Trabalho escravo: a culpa também é minha?
A falta de informações sobre a cadeia produtiva das empresas torna quase impossível ao consumidor ter certeza de que os produtos que compra não foram fabricados em condições degradantes de trabalho. Mas há algumas formas de tentar fazer a sua parte no combate à prática
Todos os anos, milhares de pessoas saem de suas cidades ou seus países de origem com uma promessa de emprego e a esperança de mudar de vida. A realidade, porém, é dura: ganham centavos por produção; emendam semanas de trabalho sem folga, com jornadas de mais de 12 horas diárias; moram no próprio local de trabalho, num quarto apertado e com estrutura improvisada. Acumulam dívidas de aluguel, alimentação, luz e água até um ponto em que se torna impossível pagar. Esse é o retrato dos trabalhadores em condição análoga à escravidão, situação ainda muito comum no Brasil.
O problema é real tanto nas zonas rurais quanto urbanas. Naquela, a prática ocorre principalmente no corte de cana, na pecuária bovina e na extração de carvão. Na cidade, além de muitos casos na construção civil, impressionam os repetidos flagras em oficinas de costura prestadoras de serviço de famosas marcas de roupas. "São os segmentos que empregam pessoas de baixa qualificação, em regiões onde há um aquecimento de demanda por mão de obra", explica Luiz Carlos Fabre, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), órgão que investiga esse tipo de exploração.
Diante dessa realidade, tão próxima que pode estar dentro de nosso próprio guarda-roupas, o consumidor seria "cúmplice" desse sistema perverso de exploração abusiva de mão de obra? O fato de comprar uma peça de uma marca envolvida faz com que esteja colaborando com a prática?
O jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG Repórter Brasil, que se dedica ao tema, e membro da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, afirma que existe uma forte tendência de se culpar o consumidor, como se ele fosse a causa da existência do trabalho escravo. "Ele participa do processo ao adquirir os produtos, é verdade, mas é a empresa dona da marca a responsável pelas obrigações sociais, trabalhistas e ambientais de sua cadeia produtiva", afirma.
Após os flagrantes, a resposta-padrão das empresas envolvidas costuma ser "eu não sabia". Apenas para citar um caso mais recente, em junho deste ano uma blitz do MPT, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e da Receita Federal libertou 28 bolivianos que trabalhavam em situação degradante em oficinas que prestavam serviço à Restoque, empresa dona das marcas de luxo Le Lis Blanc e Bourgeis Bohême (Bo.Bô). Os trabalhadores eram submetidos a servidão por dívida e também haviam sido vítimas de tráfico internacional de pessoas. A descoberta foi resultado de uma investigação iniciada três meses antes.
Na audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), em agosto, a Restoque alegou que o problema havia sido detectado em oficinas "quarteirizadas", com as quais nem possuía relacionamento. No entanto, segundo o MPT, a empresa é, sim, responsável. "Ela faz controle de qualidade das peças produzidas, mas tem uma 'cegueira deliberada' quanto às condições de trabalho em sua cadeia produtiva", ressaltou o órgão na ocasião.
Oficialmente, a escravidão foi abolida no Brasil em 13 de maio de 1888. Desde então, é proibido que um ser humano seja dono de outro no país. Por isso, diz-se que existem, atualmente, situações semelhantes ou análogas ao trabalho escravo, porque elas também cerceiam a liberdade e suprimem a dignidade do trabalhador.
De acordo com dados do Ministério do Trabalho e Emprego, apenas no ano passado, quase três mil pessoas foram encontradas submetidas à escravidão contemporânea. Os estados do Pará, Tocantins e Paraná foram onde mais houve a incidência de vítimas.
COMO SABER?
Quando se trata do consumidor, a justificativa de que não sabia das más condições de fabricação dos produtos que adquire faz bem mais sentido. "Não existe, no Brasil, um canal oficial com informações sobre as cadeias produtivas das empresas", lembra João Paulo Amaral, pesquisador do Idec. Mas ele sugere alguns caminhos para que o consumidor tente descobrir o envolvimento das empresas de quem costuma comprar com trabalho escravo. "Pesquise na internet estudos sobre a cadeia de produção da marca em que você tem interesse. Buscar pelo termo 'trabalho escravo' e o nome da marca também pode revelar se existe alguma denúncia relacionada", recomenda. "Consultar o site de ONGs que trabalham com direitos humanos também pode ser uma boa opção", completa Amaral.
Leonardo Sakamoto destaca outra fonte de informação para o consumidor: a "lista suja" dos empregadores flagrados utilizando mão de obra em condições degradantes, disponível no site do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (www.pactonacional.com.br). A inscrição na lista só ocorre quando são esgotados todos os recursos disponíveis à empresa, por isso pode demorar para que ela figure no cadastro. "O consumidor também pode verificar, nesse mesmo site, se a empresa é signatária do Pacto Nacional, um sinal de que ela se comprometeu a manter sua cadeia produtiva livre do trabalho escravo e de cortar relações comerciais com empresas que integrem a 'lista suja'", indica o coordenador da Repórter Brasil.
DENUNCIAR E BOICOTAR
Quando a exploração de trabalho em condições degradantes chega a conhecimento público, por meio da imprensa, por exemplo, o consumidor tem a possibilidade de espalhar essa informação negativa a respeito da empresa entre seus contatos. "Hoje, o consumidor tem um papel fundamental na influência da marca a outras pessoas e pode usar as redes sociais, por exemplo, para isso. Dessa forma, ele estará não só cumprindo seu papel de cidadão, como também mostrando o problema a outras pessoas e, quem sabe, levando a uma ação coletiva de boicote", afirma João Paulo Amaral.
Mas um boicote às marcas é efetivo? Depende. Para Sakamoto, o grande medo da empresa não é a possível queda nas vendas, que provavelmente terá pouco impacto em seus lucros – afinal, dar as costas a uma marca quando boa parte de seus concorrentes têm os mesmos problemas pode funcionar por um tempo, mas não para sempre. "Um arranhão na imagem, na marca, cuja reputação leva anos para ser construída, preocupa muito mais. Se a opinião pública deixa de acreditar que aquela empresa é o que promete ser e toma consciência de que ela está atrelada a algo tão negativo quanto o trabalho degradante, isso faz com que investidores fujam e até que as suas ações na Bolsa caiam nos dias seguintes à denúncia", afirma o jornalista.
Por isso, todo o barulho que o consumidor puder fazer diante de um caso de trabalho escravo é muito bem-vindo.
• Repórter Brasil: www.reporterbrasil.org.br
• Documentário Combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil, do MPT: goo.gl/olrTZa
• PEC do trabalho escravo: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 57-A/1999, em discussão no Senado, visa a expropriação de imóveis onde for flagrada mão de obra escrava: www.trabalhoescravo.org.br