Criança: alvo fácil da publicidade
Faça um teste: na semana do Dia das Crianças, ligue a TV durante a programação infantil e tente contar quantos anúncios publicitários são veiculados em 10 minutos, digamos. Em 2010, o Instituto Alana, organização de defesa dos direitos da criança, fez isso e viu que um canal infantil pago exibia uma propaganda a cada dois minutos. Embora mais acentuada por causa da data, a publicidade para o público infantil ocorre o tempo todo e em quase todos os lugares, inclusive nas escolas. Para discutir quais são os efeitos que esse bombardeio de apelos de consumo pode exercer sobre as crianças, entrevistamos a advogada Isabella Henriques, diretora do Instituto Alana e coordenadora geral do projeto Criança e Consumo, que ajudou a criar e a implementar na instituição. Nesta entrevista, Isabella fala sobre os problemas do consumismo infantil e a necessidade de impor limites à publicidade dirigida às crianças.
Idec: Quais são os principais prejuízos da publicidade infantil, tanto para as próprias crianças quanto para a sociedade?
ISABELLA HENRIQUES: Pesquisas científicas no mundo inteiro mostram que, até os 12 anos de idade, a criança não consegue analisar criticamente os apelos publicitários. Ela, que está em um momento de desenvolvimento, acaba absorvendo os 'desvalores' passados pela publicidade e acreditando que os bens materiais são absolutamente imprescindíveis para ela se reconhecer como alguém. Esses valores materialistas provavelmente serão levados pelo resto da vida. No futuro, essas crianças serão adultos que fazem de tudo para ter cada vez mais dinheiro, para consumir cada vez mais e que nunca estão satisfeitos.
Há ainda outros problemas, como a questão da violência, que, claro, está ligada a fatores socioeconômicos, a estrutura familiar etc. Mas também sabemos do impacto que a publicidade pode ter numa criança que vive em situação de extrema vulnerabilidade social, que não tem acesso a nada do que aparece na televisão, mas que é igualmente atingida pelos estímulos ao consumo.
Idec: Hoje, não se vê mais propagandas como a famosa "Compre Baton, seu filho merece Baton", da marca de chocolates Garoto, veiculada nos anos 90. Expressões como "compre" foram abolidas pelos anunciantes. Em sua opinião, houve avanços ou só mudaram as estratégias?
IH: A publicidade está mais sofisticada. Ela não diz mais "compre Baton", "eu tenho, você não tem", mas fala a mesma coisa de outras formas. Além disso, hoje há uma oferta muito maior de produtos infantis do que havia antigamente. Houve também uma descoberta do mercado de que a criança é não só um consumidor atual e potencial para o futuro, como também que pode influenciar as compras dos adultos: há estudos que dizem que as crianças chegam a influenciar de 70% a 80% das compras da família. Tudo isso ampliou a comunicação dirigida a elas.
Diante disso, os pais e a sociedade passaram a reclamar de todo esse assédio, e também surgiram as organizações que fazem esse papel vigilante de forma consistente e contínua. Para evitar que o poder público limitasse a publicidade, o próprio mercado começou a dar "respostas" a essas queixas por meio da autorregulação – ou seja, regras feitas por eles mesmos, independentes do poder público. O Conar [Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária] criou algumas diretrizes, como o não uso de palavras imperativas e de expressões que digam para a criança pedir determinado produto aos adultos. Mas a autorregulação não acabou com o problema, só o sofisticou. A publicidade de alimentos, por exemplo, diminuiu muito na televisão; mas aumentou na internet e dentro das escolas – lugares mais difíceis de serem fiscalizados e de a sociedade, como um todo, enxergar o que está acontecendo.
Idec: O Brasil tem uma legislação forte no que diz respeito à proteção dos direitos da criança em relação à publicidade, como os princípios previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e também no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Por que eles não são suficientes para evitar abusos?
