Transgênicos: 10 anos à solta
Entre 1998 e 2003, uma decisão judicial obtida pelo Idec junto com o Greenpeace barrou a entrada de transgênicos no Brasil. A ação, contra a soja geneticamente modificada da Monsanto, a primeira a chegar ao país, pedia que o produto não fosse aprovado até que estudos comprovassem que não havia riscos para a saúde humana e para o meio ambiente. Em junho de 2003, no entanto, uma Medida Provisória passou por cima dessa decisão e autorizou a colheita da soja plantada ilegalmente.
Com esse início absurdo, a trajetória dos transgênicos no Brasil só podia ser ainda mais nebulosa e marcada por retrocessos. Alguns deles são contados nesta entrevista por Marijane Lisboa, representante dos consumidores na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão responsável por avaliar os pedidos de liberação de transgênicos no país. Ela faz parte de um grupo minoritário de conselheiros, que representa os interesses da sociedade civil e luta bravamente para que as análises da CTNBio sejam feitas com o rigor necessário. Marijane é socióloga, professora de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e também é associada do Idec.
Idec: Qual é o balanço que a senhora faz desses 10 anos dos transgênicos no Brasil?
Marijane Lisboa: O começo da história dos transgênicos no Brasil é de desregulamentação. Eles foram introduzidos no país por uma Medida Provisória, sem ter havido qualquer avaliação dos impactos à saúde e ao meio ambiente, o que já mostra a inviabilidade de uma política de biossegurança. Além disso, pouco tempo depois, a Lei de Biossegurança, de 1995, foi modificada, suprimindo a necessidade do aval da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] e do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis] para a liberação de transgênicos.
Se for para citar algo de positivo nessa trajetória, eu diria que foi aprender com os erros. Nesses 10 anos, vemos que tudo aquilo que foi dito a favor dos transgênicos não se cumpriu. Dizia-se que, com a introdução dos transgênicos, usaríamos menos agrotóxicos. Mas a realidade é que o Brasil se tornou o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, e isso muito em função do glifosato, utilizado na soja transgênica.
Idec: Desde 2007, a CTNBio aprovou todos os pedidos de liberação comercial de transgênicos feitos ao órgão. Em sua opinião, o que essa autorização irrestrita pode indicar?
ML: Indica uma posição majoritária da CTNBio a favor de transgênicos, uma identificação com eles – até porque boa parte dos membros da Comissão está ligada profissionalmente à criação de transgênicos. Outra parte deles, embora não seja de biotecnólogos, tem uma crença muito grande de que a ciência sempre fará aquilo que for melhor para a humanidade. Eu diria que eles têm uma visão ingênua, porque os cientistas da nossa época não escolhem livremente o que vão pesquisar. Como a pesquisa exige muitos recursos [financeiros], ainda mais em áreas como a de biotecnologia, boa parte das pesquisas responde aos interesses dos financiadores.
Idec: O feijão transgênico foi aprovado em 2011 pela CTNBio. A liberação da modificação genética dessa leguminosa, tão comum no prato dos brasileiros, é mais preocupante do que a de outras culturas, como a soja e o milho, por exemplo?
ML: Sim, porque, pela primeira vez, entramos diretamente na dieta do brasileiro e não estudamos o suficiente para saber quais consequências esses alimentos modificados podem trazer. As pesquisas, hoje, são só para verificar se a planta funciona agronomicamente, ou seja, se com a inserção de certos genes será possível usar tal agrotóxico, por exemplo, sem que a planta morra. A maioria dos testes de toxicologia com animais é feita por poucos meses. A primeira pesquisa realizada com um tipo de milho transgênico – autorizado no Brasil – por um prazo mais longo, conduzida por um pesquisador francês no ano passado, constatou uma quantidade enorme de cânceres em ratos a partir de 90 dias de consumo do milho, que é justamente quando terminam os testes que a Monsanto fez com o produto.
Há várias pesquisas independentes, como essa francesa que a senhora mencionou, que associam os transgênicos a riscos sérios para a saúde humana (sobretudo câncer). Há casos concretos que demostrem esses problemas, ou ainda é cedo para os efeitos aparecerem?
ML: Os efeitos nunca vão aparecer assim, pois não há como identificar, na saúde das pessoas, aquilo que possa ser consequência só da introdução do alimento transgênico, a não ser que se faça uma pesquisa isoladamente. É possível que esteja havendo uma incidência maior de certas doenças, como alergias, câncer, doenças do sistema imunológico etc. Para comprovar, é preciso ter uma pesquisa específica, como essa que comentei [estudo francês], que isolou os animais e os alimentou só com aquele produto, com todo o cuidado para que não haja nenhuma alteração em comparação com o grupo de controle.
Pelas regras da CTNBio, os estudos que baseiam a autorização dos transgênicos podem ser apresentados pelas próprias empresas que solicitam a sua liberação. Não deveria ser levada em conta alguma pesquisa independente, que garantisse a imparcialidade dos resultados?
ML: Sim, mas esse é um "defeito" que nós compartilhamos com boa parte do mundo, não só na questão dos transgênicos. Os estudos de impacto ambiental, por exemplo, são feitos pela própria empresa também. A lógica é que não faz sentido que o Estado assuma todos os gastos com os estudos para poder autorizar algo, então as empresas é que deveriam assumir esses custos. O que poderia ser feito é que órgãos públicos analisassem esses estudos, como era antes no caso dos transgênicos com o Ibama e a Anvisa, para autorizar ou não. Assim, comparativamente com a aprovação de projetos que afetam o meio ambiente ou a aprovação de remédios, no caso dos transgênicos, estamos muito mais na mão das empresas.
