Injustiça tributária
No mês que vem, boa parte dos cidadãos receberá os carnês para pagamento de impostos diretos, como o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e o IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores). Embora janeiro seja lembrado como "o mês dos impostos", o contribuinte paga tributos o ano inteiro, principalmente aqueles embutidos no preço dos produtos e serviços e que ninguém vê.
E são esses impostos que incidem sobre o consumo que fazem do sistema tributário brasileiro um dos mais injustos do mundo, pois penalizam os mais pobres: estudos mostram que quem ganha até dois salários mínimos paga 49% de sua renda em impostos, enquanto os que têm renda acima de 30 salários despendem 26%.
Para o economista Amir Khair, ex-secretário de finanças da Prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1992), reverter essa desigualdade é possível, mas falta vontade política para mudar. Confira a seguir a sua análise.
Idec: O Brasil tem uma estrutura tributária considerada regressiva, isto é, na qual o pobre paga mais e o rico paga menos. Como resolver isso?
AMIR KHAIR: Em um sistema mais justo, tributa-se mais a concentração de riqueza e alivia-se o consumo. No Brasil, ocorre o contrário: há tributação em excesso no consumo, que representa aproximadamente 50% da carga tributária nacional. A média internacional é da ordem de 25%. Ao mesmo tempo, o Congresso nunca aprovou uma lei complementar que regulamente o Imposto sobre Grandes Fortunas; há pouca tributação sobre herança: só 4%, enquanto em outros países é sempre superior a 10%; a tributação sobre o patrimônio e a propriedade também é muito baixa.
O Congresso Nacional nunca se preocupou com a questão tributária no que diz respeito a quem paga a conta, e sim com quem fica com o dinheiro: se é a União, o Estado ou o município.
Idec: Para reverter essa desigualdade, então, é necessário aumentar os chamados impostos diretos (sobre renda, propriedade, fortuna) e diminuir os indiretos (sobre o consumo de produtos e serviços, como ICMS e ISS)?
AK: Isso. No que diz respeito ao imposto sobre a renda, o Brasil tem um destaque interessante: a alíquota máxima de 27,5% do imposto de renda é a mais baixa entre todos os países da América Latina. Onde se cobra menos, em todo o mundo, é na África: a média da alíquota máxima é da ordem de 30%. Ou seja, nós estamos num patamar muito baixo. Assim, além de mudar esse sistema tributário muito calcado no consumo, uma das saídas seria aumentar a alíquota do imposto de renda. Porém, toda vez em que se fala nisso é uma briga geral. O governo sequer faz uma proposta dessa porque levaria uma surra, não conseguiria aprovar, porque isso atingiria em cheio o bolso dos parlamentares.
Idec: O Imposto sobre Grandes Fortunas está previsto na Constituição Federal como meio de distribuição de renda. Porém, como o senhor comentou, a lei para a sua regulamentação nunca saiu. Quais são os entraves para a aprovação?
AK: Sim, ultimamente nem se fala mais no assunto. Quem é contra a medida diz que esse é um imposto com baixo potencial arrecadador, o que é uma mentira deslavada. Esse imposto não teria nenhuma alíquota extraordinária, seria no máximo de 1,5% ou 2%, não seria um confisco. Com isso, haveria uma arrecadação muito forte, e o país poderia reduzir os impostos que incidem sobre o consumo, principalmente o ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e prestação de Serviços], que é o principal vilão, responsável por metade da tributação do consumo. As alíquotas são muito altas, e isso aumenta muito o preço dos produtos e serviços. Na conta de energia elétrica ou de telefone, por exemplo, 25% do valor correspondem a esse imposto. O ICMS é de competência exclusiva dos estados, e pouca gente sabe disso, porque a mídia sempre fala como se o problema tributário fosse só do governo federal.
Idec: O Brasil tem hoje preços de serviços e produtos elevadíssimos, iguais ou até mais altos que os praticados em países desenvolvidos. Somente a carga tributária explica isso?
AK: Existe outro fator importante, que não é praticamente mencionado, que é o monopólio de empresas que atuam no início das cadeias produtivas. Elas têm a matéria-prima básica que será utilizada ou transformada por outras empresas até chegar ao consumidor final. Se o preço dessas matérias-primas é alto, contamina-se todo o resto.
Outra anomalia que explica os preços altos é o crediário, que no Brasil é caríssimo. Segundo os dados da Anefac [Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade], a taxa de juros para pessoa física e jurídica é de 90% ao ano, em média, enquanto nos países emergentes é de 10%. Da classe média para baixo, as pessoas não têm possibilidade de pagar à vista. Logo, as compras, em geral, são de 12 meses ou mais e, com isso, o preço de um produto é dobrado.
