Febre do imóvel
OUTRAS ARMADILHAS
O número de reclamações relacionadas à habitação cresce ano a ano. Em 2011, por exemplo, os Procons que integram o Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec), do Ministério da Justiça, receberam 18.700 queixas. Em 2012, o número subiu para 23.578, o que representa um aumento de 26%. Segundo o mesmo Sindec, cerca de um terço das reclamações geradas por construtoras e incorporadoras no ano passado se refere a "não cumprimento do contrato". Quase sempre por causa de atrasos na entrega da obra. Dúvidas sobre cobranças e cobrança indevida (das quais o Sati é a principal) ficam na segunda posição (com quase 29% do total de queixas).
O advogado Renato Vidal de Lima, de São Bernardo do Campo (SP), foi um dos que tiveram de alterar planos por causa de atraso na entrega. Ele deveria ter recebido as chaves em outubro do ano passado, mas o apartamento só ficou pronto cerca de seis meses depois. "Minha esposa está grávida e, caso a entrega tivesse sido feita na data certa, teríamos mudado antes do nascimento do meu filho. Mas, como o parto vai ser neste mês e não vou poder me dedicar às obras, vamos mudar só no fim do ano", lamenta ele.
Renato não recebeu nenhum tipo de ressarcimento por causa do atraso. O mesmo costuma ocorrer com os outros muitos consumidores cujos apartamentos são entregues fora do prazo. "Se eu atraso uma prestação, pago multa. Por que o mesmo não ocorre com a construtora? O contra-to tem uma cláusula que prevê uma tolerância de seis meses para a entrega da obra, o que me parece abusivo", questiona ele. Sua linha de raciocínio tem razão de ser: segundo orientação do Procon de São Paulo, "o correto é que a mesma imposição de mora atribuída ao consumidor seja igual para o fornecedor". Portanto, antes de assinar o contrato, é importante discutir as cláusulas que tratem desse assunto.
Outro problema frequente (o terceiro mais comum – cerca de 7% do total das queixas de 2012) diz respeito à retenção integral dos valores pagos quando o consumidor desiste da com-pra. Talvez por se darem conta de que a ansiedade resultou em um mau negócio, muitos compradores querem desistir da aquisição. Para o Idec, reter integralmente o que já foi pago é total-mente abusivo. Afinal, o fornecedor, além de ficar com o imóvel, ainda terá todo o valor pago. "O Código de Defesa do Consumidor estabelece que é abusiva qualquer cláusula que colo-que o consumidor em desvantagem exagerada. Além disso, o Código Civil prevê que, quando a obrigação for cumprida em parte ou quando a multa for excessiva, o juiz poderá reduzi-la. Aliás, é isso o que a Justiça vem fazendo", afirma Mariana Alves Tornero. No geral, estipula-se uma retenção de 10 a 30% do que foi pago, para compensar gastos da construtora, como publicidade e corretagem.
Ficar atento a outros detalhes da transação também pode evitar dissabores, como receber um imóvel com acabamento de baixa qualidade. Por isso, preste muita atenção em um documento chamado "memorial descritivo". Nele devem estar pormenorizadas as marca dos materiais de acabamento (como azulejos, pisos, metais) e dos equipamentos coletivos (como elevadores), a área de cada unidade em relação à fração ideal e todos os detalhes do projeto. Esse documento deve estar disponível no estande de venda e deve ser anexado ao contrato.
As parcelas mensais pagas durante a construção do prédio são corrigidas pelo Índice Nacional da Construção Civil (INCC), que mede a inflação do setor. Atenção a esse detalhe, pois o fluxo de pagamento proposto pela construtora geralmente não considera essa correção. Além disso, o INCC costuma ser maior que o índice usado para corrigir salários. Uma dica é simular uma compra em data anterior, apenas para ver como se comportou o valor das parcelas.
E é sempre bom frisar: juro não é correção monetária. No entanto, pode acontecer de alguma construtora, além de aplicar o INCC, também colocar a incidência de juros sobre as parcelas. O Judiciário não tem entendimento unânime sobre a legalidade ou não desse encargo, mas não é exagero considerar que a cobrança de juros nessas circunstâncias é pouco lógica. Afinal, o comprador, durante a fase de obras, não está pegando dinheiro emprestado; ao contrário, é com o seu dinheiro que a obra será construída. Em todo o caso, a orientação é ficar atento ao índice de correção que será usado e ter certeza de que o contrato especifica que não haverá juros.
Respostas das empresas
As oito construtoras que cobram taxas abusivas foram contatadas, por meio de sua assessoria de imprensa. Apenas quatro se pronunciaram: Even e Rossi afirmaram que o pagamento da taxa Sati é opcional. Bueno Netto alegou que "o nível de atendimento exigido demanda capacitação para oferta de serviços agregados, como de avaliação de crédito e de contrato, sendo certo que tais serviços são minuciosamente esclarecidos ao consumidor antes de sua contratação. A comodidade é utilizada pela grande maioria dos clientes (...)." E a Cyrela disse que não se manifestaria a respeito.
A MRV, Gafisa, Direcional e Toledo Ferrari não responderam.
