos casos mais bem avaliados.
Idec: De que forma o paciente pode se "precaver" do risco de diagnóstico impreciso e de prescrição incorreta de medicamentos?
JRB: O paciente precisa ter uma atitude prudente e exigir de seu médico que cumpra o sétimo item do Decálogo Sobre o Uso Seguro de Medicamentos [desenvolvido pelo National Prescribing Centre, do Reino Unido]. Ele orienta o profissional a envolver os pacientes na decisões relacionadas aos seus respectivos tratamentos e a dar a informação necessária para a administração correta do produto, de modo que possam reconhecer as reações adversas, caso as apresentem, por exemplo. Se todo paciente tivesse essa atitude [de exigir essa postura do médico], a atividade médica melhoraria, porque ele iria desconfiar caso o profissional fosse negligente.
Idec: No ano passado, a Anvisa decidiu manter a venda de emagrecedores a base de sibutramina, apesar de muitos países já terem proibido o seu uso. Qual é a sua opinião sobre a decisão?
JRB: A sibutramina é um anorexígeno com ação no sistema nervoso central. Ela foi retirada no mundo inteiro, menos no Brasil, que considerou ter possibilidade de controle sobre esse medicamento comprovadamente perigoso. A Anvisa cometeu um grave erro sanitário, e os atuais dirigentes vão ficar para a história da saúde pública brasileira como profissionais incompetentes.
Há dois novos fármacos recém-aprovados [no exterior] para o tratamento da obesidade, ambos com ação no sistema nervoso. É provável que se tornem grandes fracassos. Já existe uma experiência de mais de 50 anos com acompanhamento dos chamados anorexígenos e se chegou à conclusão de que nenhum deles atende à condição de máximo benefício e mínimo risco, necessária para qualquer medicamento.
SAIBA MAIS
Decálogo sobre o uso seguro de medicamentos. Acesse: http://goo.gl/gSRKKR