Desafios comuns
No dia 15 de março, é celebrado o Dia Mundial do Consumidor. Embora a data seja internacional, tipicamente as comemorações e discussões se dão em torno de temas locais – o que, no caso do Brasil, com tantos problemas de consumo a serem resolvidos, não surpreende. Mas, de vez em quando, é bom ampliar os olhares para as questões que afetam os consumidores em todo o mundo e identificar os desafios comuns, que existem apesar das singularidades de cada país. Para dar um panorama dos assuntos que estão no centro dos debates para a proteção do consumidor hoje no mundo, ninguém melhor do que a nova diretora-geral da Consumers International (CI), a britânica Amanda Long, que assumiu o posto em janeiro. A CI é uma federação que reúne 240 organizações de defesa do consumidor de 120 países, entre elas o Idec. Confira, a seguir, a entrevista que Amanda nos concedeu por e-mail direto de Londres.
Idec: As Diretrizes da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Proteção do Consumidor estão em processo de revisão. De que maneira essas diretrizes impactam a legislação consumerista de cada país?
AMANDA LONG: As Diretrizes da ONU têm enorme importância para os grupos nacionais de consumidores. Elas são a referência pela qual as organizações podem exigir que seus governos prestem conta. Embora não tenham vinculação legal, as Diretrizes são ratificadas por todos os países-membros das Nações Unidas, e essa unanimidade dá a elas um grande poder como ferramenta política e de engajamento. É por isso que a Consumers International está colocando tanta energia para influenciar essa revisão. As Diretrizes não são alteradas desde 1999, quando a internet ainda estava dando os seus primeiros passos, por exemplo. Estamos fazendo de tudo para que comércio eletrônico e serviços financeiros sejam contemplados nessa revisão, pois acreditamos que essas questões refletem a realidade das preocupações diárias dos consumidores em todo o mundo.
Idec: No ano passado, a CI lançou uma publicação com propostas de atualização das diretrizes da ONU especificamente sobre a proteção do consumidor na era digital. Quais são os seus principais pontos?
AL: Nossa pesquisa internacional sobre proteção do consumidor de 2013 descobriu que menos de um terço (29%) dos governos têm mecanismos para resolver demandas sobre comércio eletrônico fora dos tribunais, o que significa que as vítimas de problemas com compras virtuais podem ser forçadas a buscar reparação por meio de caros processos judiciais. Esse é apenas um dos desafios para os direitos dos consumidores na era da internet. Para ajudar a resolver isso, estamos trabalhando para incluir vários pontos importantes às Diretrizes da ONU: que o consumidor tenha os mesmos direitos independentemente do meio em que a compra é realizada, ou se o produto adquirido tem formato digital; que a privacidade on-line seja especificamente abordada; e que a internet seja reconhecida como um serviço essencial para os consumidores, assim como alimentos, água, energia e saneamento.
Idec: A proteção de dados e a privacidade dos usuários estão entre as grandes questões da era digital. Como esse tema se relaciona com os direitos do consumidor?
AL: À medida em que a era digital avança, fica mais difícil para os consumidores interagirem no mundo fora da internet. Registrar-se em serviços de saúde, pagar contas e realizar outras operações bancárias são, cada vez mais, experiências digitais. Embora essa nova situação traga benefícios óbvios, há também ameaças reais à nossa privacidade. Quem pode acessar os meus dados pessoais? De que maneira e para que esses dados são utilizados? Que controle eu tenho sobre isso? Essas são questões que os consumidores estão se fazendo e cujas respostas estão no centro das discussões sobre os direitos do consumidor contemporâneo.
Idec: Este ano, a campanha global da CI para o Dia Mundial do Consumidor é sobre telefonia móvel. Quais são os principais problemas em relação a esse serviço hoje? Eles variam muito conforme o nível de desenvolvimento econômico de cada país?
AL: A campanha tem cinco áreas-chave: contratos injustos, queda de sinal, contas pouco claras, abuso no uso de dados pessoais e baixa resolução de reclamações. A partir de informações de nossos membros, acreditamos que esses sejam os maiores problemas para os consumidores sobre telefonia móvel, independentemente do nível de desenvolvimento econômico do país. Um aspecto notável da telefonia celular é que o serviço está transcendendo as desigualdades sociais e econômicas – o uso de celular cresce mais rapidamente justamente nos países em desenvolvimento. Assim, os direitos do consumidor de telefonia móvel são de fato uma questão global.
Idec: Além das campanhas temáticas pelo Dia Mundial do Consumidor, a CI coordena outras campanhas de mobilização para atingir objetivos específicos? Pode citar alguns exemplos recentes que tenham tido resultados positivos?