Então, são esses três fatores que explicam os preços altos no Brasil: carga tributária, cadeia produtiva e financiamento. Em alguns casos, a carga tributária se sobressai à cadeia produtiva, mas o que prevalece em todos os casos é a questão do crediário. As coisas poderiam ser diferentes se as taxas de juros fossem reduzidas.
Idec: Como fazer os bancos baixarem os juros?
AK: Os bancos têm três fontes de ganho no Brasil, e duas delas não existem no resto do mundo, só aqui. A primeira moleza é aplicar na Selic: o banco toma o dinheiro a zero no depósito dos correntistas e o aplica comprando títulos do governo, ganhando 9,5% ao ano. Outra fonte em que eles nadam de braçadas são as tarifas bancárias, que são monstruosas. O governo deveria simplesmente tabelar: os serviços bancários são esses, o valor é esse. Se o banco quisesse criar qualquer outro serviço, deveria pôr o preço lá embaixo. Ao secar essas duas fontes, a tarifa bancária e a Selic, restaria ao banco ir a campo para ganhar com empréstimos, como as instituições financeiras fazem no mundo todo. Essa é uma solução de mercado. O governo não precisa obrigar os bancos a praticar juros de 10% ao ano, basta secar essas duas fontes.
Idec: Este ano, entrou em vigor a lei que obriga a discriminação de impostos na nota fiscal de produtos e serviços. Porém, foi dado mais um ano para que as empresas se adaptem. Qual é a sua avaliação sobre a medida?
AK: É uma coisa muito difícil de se fazer, porque as alíquotas variam muito. Por exemplo, um sapato feito em São Paulo tem tantos por cento de ICMS; já se for feito no Pará, é outra coisa; se for importado, é uma terceira. Em outros países, o imposto é unificado sobre o preço do produto, então fica fácil. Aqui, seria mais interessante fazer um estudo da média dos percentuais para informar a população do que correr o risco de mostrar uma coisa que não é, longe da realidade.
Idec: As manifestações de junho pediam melhores serviços públicos. Mas, quando se fala em aumento de impostos, há resistência. Na capital paulista, por exemplo, a proposta de aumento do IPTU foi suspensa pela Justiça e causou protestos generalizados. Qual é a saída, então?
AK: Em primeiro lugar, a gestão. O setor público pode fazer muito mais quando trabalha com competência e honestidade. O dinheiro é público e deve ser bem o utilizado em serviços, em obras etc. Todo governante sempre diz que falta recurso, mas raramente ele fala que vai reduzir despesas desnecessárias.
Por exemplo, no caso do transporte coletivo em São Paulo, a alegação [para o aumento do IPTU] é que a tarifa será mantida por quatro anos. Mas não se falou em nenhum momento em fazer auditoria no sistema do transporte. É obrigação do governante fazer auditoria, não apenas no transporte coletivo, mas também para a coleta de lixo e outros serviços para os quais vai muito dinheiro.
Idec: Uma das razões para o aumento do IPTU em São Paulo é a valorização dos imóveis. Considerando-se que a especulação imobiliária tem elevado os preços em todo o país, o mesmo deve acontecer em outras cidades nos próximos anos?
AK: AK: Creio que não. O que deve ocorrer é a atualização do valor venal dos imóveis, e isso deve mesmo ser feito. Mas, ato contínuo, deve-se reduzir as alíquotas para evitar grandes distorções, porque elas foram dimensionadas para um valor venal bem mais baixo. Isso é o que deveria ser feito em São Paulo, e não foi. O valor venal é um fato técnico; a decisão política diz respeito à alíquota.
O IPTU é muito mal cobrado Brasil afora. Há algumas exceções, em que a cobrança é excessiva, mas na maioria das cidades é pouco cobrado. Muitos prefeitos fazem média com a população [isentando o imposto] e, depois, para justificar as promessas de campanha não realizadas, pedem recurso ao governo federal e estadual.
Idec: Os proprietários de automóveis pagam um imposto específico, o IPVA, que vai para os estados e municípios (50% para cada). Nunca se vendeu tanto carro como nos últimos anos, e nunca o trânsito nas metrópoles esteve tão caótico. Esses recursos não deveriam servir para melhorar os transportes públicos?
AK: Sim, mas, na realidade, o IPVA não é "carimbado", ou seja, não é definido que vai para o transporte. A arrecadação vai para o caixa do município e do estado. Cada governante estabelece qual é a prioridade para o uso desse dinheiro. Se ele achar que a mobilidade urbana é importante eleitoralmente, vai investir nisso: vai fazer corredores [de ônibus], vai pedir ao governo federal mais recursos etc., como está sendo feito em São Paulo.