IH: Para o Instituo Alana, as regras do ECA e do CDC seriam suficientes para coibir qualquer tipo de abuso. Mas, para isso, é preciso fazer uma interpretação. Temos de considerar o artigo da Constituição que fala sobre os direitos da criança de uma maneira ampla; o ECA, que detalha esses direitos; o artigo 36 do CDC, que diz que toda publicidade precisa ser identificada como tal pelo receptor, e o artigo 37, que classifica como abusiva a publicidade que se aproveita da deficiência de julgamento da criança. Ao juntar esses dispositivos, concluímos que toda e qualquer publicidade dirigida à criança é ilegal e abusiva.
Contudo, para chegar a essa conclusão, é preciso se fundamentar em pesquisas que mostram que a criança não entende, que até certa idade não diferencia publicidade de entretenimento. E aí entramos em um campo de certa subjetividade, pois, enquanto esses resultados de que falo são de pesquisas independentes, feitas por pessoas que não tinham interesses declarados, o mercado também faz estudos que, muitas vezes, chegam a outras conclusões. Em qual delas se balizar? Por isso, seria muito bom que o Brasil tivesse uma legislação específica [sobre publicidade infantil]. Nós apoiamos uma proposta que vise a proibir completamente qualquer tipo de comunicação mercadológica dirigida ao público infantil, já que, sob o nosso ponto de vista, ela é abusiva e ilegal.
Idec: Há diversos projetos de lei em andamento no Congresso com o objetivo de regular a publicidade infantil. Quais são as dificuldades para que eles prosperem?
IH: Existe uma forte movimentação do setor contra as propostas. As associações de classe (da indústria de refrigerantes, da indústria alimentícia, das agências de publicidade etc.) participam das audiências públicas sobre o tema para defender que não haja nenhum tipo de restrição à atividade publicitária, desqualificando a discussão e os nossos argumentos. Isso atrasa muito o desenlace do tema, porque o Legislativo fica tentando mediar e chegar a um consenso. O projeto de lei 591/2001, o mais emblemático sobre publicidade infantil, por exemplo, tramita no Congresso há 12 anos sem nenhuma perspectiva de ser aprovado.
Idec: Os anunciantes e a indústria argumentam que cabe aos pais controlar ao que seus filhos assistem ou o que compram, dispensando, portanto, a regulação da publicidade pelo Estado. Dá para responsabilizar apenas os pais?
IH: Os pais são vítimas nessa história também. O mercado sabe como captar a atenção e o desejo da criança. Ainda que tenham informação, os pais não têm condições de brigar contra o volume de investimento e de recursos feito pelo mercado. A publicidade está em todos os lugares: na escola, no jogo eletrônico, na televisão, nos games etc.
De acordo com a Constituição, a responsabilidade pelo cuidado das crianças é compartilhada entre a família, a sociedade e o Estado, cada qual na sua esfera. A família é responsável por educar e informar. Os anunciantes, como parte da sociedade, não podem se eximir, nem violar os direitos da criança sob o pretexto de que são os pais quem decidem.
Idec: Em março deste ano entrou em vigor uma norma do Conar que proíbe o merchandising de produtos ou serviços para o público infantil. Qual é a sua avaliação sobre essa regra?
IH: Muito antes de o Conar criar essa norma, já havia um parecer da Procuradoria dos Direitos do Cidadão, na esfera federal, de que o merchandising para o público infantil é ilegal – o que fundamentou uma multa aplicada pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor [DPDC, do Ministério da Justiça] ao canal SBT, inclusive. Para o Alana, o merchandising infantil é muito abusivo, pois, se a criança não entende a publicidade tradicional, a embutida no merchandising é ainda mais mascarada. Ele é feito de propósito para que a criança não reconheça [a publicidade]. Com essa regra, o Conar deu uma resposta à sociedade porque se viu pressionado.
Idec: Frequentemente, o Instituto Alana notifica empresas de diversos segmentos por abusos na propaganda dirigida ao público infantil, e também faz denúncias ao Ministério Público sobre essas práticas, as quais, em muitos casos, resultam em ações judiciais. Quais foram os casos mais emblemáticos?
