A "Constituição" da internet
PRIVACIDADE NA ERA SNOWDEN
A preocupação com a privacidade dos usuários na rede nunca esteve tanto em evidência quanto após a denúncia do ex-agente da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA), Edward Snowden, de que o governo norte-americano estaria vigiando as comunicações via internet em todo o mundo, inclusive dos órgãos governamentais brasileiros.
Mas, bem antes disso, a proteção aos dados já era uma preocupação por aqui. Tanto é que o Marco Civil incomoda as operadoras de telecomunicações neste ponto, pois proíbe que elas armazenem os dados de navegação dos usuários, permitindo apenas a guarda dos registros de conexão (número de IP, horário da conexão e desconexão). Já os provedores de serviços e aplicações, como Google, Facebook e outros sites, tinham a opção de guardar os dados dos usuários que os acessassem, desde que isso fosse informado e consentido pelo consumidor. Na nova redação apresentada pelo relator do PL, Deputado Alessandro Molon, no final de 2013, a guarda desses dados por seis meses passou a ser obrigatória a todos os provedores de aplicações de internet com finalidade lucrativa, e pode atingir empresas que não fazem isso atualmente, ampliando a coleta e o uso de dados dos consumidores.
"Essa ampliação é ruim e pode transformar um projeto que se inspirou, entre outras coisas, no princípio da proteção à privacidade, em um texto legal que serve à vigilância geral dos internautas", critica a advogada do Idec. Veridiana esclarece que o Marco Civil já previa a guarda de dados para investigações em caso de condutas suspeitas, mas isso é diferente da obrigação da guarda prévia, independentemente de suspeita. "Para o Idec, é importante que a lei estabeleça parâmetros para os sites que já coletam e usam esses dados, mas sem estimular que essa guarda seja tão ampliada", finaliza.
SAIBA MAIS
• Vídeo explica os riscos caso a neutralidade da rede não seja garantida: http://goo.gl/HJdqUG
• Campanha Marco Civil Já: http://goo.gl/QH3Hm6 Liberdade ameaçada
Para entender melhor as ameaças sofridas pelo projeto do Marco Civil no Congresso, a Revista do Idec conversou com Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), do qual o Instituto também é integrante. Amadeu estuda o tema há anos e participou de audiências públicas e reuniões representando o setor acadêmico e a visão dos usuários sobre o PL. Confira:
O lobby das empresas de telecomunicação é uma ameaça ao Marco Civil?
Sim. Além de impedir a votação ao longo de 2013 inteiro, o lobby ainda é responsável por causar modificações no texto que dão uma nova interpretação à neutralidade da rede, deixando de impedir a existência de filtros ou bloqueios em relação ao conteúdo transmitido na internet.
Qual é o interesse das teles em impedir que a neutralidade seja garantida?
As operadoras perceberam que, se puderem interferir no tráfego das informações, podem ter grande poder político e aumentar seu poder econômico. Elas querem fazer com a web o que acontece na TV a cabo: várias camadas de acesso, das quais se usufrui por meio de pagamento diferenciado.
Quais são os principais argumentos dos deputados que estão contra o Marco Civil?
As operadoras têm um lobby articulado especialmente pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Cunha chegou a fazer um discurso replicando o mesmo argumento usado por elas: de que sem diferenciação de pacotes não haveria inclusão digital. Tal argumento é absurdo, porque a tendência da população mais pobre é usar cada vez mais os serviços multimídia via internet, como cursos profissionalizantes e universitários a distância. Ao colocar "cercas" e "pedágios" na internet, aí sim se prejudica a inclusão dos mais pobres. Quando um deputado apoia a quebra na neutralidade, não o faz por ser uma causa popular, muito menos porque é justo. Faz isso porque as operadoras são grandes financiadoras de campanhas e, quanto mais se aproxima o ano eleitoral, mais essa pressão aumenta.
Por que a internet livre é tão importante?
Se as operadoras puderem filtrar o tráfego [de dados na internet], poderão controlar esse celeiro de liberdade, transformação, informação e entretenimento que é a internet. É clara a vantagem financeira que as operadoras terão ao limitar o acesso. Elas só têm a ganhar mais dinheiro com uma possível mudança, mas não existe qualquer vantagem ao cidadão. Nós queremos que a internet continue funcionando livremente e sendo esse ambiente de criatividade e de interatividade que é hoje.
