Em defesa da saúde pública
Vinte e cinco anos depois da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a discussão sobre a eficiência do serviço vive um dos momentos mais acalorados, em reflexo às recentes manifestações que tomaram as ruas do país, clamando por serviços públicos de qualidade. Ao mesmo tempo, os olhares se voltam para os problemas crescentes dos planos de saúde e para a atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula o setor. Para analisar esse cenário, conversamos, por telefone, com a pesquisadora Ligia Bahia. Professora de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ligia possui amplo conhecimento sobre as intrincadas relações entre o público e o privado no sistema de saúde brasileiro. Para ela, o modelo ideal para o serviço funcionar no país é aquele que foi pensado há duas décadas e meia: SUS abrangente e de qualidade para todos e planos de saúde suplementares para quem realmente pode pagar. Só falta sair do papel.
Idec: O SUS foi criado com o propósito de garantir atendimento público de qualidade a todos os brasileiros. Porém, hoje, a saúde é o item mais mal avaliado pela população, segundo as pesquisas de opinião. Quais foram os principais motivos que, ao longo dos anos, desviaram o SUS de seu caminho?
LIGIA BAHIA: O principal motivo é que há uma dissonância entre o SUS previsto na Constituição e a existência de suportes para que ele se efetive. Nós não temos recursos financeiros suficientes, nem aplicação adequada do dinheiro; não temos recursos humanos bem distribuídos; e não temos recursos políticos – o que, para mim, é o principal problema. Não temos uma política estatal para o SUS, mas sim uma descontinuidade da política de saúde nos sucessivos governos. Enquanto a saúde for política de governo e não de Estado, não teremos um SUS de qualidade, abrangente, que olhe dignamente pela população.
Idec: Uma mostra da insatisfação dos brasileiros com a saúde foi dada nas recentes manifestações. Em resposta, a presidente Dilma Rousseff anunciou medidas, entre as quais se destaca o projeto "Mais Médicos". O que a senhora acha da proposta?
LB: O programa Mais Médicos é insuficiente para dar respostas aos problemas de saúde da população brasileira. Para resolvê-los, é preciso que haja serviços de saúde adequados, com médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas etc.; equipamentos; acesso a exames. Ou seja, é necessário um conjunto de condições para que a saúde seja alcançável a todos, enquanto o programa está centrado no samba de uma nota só: "precisamos de mais médicos e vamos contratá-los onde quer que seja". Não é que não existam vazios sanitários no Brasil, pelo contrário. Mas a maneira de lidar com esse problema está equivocada. O remédio está completamente errado para o diagnóstico.
Idec: Muito se fala que o SUS é subfinanciado, ou seja, que o governo gasta menos do que deveria com a saúde. Qual é a sua avaliação das atuais regras para o repasse de verba pelo Executivo Federal? Elas são muito diferentes das de outros países que se propõem a ter um sistema de saúde pública universal?
LB: São muito diferentes. Nos outros países, pelo menos 70% dos recursos para a saúde são públicos. No Brasil, hoje, só 45% dos gastos [com saúde] são públicos, a maior parte é privada. Então, a gente tem um sistema de saúde universal, mas com padrão de financiamento de sistema de mercado. O nosso padrão de financiamento é incompatível com o preceito constitucional da universalidade do sistema, da garantia de saúde a toda a população.
Idec: Ao mesmo tempo em que alega falta de recursos para ampliar o investimento no SUS, o governo federal estuda desonerar as operadoras de saúde suplementar em troca de mais oferta de planos privados – diminuindo, portanto, a arrecadação que poderia ser revertida para a saúde pública. O que explica essa opção em privilegiar o setor privado em detrimento do público?
LB: Há uma ideia que algumas pessoas têm, inclusive do atual governo, de que é muito bom que o número de pessoas com planos de saúde cresça, pois assim diminuiria a demanda sobre o SUS. Entretanto, não é isso que a gente vê: São Paulo, que é uma cidade com uma grande quantidade de pessoas com planos de saúde, tem uma fila imensa para o SUS. Na atual lógica mercantilizada do nosso sistema de saúde, em que o que não é rentável para a operadora não é oferecido ao usuário, mesmo as pessoas que têm planos privados precisam recorrer ao SUS.
A ideia é que agora "somos um país de classe média", e classe média tem de ter plano de saúde. Na realidade, isso é impossível. O plano de saúde com cobertura abrangente é extremamente caro, inalcançável para a chamada classe média, e mesmo os considerados melhores têm restrições de cobertura. O que deveríamos ter é um SUS abrangente, de boa qualidade para a imensa maioria da população, e planos de saúde caros para quem de fato é rico.