IH: Entre os casos mais emblemáticos [de sucesso] estão os dois em que o Ministério da Justiça multou o SBT por merchandising em programas infantis. Outra grande vitória foi na área de alimentos, quando o Procon [de São Paulo] aplicou multas milionárias, algo em torno de R$ 3 milhões, contra o Mcdonald's e o Habib's pela venda conjugada de brinquedo com lanches. No judiciário, temos um caso contra a Bauducco que é importante porque foi o primeiro em que o Tribunal de Justiça [TJ] reconheceu a abusividade da publicidade para o público infantil. No início, nas primeiras representações, o judiciário rechaçava as ações movidas pelo Ministério Público a partir de nossas denúncias. Depois, começamos a ganhar em primeira instância, mas quando chegava ao tribunal, as decisões eram reformadas. Hoje, percebemos que o TJ começa a ficar sensível a essa discussão.
Idec: No Brasil, 30% das crianças têm sobrepeso e 15% são obesas. Ao mesmo tempo, 90% da publicidade de alimentos dirigida ao público infantil são de produtos não saudáveis, com alto teor de gorduras, açúcar e/ou sódio. Embora a obesidade tenha muitos fatores, você diria que há uma relação direta entre esses dados?
IH: A obesidade tem várias causas, sim, inclusive fatores genéticos. Mas a publicidade é um fator importante. Um estudo realizado nos Estados Unidos estima que, se hoje acabasse por completo a publicidade de alimentos voltados ao público infantil na televisão, haveria uma redução de 18% dos casos de sobrepeso em crianças de três a 11 anos de idade, e de 14% entre adolescentes de 12 a 18 anos. Quer dizer, até 18% de redução de um problema gravíssimo com uma única medida! Claro que, para o combate a obesidade de forma ampla, é necessária uma política maior, que toque na questão do acesso a alimentos mais saudáveis, dos preços etc. Mas, sem dúvida, a publicidade tem impacto na obesidade. O próprio mercado reconhece isso ao fazer acordos de autorregulação, em que as empresas dizem que não farão mais propaganda de alimentos não saudáveis para as crianças.
Idec: Em 2008, grandes empresas multinacionais de alimentos anunciaram acordos desse tipo no Brasil, afirmando que não fariam mais publicidade de produtos não saudáveis para o público infantil. Na prática, alguma coisa mudou?
IH: Há vários problemas nesses compromissos. O primeiro deles é sua a redação, que prevê várias exceções às regras. Há previsões como: "Não permitimos publicidade em escolas, a menos que o direitor da escola solicite e que a atividade tenha enfoque educacional" e "Não permitimos publicidade para crianças menores de 12 anos de produtos com excesso de sódio, gordura saturada ou trans, de acordo com o critério nutricional da empresa". Detalhe: se cada empresa faz o seu próprio critério nutricional, a que prodzuz mais alimentos com sódio, pode estabelecer um [parâmetro] mais brando para esse nutriente etc. Assim, os critérios podem ser tão flexíveis que os mesmos produtos continuam sendo anunciados porque não são classificados como "não suadáveis". Mesmo assim, muitas empresas assinaram o compromisso e sequer apresentaram seus critérios nutricionais.
Idec: No atual cenário, o que os pais podem fazer para proteger as crianças do bombardeio de publicidade e educá-las para consumir de forma consciente?
IH: O primeiro passo é a informação. Os adultos devem estar atentos a toda essa avalanche publicitária para que, de alguma forma, consigam minimizar os seus efeitos, buscando espaços onde a criança não esteja tão suscetível a essas mensagens. Uma dica para isso é que a família diminua o tempo em que a criança fica em contato com a mídia – internet e televisão. Outra sugestão é não limitar o lazer a ambientes de consumo. Em vez de passar o sábado inteiro no shopping, por exemplo, buscar alternativas ao ar livre, como parques, praças etc. Se a criança for condicionada a atrelar lazer a consumo, no futuro será mais difícil mudar esses valores.
SAIBA MAIS
• Instituto Alana: www.alana.org.br