Quase todos os transgênicos cultivados no mundo são de plantas modificadas para suportar a aplicação de agrotóxicos sem morrer. No entanto, os estudos de segurança apresentados pelas empresas não levam em conta o uso desses venenos. Qual é a lógica disso?
ML: Não tem lógica, a não ser tornar o processo de aprovação mais fácil. Essa é uma questão contra a qual nós [representantes da sociedade civil no órgão] temos nos debatido na CTNBio. O argumento [da Comissão] é que são coisas separadas, que o impacto do agrotóxico será feito pela Anvisa e pelo Ibama. Mas o resultado eventual de um dano à saúde e ao ambiente não é a somatória do dano possível da planta transgênica mais o dano possível do agrotóxico, e sim como esse agrotóxico age na planta transgênica e como isso pode impactar na saúde humana e animal. É isso que a lei diz que deve ser feito: avaliar como o transgênico será usado e não ele em si, na estufa. Estamos estudando o que podemos fazer para que a lei seja respeitada.
Os transgênicos em avaliação atualmente na CTNBio são tolerantes a agrotóxicos de alta toxicidade, como o 2,4-D – um dos compostos do agente laranja, usado como arma química na Guerra do Vietnã, que causou milhares de mortes e malformações. Quais podem ser as consequências do uso desse tipo de veneno em sementes transgênicas para a saúde dos consumidores e para o meio ambiente?
ML: A gente não sabe e provavelmente nunca saberá, salvo quando se fizer pesquisas decentes. Aí nós vamos, provável e infelizmente, deparar com descobertas como as que tivemos em relação à Talidomida [medicamento receitado para gestantes como antienjoo, que causou graves malformação nos bebês], ao gás CFC, aos agrotóxicos à base de organoclorados etc. São casos que passaram para a história da medicina como algo que "não se sabia dos efeitos", porque não foram realizados os estudos necessários para comprovar que não havia risco. E isso porque quem quer liberar tem pressa. É um produto que visa ao comércio, visa a ganhar dinheiro. Portanto, o ritmo adotado não é o da precaução, o do cuidado com a saúde pública e com o meio ambiente, é o ritmo dos negócios. Atualmente, o 2,4-D só é autorizado para uso em transgênicos em um único país, o Canadá. Infelizmente, o Brasil deve ser o próximo.
A lei que obriga a rotulagem de alimentos transgênicos é uma conquista importantíssima para garantir o direito à informação dos consumidores. Contudo, já houve investigações que comprovaram que a regra não é adequadamente cumprida. Quais são as principais dificuldades para a fiscalização dessa lei?
ML: É muito difícil manter o controle de toda a produção [de alimentos] no Brasil e de tudo que vai para o mercado. A primeira dificuldade é de ordem administrativa: são testes caros e difíceis de serem feitos. Faltam recursos para os órgãos públicos de defesa do consumidor monitorarem essa questão – o que não é aleatório, porque falta recurso para isso, mas há para outras coisas. O grosso dos produtos que hoje são rotulados são aqueles que já foram alvos de investigação e dos quais se constatou o conteúdo transgênico, como os óleos de soja.
Existem leis de rotulagem em outros países parecidas com a nossa?
ML: Existem melhores. Na União Europeia, a lei exige a identificação e, inclusive, a rastreabilidade do produto transgênico. Por exemplo, se o animal foi alimentado com transgênico, essa informação tem de constar no rótulo da carne no supermercado. Contudo, há países que não têm nenhuma legislação a respeito, como os Estados Unidos. Lá, a rotulagem é voluntária.
Há três projetos de lei no Congresso para acabar com a obrigatoriedade da rotulagem de transgênicos. Muito embora as propostas sejam rechaçadas por várias entidades da sociedade civil (o Idec, por exemplo, tem campanhas contra esses PLs), há risco de eles prosperarem e que tenhamos um grande retrocesso nesse sentido?
ML: Há grande risco de haver retrocesso, porque a composição do Congresso atualmente é bastante favorável aos transgênicos. É o que chamamos de "bancada ruralista". Eles têm muita representação dos setores ligados ao agronegócio e às empresas de biotecnologia e constituem um segmento importante da base política do governo, que vive fazendo concessões ao setor.
No início de outubro, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou à CTNBio que suspenda a liberação comercial de transgênicos até que haja efetiva participação da sociedade civil no processo de decisão, com a realização de audiências públicas, por exemplo. A Comissão acatou o pedido?
ML: Não. Nós [representantes da sociedade civil na CTNBio] pedimos a intervenção do MPF porque estamos na iminência da aprovação da soja e de milhos que serão utilizados com o 2,4-D. Na última reunião, ocorrida em 17 de outubro, havia três pedidos de audiência pública: o do MPF, o feito por mim e pela Solange Telles [representante dos consumidores suplente] e outro pelo Idec. Houve votação e perdemos, porque não tivemos maioria absoluta de votos.
Em virtude desta recusa da CTNBio em realizar uma Audiência Pública, o MPF decidiu ele mesmo promover uma audiência sobre o assunto. Essa é uma excelente iniciativa, mas temo que boa parte dos conselheiros da CTNBio apresente desculpas para fugir ao debate. Se não se dispuseram a fazê-lo no seu próprio terreno, onde são maioria e ditam as regras, porque irão aceitá-lo em um ambiente no qual seus adversários intelectuais terão chance maior de expor seus argumentos e questioná-los?
O que podemos fazer agora é marcar posição sobre a maneira precária como as coisas vêm sendo feitas. Alguém tem que dizer o que está acontecendo! A sociedade brasileira não pode ser enganada, achar que os transgênicos estão sendo muito bem analisados, que a ciência não achou nada contra eles e que não há perigo. As pessoas precisam saber como não está sendo feita uma política de biossegurança.