O caminho das multas
O Idec investigou como funciona o processo de aplicação de sanções às empresas que desrespeitam os consumidores para responder a uma pergunta que você provavelmente já fez: "para onde vai esse dinheiro?"
"Procon-SP multa McDonald's em mais de R$ 3 milhões por propaganda abusiva". "Bradesco, Itaú e Banco do Brasil são multados por desrespeito aos direitos do consumidor". Essas são apenas algumas das muitas notícias recentes sobre multas aplicadas a empresas que cometem infrações consumeristas. Ao lêlas, muita gente deve se perguntar: "será que essas multas são pagas?" e "para onde vai o dinheiro?". Um desses questionadores é o associado do Idec Silvio da Silva Santos, de Santos (SP), que sugeriu que fizéssemos uma reportagem sobre o tema.
Assim, para responder a essas dúvidas, questionamos o Procon-SP, o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), ligada ao Ministério da Justiça, e as agências reguladoras nacionais de telecomunicações (Anatel), de planos de saúde (ANS), de energia elétrica (Aneel) e de aviação civil (Anac), sobre quanto cada um aplicou de multa nos últimos cinco anos e quanto foi efetivamente pago, além de outras dúvidas sobre o processo. A seguir, você confere as informações dadas pelos órgãos e também a opinião de alguns especialistas sobre o tema.
OUTRAS SANÇÕES POSSÍVEIS
Segundo o artigo 56 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), a multa é a sanção mais branda em caso de violação dos direitos do consumidor. Aplicada após a infração ser comprovada, ela pode custar de 200 Ufir (Unidade Fiscal de Referência) a 3 milhões de Ufir (hoje equivalente a R$ 500 mil e R$7 milhões, respectivamente), a depender da condição econômica e do porte da empresa; da vantagem que ela teve com a irregularidade; e da gravidade da infração. No entanto, essas regras só valem quando o CDC é utilizado como referência para a punição, o que ocorre no caso das multas aplicadas pelo DPDC e pelos Procons. As agências reguladoras costumam se basear em regulamentos específicos.
Para Ricardo Morishita, ex-diretor do DPDC e professor de direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro (FGV-Rio), é importante que, sempre que uma empresa causar danos coletivos aos consumidores, ela seja penalizada. A multa é a sanção mais usual, mas não é a única. O CDC prevê ainda outras penalidades, que podem ser aplicadas cumulativamente, como apreensão do produto; suspensão temporária da atividade da empresa; cassação de licença do estabelecimento ou da atividade; imposição de contrapropaganda, entre outros.
Plínio Lacerda Martins, da Promotoria de Defesa do Consumidor de Juiz de Fora (MG), defende a suspensão temporária das empresas infratoras por 24 ou 48 horas. "Isso, sim, abala a imagem da empresa. Nunca vi uma empresa mudar a conduta por causa de multa. As pequenas ainda se preocupam, mas as multinacionais, não", opina o promotor. Carlos Thadeu de Oliveira, gerente técnico do Idec, concorda que a suspensão pode ser uma boa medida. "Se algumas empresas prejudicam a sociedade reiteradamente, por que não suspender as suas atividades?", questiona.
No entanto, essas outras sanções não são tão comuns. "É mais interessante para os órgãos multar – porque a multa gera receita", critica Fernando Monteiro, mestre em direito empresarial e professor da pós-graduação da Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro (ESPM-Rio). "Se houvesse fiscalização contínua das empresas, muitas infrações seriam evitadas. Mas a fiscalização só é feita quando há denúncia", completa.
Para Amaury Oliva, atual diretor do DPDC, as multas têm o seu papel, mas deve-se encontrar uma forma mais efetiva de prevenir os conflitos. "É preciso combater as causas do problema, pois atuar apenas sobre os resultados é enxugar gelo. A prevenção de conflitos e a resolução de problemas de consumo é uma das prioridades do Plano Nacional de Consumo e Cidadania (Plandec), lançado em março pela presidente Dilma Rousseff", afirma.
Entre as agências reguladoras, é mais comum a aplicação de "penas alternativas". A Anatel, por exemplo, já proibiu a venda de novas linhas telefônicas até que a operadora apresentasse planos de melhoria e obrigou a oferta de ligações gratuitas de orelhões porque a concessionária não cumpriu a meta de densidade de telefones públicos. A ANS também tem adotado a suspensão da comercialização de planos que, reiteradamente, não garantem atendimento ao consumidor.
