Vilões à mesa
"Inofensivos" para a maioria das pessoas, alguns alimentos podem causar reações adversas a quem sofre de intolerância ou alergia alimentar. Entenda a diferença e os principais desafios de quem convive com algum desses problemas
Em maio de 1998, o que era para ser mais um típico café da manhã na casa da aposentada Jacimar Gomes, do Rio de Janeiro, terminou no pronto-socorro. Após a refeição, ela passou o dia sentindo dores abdominais e decidiu ir ao hospital, onde foi medicada e fez exames. O motivo do desconforto foi descoberto alguns dias depois: intolerância à lactose.
Desde então, a carioca reduziu a ingestão de alimentos que têm leite na composição, mas a mudança não foi fácil. "Tive de adaptar toda a minha dieta. Troquei o leite de vaca por um que não contém lactose e passei a comer mais produtos integrais e orgânicos. Mas sinto falta do sabor de alguns itens que já não posso mais comer, sem contar que esses alimentos que tive de inserir no meu cardápio são muito mais caros", diz.
Casos como o de Jacimar são muito comuns: a intolerância à lactose atinge aproximadamente 40% da população. Outros tipos de alimentos também causam reações semelhantes. "Na infância, a maioria das intolerâncias alimentares é causada por leite, ovos, soja, glúten e amendoim. Entre os adultos, castanhas, peixes e frutos do mar são os mais citados em casos clínicos", aponta Paula Canavó, nutricionista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, de São Paulo (SP).
Junto com a intolerância, as alergias a diferentes tipos de alimentos também atingem grande parte da população. A representante comercial Ana Rita de Freitas Almeida, de Ribeirão Preto (SP), é um exemplo. Ela sempre se queixou de coceira no corpo, até que descobriu sua alergia ao corante tartrazina. "Minha boca fica endurecida e, às vezes, minha garganta 'fecha', dificultando a respiração", diz. "Desde que a alergia foi diagnosticada, parei de comer tudo o que tem corante artificial, como molhos e sucos industrializados", conta Ana Rita.
ALERGIA OU INTOLERÂNCIA?
Muitas pessoas pensam que alergia e intolerância alimentar são a mesma coisa. No entanto, segundo Canavó, embora os sintomas apresentados sejam semelhantes e, nos dois casos, o problema possa ser de nascença ou adquirido ao longo da vida, as causas de uma e de outra são diferentes. "A intolerância é a incapacidade de digerir determinados alimentos ou aditivos alimentares pela falta de alguma enzima necessária para completar a digestão. Com o passar dos anos, as enzimas podem se tornar ineficientes, o que explica os casos de intolerância adquirida", informa a nutricionista. Já a alergia envolve mecanismos imunológicos. "Trata-se de manifestações resultantes das reações do organismo contra alérgenos, isto é, substâncias estranhas ao seu funcionamento, que podem ser alimentos, toxinas, fungos, aditivos alimentares, entre outros", esclarece.
Ainda de acordo com a especialista do Hospital Oswaldo Cruz, tanto a intolerância quanto a alergia estão relacionadas à predisposição genética. Por isso, para detectá-las, é importante avaliar os antecedentes familiares e a chamada "história alimentar", que diz respeito ao tempo de amamentação, à relação entre a introdução de novos alimentos e a ocorrência de sintomas, entre outros.
Há medicamentos para o tratamento dos sintomas dos dois problemas, mas ainda não existe um remédio preventivo. A depender do grau de intolerância, a diminuição do consumo de alimentos que não são corretamente digeridos pode solucionar a questão. Porém, em determinados casos, é necessário retirá-los de vez da dieta. "Isso varia de pessoa para pessoa. Algumas são intolerantes à lactose, mas podem consumir iogurtes", exemplifica Paula. Para evitar reações alérgicas, a saída é deixar de ingerir os alimentos, além do uso de medicamento anti-histamínico, que pode amenizar o problema.
OS OLHOS NÃO VEEM, MAS O ORGANISMO SENTE
Outro problema que as pessoas alérgicas ou intolerantes a alguns alimentos enfrentam é a dificuldade de encontrar informações nos rótulos dos produtos. Jacimar conta que passou mal durante uma viagem a Paris, na França, pois não conhecia a língua local e acabou comendo alimentos que tinham mais leite do que o seu organismo poderia aceitar. "Quando estou em casa, é mais fácil controlar a quantidade de leite que consumo, pois eu mesma preparo as refeições. Lá, não tinha como verificar tudo o que comia. Acabei não aproveitando tanto a viagem por conta dos desconfortos abdominais", relembra.
Contudo, mesmo no Brasil, onde não há o obstáculo da língua, o problema permanece. Ana Rita diz que não consegue fugir da tartrazina, mesmo conferindo os rótulos dos produtos antes de comer. "Há alguns meses, preparei uma pipoca de micro-ondas em casa e tive uma das piores crises de alergia. Minha garganta 'fechou' e tive de tomar um antialérgico para melhorar. Não imaginei que a pipoca teria tartrazina, pois o rótulo não indicava a presença dela", relata.
De acordo com a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 340/2002 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), é obrigatória a declaração por extenso da presença do corante tartrazina no rótulo dos alimentos, tendo em vista que ele é um dos compostos que mais causa alergia à população. No entanto, as experiências de Ana Rita mostram que a regra está longe de ser respeitada. "Às vezes, [o corante] é indicado como amarelo crepúsculo 4 ou INS 102. Precisei pesquisar por conta própria todos os termos usados para se referir à tartrazina, para evitar reações alérgicas", reclama a representante comercial.
Além da RDC nº 340, que determina a informação sobre a presença desse corante, o Brasil também conta com a Lei nº 8.543/1992, que obriga a advertência sobre a presença de glúten em todos os alimentos industrializados. O glúten é uma proteína naturalmente presente em alguns cereais, como trigo, cevada, centeio e aveia, mas algumas pessoas (portadoras da chamada "doença celíaca") não conseguem digeri-lo. Para elas, a sua ingestão, mesmo que mínima, pode provocar danos à parede do intestino e outras reações adversas.
Para a advogada Maria Cecília Cury Chaddad, que estuda a questão da informação nos rótulos em relação a alergias e intolerâncias alimentares, a legislação brasileira sobre o assunto é insuficiente. Segundo ela, seria importante que a lei exigisse o detalhamento de cada ingrediente dos produtos industrializados, pois muitas vezes os fabricantes indicam na embalagem nomes que não são conhecidos pela população. "Um exemplo é a caseína. Nem todo mundo sabe, mas se trata de uma proteína encontrada no leite. Quem não está familiarizado com o termo e tem alergia ou intolerância à bebida certamente será prejudicado", afirma.
A nutricionista do Idec, Ana Paula Bortoletto, concorda que as regras sobre a rotulagem ainda têm muito a melhorar. "As informações sobre os ingredientes presentes devem ser mais claras e mais bem dispostas nas embalagens. O tamanho da letra e a localização no rótulo ainda dificultam a leitura dos consumidores", destaca.