Antes de bater o martelo:
- visite outros empreendimentos da mesma construtora e verifique (via internet, Procons etc.) se há reclamações contra a empresa;
- analise atentamente o memorial descritivo;
- avalie a localização do apartamento em relação a luminosidade, ventilação e ruídos;
- não se deixe seduzir pelos "apartamentos decorados"; o mais importante é verificar a funcionalidade da planta;
- vá ao local do empreendimento em dias e horários diferentes;
- tenha certeza de que há o Memorial de Incorporação, documento sem o qual o imóvel não pode ser vendido e construído;
- veja se o terreno não está contaminado (verificando a matrícula no cartório, investigando o uso anterior da área e, no estado de São Paulo, consultando o site da Cetesb – www.cetesb.sp.gov.br);
- leia o contrato com muita atenção (levar uma via para ler em casa, antes de assinar, é o ideal); se necessário, consulte um profissional de sua confiança.
O mercado imobiliário não para de crescer, assim como as reclamações contra o setor. Uma das principais queixas é a cobrança de taxas indevidas, prática constatada em oito das 10 maiores construtoras do país. Veja como fugir dessa e de outras armadilhas
Estandes de venda com charmosos apartamentos decorados seduzem até o mais cético consumidor. Corretores dão a entender que imóveis são vendidos como água. Analistas sugerem que os já exorbitantes preços vão ficar ainda maiores. Manchetes de jornal afirmam que o mercado está aquecido, que faltam imóveis. É nesse clima de "corrida à casa própria" que muita gente se deixa levar pela ansiedade e bate o martelo em um apartamento na planta. O problema é que, não raro, construtoras e imobiliárias cometem abusos que inicialmente não são percebidos pelo comprador. Quando, enfim, o consumidor se dá conta da situação em que se meteu, haja dor de cabeça para tentar reverter a situação.
Um clássico entre esses abusos é a cobrança indevida de uma taxa chamada Sati: Serviço de Assistência Técnica Imobiliária, normalmente cotada em 0,88% do valor do imóvel. Percentualmente pode parecer pouco, mas faça as contas: ela cobriria o custo de boa parte da mobília. Um levantamento do Idec com as 10 maiores construtoras de empreendimentos residenciais do país mostra que oito delas cobram indevidamente a tarifa.
A cobrança do Sati que vem sendo praticada tem três grandes problemas. O primeiro é que, em tese, o consumidor poderia, sim, pagar por esse tipo de serviço. Ou seja, ele compraria um imóvel e, caso julgasse necessário, pagaria também por essa assessorai jurídica. Mas os vendedores não dão essa opção ao consumidor: ou se compra o apartamento e também se paga a taxa, ou não há transação. A segunda irregularidade é que, mesmo pagando a taxa, raramente algum tipo de assistência é fornecida; paga-se por nada. E o terceiro problema é que, por uma questão de lógica, dificilmente o advogado a assessorar o comprador vai ser imparcial. "Esses profissionais são, em geral, contratados pela construtora ou imobiliária, que são as partes interessadas na venda", resume Mariana Alves Tornero, advogada do Idec.
A dor de cabeça da enfermeira Vera Lúcia Macedo Torre, de São Paulo (SP), por exemplo, só não foi maior porque, depois de muita insistência, ela conseguiu combinar com a construtora o cancelamento da taxa. Vera até que teve sorte, pois percebeu a abusividade da cobrança antes do pagamento, embora a compra do imóvel já estivesse definida. Caso contrário, provavelmente, ter o dinheiro de volta (cerca de R$ 4 mil) seria ainda mais complicado. "Na alegria e ansiedade de fechar o negócio, acabei nem lendo o contrato direito. Mas depois percebi que pagar por uma assessoria que não tive não fazia sentido", afirma ela.Assim, fica a dica: se for comprar imóvel na planta, não aceite pagar essa taxa. Aliás, após essa recusa, existe a chance de o corretor dar uma espécie de contraproposta. Foi o que aconteceu durante o levantamento com as construtoras: após serem questionados sobre a natureza da cobrança, alguns corretores afirmaram que poderia haver um desconto sobre os tais 0,88%, ou que a taxa poderia ser parcelada. Mas, ora, o verdadeiro desconto deve incidir sobre o valor do imóvel em si, e não sobre uma tarifa que nem deveria ser cobrada. Portanto, fuja também dessas contrapropostas.
Para quem já pagou a taxa, uma notícia ruim e uma boa. A ruim é que dificilmente o dinheiro será devolvido amigavelmente (o que não quer dizer que você não possa tentar essa restituição com a construtora ou imobiliária). A boa notícia é que, caso você entre com uma ação na Justiça, são enormes as chances de ganhar a causa.
Foram consideradas as dez maiores construtoras de imóveis residenciais do país, segundo o ranking ITC (consultoria especializada em mercado imobiliário): MRV, Gafisa, Brookfield, Direcional, Even, Cyrela, Rossi, Plaenge, Toledo Ferrari e Bueno Netto. Em seguida, foram procurados apartamentos dessas em-presas, seja visitando o estande de vendas, seja fazendo contato telefônico ou via atendimento online. Como, em geral, os corretores só falam da taxa Sati quando o negócio está prestes a ser concretizado, lhes foi perguntado se haveria cobranças extras (além do valor do próprio imóvel). Em caso de resposta afirmativa, avaliou-se se a maneira como a cobrança era colocada: obrigatória ou facultativa. Por fim, quando o corretor sugeria se tratar de cobrança obrigatória, questionou-se a natureza da cobrança, para verificar o novo discurso que ele adotaria.