AL: Como a agenda de direitos do consumidor é muito ampla, precisamos manter o foco nas áreas em que acreditamos que mudanças são mais necessárias e nas quais a CI pode contribuir de maneira incisiva. Por isso, atualmente, nossas campanhas internacionais são focadas em quatro áreas: direitos digitais, questões alimentares, serviços financeiros e Justiça e proteção do consumidor – temas nos quais temos tido avanços significativos. O trabalho junto às Diretrizes da ONU visa a contribuir para melhorar a legislação em nível nacional; nosso lobby no G20 [grupo dos 20 países mais ricos] resultou na coordenação internacional para a implementação de uma proteção financeira ao consumidor mais eficiente; e o nosso trabalho sobre segurança alimentar e nutricional tem ajudado a Organização Mundial da Saúde a moldar recomendações sobre comida não saudável e a criar estruturas mais eficazes para a rotulagem de produtos transgênicos.
Idec: O Brasil tem vivido nos últimos anos um movimento de ascensão social pelo consumo: uma parcela da sociedade hoje tem acesso a bens e serviços antes inatingíveis. Por um lado, essa mudança é bastante positiva, claro. Mas, por outro, essa "sede de compra" dos recém-chegados ao mercado conflita com a necessidade de adotar um padrão ambientalmente mais sustentável. Como conciliar esses interesses?
AL: Essa questão é muito interessante e se insere no cerne do dilema que muitas economias estão enfrentando hoje. É claro que não é certo negar às pessoas um padrão de vida melhor, mas é crucial para o futuro do planeta que todos nós encontremos formas de minimizar o nosso impacto. Em última análise, o consumo precisa se tornar mais sustentável. Os consumidores têm um papel importante a desempenhar nesse aspecto, mas a mudança deve começar com os governos e com a indústria. Somente ao fazer da escolha certa a escolha fácil é que os consumidores poderão começar a mudar o seu comportamento.
Idec: O Idec já constatou em diversas pesquisas que empresas multinacionais adotam um "duplo padrão" em relação às suas práticas com os consumidores de seus países de origem e com os brasileiros. Por exemplo, montadoras que informam a emissão de poluentes dos carros que comercializam nos Estados Unidos, mas não dos daqui. Em sua opinião, isso tem a ver com o grau de exigência dos consumidores ou com a legislação local?
AL: Os governos devem exigir que as empresas prestem contas a respeito disso. Há problemas similares com bancos internacionais que oferecem menos proteção financeira aos consumidores de países em desenvolvimento, fabricantes de refrigerantes que continuam a usar ingredientes suspeitos em alguns lugares, mesmo já os tendo removido sob pressão em outros locais, e redes varejistas de alimentos que alegam ser éticas em um país, mas se comportam de forma irresponsável em outros. O movimento de consumidores tem um papel importante a desempenhar na sensibilização social a respeito dessa prática de "dois pesos, duas medidas", e a CI procurará aumentar sua participação nessa tarefa a nível internacional.
Idec: A rotulagem de alimentos com conteúdo transgênico é obrigatória no Brasil, mas sofre ameaças: há um projeto de lei no Congresso para derrubá-la. Como anda a discussão sobre rotulagem de transgênicos em outros países?
AL: Cerca de 65 países exigem a rotulagem de alimentos geneticamente modificados. Além do Brasil, a lista inclui União Europeia, Japão, Austrália, Rússia e China. Em 2011, após anos de campanha, o Codex [Alimentarius, fórum internacional de normatização do comércio de alimentos, da ONU] finalmente concordou com a orientação sobre a rotulagem de transgênicos. Na prática, isso significa que os países que desejarem instituir a rotulagem de organismos geneticamente modificados podem fazer isso sem sofrer ameaças da OMC [Organização Mundial do Comércio].
Nos últimos anos, os Estados Unidos viveram uma série de batalhas estaduais acerca dessa questão. Em 2013, o Estado de Connecticut tornou-se o primeiro a exigir legalmente a rotulagem de transgênicos em todo o território norte-americano. Porém, projetos de lei com o objetivo de introduzir a rotulagem obrigatória em Washington e na Califórnia foram derrotados, após campanhas milionárias das empresas de alimentos.
Idec: Este ano, o Brasil sediará a Copa do Mundo e, por causa dela, foi aprovada uma lei que restringe uma série de direitos dos consumidores durante os jogos. Considerando a experiência de outros países, é padrão da Fifa sobrepor os seus interesses aos direitos da população local? Os governos costumam aceitar essas imposições?
AL: O governo da África do Sul [sede da Copa do Mundo de 2010] foi muito subserviente à Fifa. Acredito que na Alemanha [sede em 2006] a situação não tenha sido tão ruim. De qualquer forma, é lamentável que a Fifa ache aceitável exigir mudanças nas leis de defesa do consumidor. A CI está com o Idec em seus esforços para que os direitos dos consumidores brasileiros se mantenham acima dos interesses de lucro de Sebastian Blatter [presidente da Federação] e da Fifa!