Aguardando votação na Câmara dos Deputados, o Marco Civil da Internet é uma "carta de direitos" dos usuários, mas sofre ameaças de mudanças que podem afastá-lo de sua proposta original.Entenda como isso pode afetar a sua navegação
Quando começaram a ser traçados os primeiros rascunhos do que viria a ser a internet – em meados da década de 1960, durante a Guerra Fria – seria improvável imaginar que ela se tornaria um dos meios de comunicação mais importantes em nível global um dia. Hoje, a rede é um instrumento de inclusão social e de exercício de democracia no Brasil e no mundo. Para garantir que a internet continue a ser como é, livre para ser usufruída por toda a sociedade, é que foi proposto um Marco Civil da Internet no país.
O Marco Civil (projeto de lei n° 2.126/2011) também pode ser chamado de "carta de direitos" dos internautas. Seu texto foi escrito de forma colaborativa e inovadora: ao longo de 2009 e 2010, milhares de pessoas, entre pesquisadores, entidades civis e cidadãos, enviaram sugestões do que a lei precisaria conter.
A advogada do Idec Veridiana Alimonti, especialista em telecomunicações e internet, explica que o Marco foi uma reação da sociedade a diversos projetos de lei (PL) com caráter criminal contra os usuários, como o PL Azeredo. "Em vez de tipificar comportamentos comuns na rede como crime, é necessária uma lei que garanta primeiro os direitos dos usuários, bem como os deveres dos prestadores de serviço, provedores e do poder público", afirma.
Após o período de contribuições públicas, o PL foi encaminhado pela Casa Civil à Câmara dos Deputados e lá está, desde agosto de 2011, aguardando ser votado. "A demora para a votação demonstra o quanto o Marco Civil contraria interesses poderosos, sobretudo os das empresas de telecomunicações", ressalta Veridiana.
Diante da pressão das empresas, hoje, o Marco Civil tal como foi concebido está ameaçado. "Os sucessivos adiamentos na votação permitiram alterações no texto do PL que o distanciam do seu teor inicial, que é estabelecer uma regulação democrática, indispensável para garantir a liberdade e a diversidade na internet a todos os brasileiros", completa a advogada.
E O CONSUMIDOR COM ISSO?
Caso você se pergunte o que o consumidor tem a ver com esse assunto, é fácil entender: o uso da internet é permeado por relações de consumo. Começando pelo próprio acesso à rede, passando pelo comércio eletrônico, a utilização de serviços, a maneira como os sites tratam os seus dados pessoais ou a como as redes sociais interagem com seus usuários. "A internet é ao mesmo tempo uma rede que permite a potencialização de direitos e um ambiente de negócios. Por isso é importante garantir que os direitos dos usuários não sejam subjugados pelos interesses comerciais das empresas envolvidas e que haja um equilíbrio nessa relação, como prevê o Código de Defesa do Consumidor", acrescenta Veridiana.
O Instituto acompanha as discussões sobre o Marco Civil ativamente, tendo enviado sua contribuição desde o primeiro período de consulta pública e participado de diversas reuniões e audiências sobre o assunto, além de promover, com apoio de outras organizações, a campanha Marco Civil Já!, que já levou mais de nove mil internautas a enviar mensagens aos deputados federais pedindo que apoiem o PL na Câmara.
A POLÊMICA DA NEUTRALIDADE
O ponto mais controverso do Marco Civil da Internet é o que trata da neutralidade da rede. A neutralidade nada mais é do que exigir que o provedor trate de maneira igual os dados que trafegam na rede, sem distinguir o tipo de conteúdo ou de aplicação utilizados. As operadoras contestam esse artigo, pois têm interesse em explorar novos modelos de negócios, como a cobrança de acordo com o que o usuário acessa na rede, por exemplo.
Atualmente, basta que o internauta tenha uma conexão a internet para usufruir de serviços de e-mail, redes sociais como o Facebook ou Twitter, assistir a vídeos no YouTube ou acessar qualquer tipo de conteúdo. A ideia das operadoras é passar a vender pacotes que limitem não apenas a velocidade, mas também o tipo de serviço utilizado. Assim, um pacote mais barato permitiria a navegação apenas em sites simples; pagando uma mensalidade maior, o internauta conseguiria entrar em seu e-mail, por exemplo. Serviços mais "sofisticados", como publicar textos em um blog pessoal ou assistir a filmes e séries online, passariam a ser privilégio daqueles com maior poder aquisitivo para pagar os pacotes mais caros.
No texto atual em tramitação na Câmara, a neutralidade continua garantida; porém, por pressão das teles, foi incluído um parágrafo para garantir a "liberdade de modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta lei". O Idec considera fundamental essa condição, isto é, a sujeição dos modelos de negócio da internet ao respeito à neutralidade da rede. "Ela é essencial para o funcionamento da internet sem a interferência das operadoras no que o usuário pode ou não acessar", reforça Veridiana.