Idec: Uma pesquisa divulgada no início de agosto aponta que ter um plano de saúde é o terceiro maior desejo dos brasileiros, depois da casa própria e de educação. Os principais motivos apontados pelos entrevistados para almejar o serviço privado são "qualidade do atendimento" e "segurança" em caso de doença. O que explica tal crença, quando a realidade mostra que os consumidores de planos de saúde sofrem com negativas de cobertura e reajustes altíssimos de mensalidade, entre outros problemas?
LB: Essa pesquisa foi realizada pelo Instituto de Estudos em Saúde Suplementar, que é o lobby das empresas. Ela é muito mal elaborada, com perguntas que induzem a respostas. Na realidade, se a gente perguntar se as pessoas querem saúde pública de qualidade com garantia de atendimento, certamente elas responderiam "sim".
A pesquisa deveria avaliar como é a realidade [dos planos], como é o atendimento. Uma pergunta importante seria: você tem plano de saúde e alguma vez não conseguiu usá-lo? Mas essa questão não foi feita, porque a pesquisa foi encomendada para receber uma resposta favorável à expansão dos planos privados de saúde. Ela é tendenciosa e muito pouco científica.
Idec: O número de consumidores de planos de saúde cresceu muito nos últimos anos e, hoje, já representa 25% da população. Boa parte desse aumento se deve à expansão de planos "populares", voltados para as classes C e D. A senhora conduziu uma pesquisa que avaliou esses planos. Quais foram as principais conclusões?
LB: O principal resultado é que a rede de serviço desses planos não é suficiente para propiciar as coberturas previstas em contrato. O impacto disso é dramático: as pessoas acham que terão atendimento assegurado e, quando precisam do plano, descobrem que não têm. Além disso, muitas vezes os contratos preveem reajustes muito elevados e admitem a rescisão unilateral: ou seja, quando o consumidor se torna um doente crônico, a empresa tem o direito de cancelar o plano.
Idec: Quais são as principais falhas na atuação da ANS e quais são as suas sugestões para que a ela aprimore a regulação do setor de planos de saúde?
LB: A ANS tornou-se uma espécie de empresa das empresas. Sucessivas direções da agência optaram por interpretar a legislação de modo enviesado, favorável às operadoras e não aos consumidores. Suas funções regulatórias precípuas, que são a garantia da ampliação das coberturas e a definição de preços, não têm sido exercidas. Na prática, a ANS absorveu diversas iniciativas para a redução de coberturas e liberou aumentos abusivos. A autorização para a venda de planos com redes assistenciais insuficientes e os parâmetros para estabelecer reajustes de mensalidade sempre acima da inflação – no caso de planos coletivos superelevados – demonstram cabalmente que a ANS não cumpre a contento a função de zelar pela saúde dos clientes de planos de saúde no Brasil.
Idec: Um dos aspectos que mais têm sido criticados na ANS, inclusive pela senhora, é a entrada de executivos na agência oriundos do mercado de planos de saúde. Exemplo disso é a recente nomeação do advogado Elano Figueiredo, que anteriormente defendeu as operadoras do setor, como diretor da agência. Em sua opinião, o que deveria ser feito para evitar esse conflito de interesses?
LB: Esse problema poderia ser resolvido mediante o puro uso do bom senso. Não é plausível botar a raposa para cuidar do galinheiro. Mas como se trata de uma disputa séria e acirrada, seria importante que o Poder Legislativo atuasse de fato como órgão de defesa do bem comum e investigasse os conflitos de interesses de ocupantes de cargos nas agências reguladoras. O que vem ocorrendo no caso da ANS é uma aceitação acrítica dos nomes indicados pela Presidência da República e, portanto, uma omissão dos parlamentares no compartilhamento de responsabilidades sobre as políticas de saúde que serão implementadas.
Idec: Por fim, o que precisa ser feito para que o SUS cumpra a sua meta de oferecer atendimento universal de qualidade, e para que o setor privado seja eficiente e efetivo, ocupando o posto que lhe cabe de serviço suplementar?
LB: É preciso realizar uma mudança estrutural. Atualmente, o sistema de saúde brasileiro é privatizado tanto no que se refere à provisão de serviços, quanto no que diz respeito ao financiamento e à gestão. Durante os anos 90 e 2000, predominou uma visão que contaminou os governos de diferentes matizes sobre os defeitos do sistema público e, por conseguinte, o uso dos termos "privado" e "eficiente" como sinônimos. Esse "tsunami" ainda está fazendo estragos, mas as manifestações das ruas sinalizam que a população anseia por serviços públicos de qualidade. Para que o SUS seja abrangente e de qualidade, é necessário que essas vozes soem mais fortes.