RECORRER É A REGRA
Como o Brasil é um Estado Democrático de Direito, a lei permite que as empresas multadas se defendam. Para isso, elas podem entrar com recurso junto ao próprio órgão que aplicou a sanção (o número de instâncias varia de um para outro) e também na Justiça. Embora a tendência do Judiciário seja confirmar a multa, muitas empresas recorrem e, assim, protelam o pagamento, às vezes, por quase dez anos. Por isso, o valor arrecadado é tão baixo se comparado ao aplicado: na média, menos da metade é efetivamente pago. "Em cinco anos, recolhemos apenas 5% [da quantidade]das multas que aplicamos", informa Oliva, do DPDC. Em relação ao valor arrecadado, o percentual é ainda menor: só 1,3%. A dificuldade em receber o pagamento não é exclusividade desse órgão. A ANS, por exemplo, recolheu apenas 13% das multas que aplicou de 2008 a 2012 (veja outros valores no infográfico da próxima página).
Para Monteiro, da ESPM-Rio, o problema não é a existência de recursos, mas a quantidade de instâncias e a morosidade do julgamento. "Em alguns órgãos, há possibilidade de recorrer a até três instâncias, além da Justiça. É uma forma de empurrar o pagamento da multa com a barriga. E isso torna essa forma de penalização ineficaz", declara. O gerente técnico do Idec pondera, no entanto, que não dá para exigir só dos órgãos fiscalizadores e esquecer a responsabilidade das empresas. "São elas quem descumprem as regras e que recorrem indefinidamente", lembra.
Renan Ferraciolli, assessor-chefe do Procon-SP, afirma que os recursos administrativos (feitos ao próprio órgão) não costumam demorar tanto para serem resolvidos, o problema é quando vão parar na Justiça. "Os recursos são julgados em até um ano. Já quando as empresas recorrem à Justiça, costuma demorar até seis anos, porque muitos casos chegam ao STF [Supremo Tribunal Federal]", comenta. "Nos últimos anos, devido a essa demora, as multas não têm surtido o efeito esperado. Por isso, começamos a aplicar também outros tipos de penalização, como fechamento de unidades de supermercado que vendem produtos vencidos, por exemplo", informa Ferraciolli.
Para o Idec, quando as empresas protelam o pagamento de multas, ou ainda, quando incluem esse "custo judicial" nos seus produtos e serviços (ou seja, assumem o risco da sanção), elas penalizam o consumidor várias vezes, além de onerar o Estado. "Quando o serviço não é prestado de maneira adequada, o consumidor é desrespeitado; depois, precisa recorrer a órgãos de defesa do consumidor ou à Justiça [para resolver a questão]; e, finalmente, paga mais caro por um serviço que carrega no preço os custos judiciais. Para o Estado, há os gastos de manter os Procons, a fiscalização e as medidas administrativas, além da estrutura das agências reguladoras. É um círculo vicioso e, ao final, só as empresas infratoras ganham", argumenta Oliveira.
Para forçar as empresas a pagar o que devem, alguns juízes estão exigindo que aquelas que pretendem recorrer da decisão depositem o valor integral da multa em um fundo. Esse dinheiro é devolvido caso ela ganhe a causa. "Assim, as empresas não têm como escapar. É uma espécie de cheque-caução da multa", compara Oliva. Em Juiz de Fora, o Procon tem colocado em prática outra estratégia: quando a empresa comete uma infração pela primeira vez, "ganha um desconto", ou seja, pode pagar um valor mínimo, bem abaixo da pena-base. Mas, se a empresa recorrer e a infração for confirmada, ela perde o benefício. "Essa é uma forma de estimular os infratores a não recorrer", afirma Martins.
PARA ONDE VÃO?
A resposta a essa pergunta não é tão simples, já que o dinheiro arrecadado com as multas não tem um, mas vários destinos, a depender do órgão que aplica a sanção. No caso do DPDC, o montante é depositado no Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD), conforme prevê o artigo 57 do CDC. O FDD subsidia projetos de instituições governa mentais (nas esferas federal, estadual e municipal) e não governamentais relacionados a meio ambiente, defesa do consumidor, bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico ou paisagístico. O fundo conta com um conselho que ajuda a definir em quais projetos o dinheiro será investido. O Idec é um dos membros.
Já o destino do dinheiro arrecadado pelos Procons vai para os cofres do próprio órgão e é usado para manter as suas atividades, o que acaba beneficiando os consumidores. As agências reguladoras, por sua vez, têm regras próprias para a aplicação de sanções às empresas infratoras (leia mais sobre o destino das multas no infográfico abaixo).
Morishita defende que o dinheiro advindo de multas deve ser usado para fins relacionados ao motivo da sanção. Martins concorda e exemplifica: "Não faz sentido usar o dinheiro de multas consumeristas para comprar uma ambulância", opina.