Perigo no ar
O frio já chegou à boa parte das regiões brasileiras e, com ele, as doenças típicas desse período, sobretudo gripe e resfriados. Mais que um mero desconforto, a gripe (ao contrário do resfriado) pode ser perigosa e exige cuidados. Em São Paulo, especialmente, a gripe A (também chamada de H1N1) volta a preocupar com número crescente de casos. Para tirar as principais dúvidas sobre o tema, conversamos com Jean Gorinchteyn, médico do Instituto de Infectologia de São Paulo, responsável pelo Ambulatório de Aids no Idoso do Hospital Emílio Ribas e mestre em doenças infecciosas. Em um raro intervalo entre os atendimentos, o médico falou com a Revista do Idec sobre gripes e outras doenças infectocontagiosas que atingem o país, como dengue, tuberculose e hepatites.
Idec: O vírus que causa a gripe A é da mesma "família" da gripe comum, o Influenza. Mas o H1N1 é mais perigoso ou pode evoluir para complicações, como pneumonia, mais facilmente?
JG: Não dá pra dizer que o H1N1 é mais grave. Há pacientes que evoluem para quadros muito graves com a influenza sazonal [a gripe comum], e há pessoas que têm contato com o tipo A e desenvolvem formas mais brandas. O que determina [a gravidade] é a condição imunológica dessas pessoas, ou seja, se elas têm outras doenças, como diabetes, problemas pulmonares, cardíacos ou imunológicos. Os idosos tendem a responder de forma mais grave para os dois tipos de gripe, assim como mulheres grávidas e crianças de seis meses a dois anos. Por isso eles fazem parte dos grupos contemplados nas campanhas vacinais.
Idec: Os sintomas do H1N1 e da gripe comum são parecidos. Qual é o alerta para suspeitar da infecção pela gripe A?
JG: São muito parecidos. Clinicamente, não conseguimos discernir uma gripe de outra. Sempre que o paciente tiver tosse, febre e dor de garganta associados a sintomas sistêmicos, como dores no corpo e dores nas juntas, deve procurar o serviço médico, porque esses deixaram de ser sintomas de um simples resfriado.
Idec: Até maio deste ano, São Paulo registrou 328 casos e 55 mortes por gripe H1N1, o que corresponde a 90% dos números da doença no país. Quais fatores podem explicar esse "surto" no estado?
JG: Não consideramos um surto. Esse número está absolutamente dentro daquilo que era esperado. O que aconteceu é que o frio chegou mais cedo [em São Paulo]. No final de abril, início de maio, as temperaturas já estavam mais baixas, diferentemente de outros anos. Então, houve uma antecipação do número de casos, basicamente. Em São Paulo, como em outros lugares do mundo, ainda há circulação do vírus. Por isso, a única forma de prevenção é por meio da vacina, cuja formulação protege contra dois vírus da influenza A e um vírus da influenza B.
Idec: Existe o risco de uma nova epidemia como a que ocorreu em 2009?
JG: De forma alguma. Nós temos duas coisas que nos deixam tranquilos. Uma delas é o sistema de vigilância, que consegue captar o número de casos e detectar os graves – aqueles que desenvolvem uma síndrome respiratória aguda intensa – e avaliar se esse número está acima do esperado. Isso não está acontecendo. O outro aspecto é que temos a vacina agora, que é uma forma de prevenção.
Idec: Ao perceber os primeiros sintomas de gripe ou resfriado, muita gente corre para a farmácia sem orientação médica. Essa prática pode piorar o quadro? A automedicação é ainda mais perigosa no caso da H1N1?
JG: Se o indivíduo tem H1N1 e demora para ir ao médico, piora a sua condição clínica, aumentando a chance de morte. Muitos casos de morte [por gripe A] de pessoas que não eram da faixa etária de risco e que não tinham nenhuma doença associada decorreram do fato de elas terem postergado o seu atendimento devido à automedicação. Na presença de sintomas iniciais, a recomendação é procurar atendimento médico o mais rápido possível. É importante que as pessoas não banalizem esses sintomas.
Idec: Um novo tipo de coronavírus surgiu recentemente no Oriente Médio e tem chamado a atenção por ser altamente letal (mata cerca de 50% dos infectados). Apesar de ainda bastante localizado, há preocupação de uma pandemia como a que ocorreu com o H1N1? Quais cuidados as pessoas que viajam para a região devem tomar?
JG: O fato de o coronavírus ter uma infectividade muito grande e estar provocando tantas mortes prova que ele ainda não se adaptou ao organismo humano como o H1N1. O H1N1 não leva a quadros tão graves, na maioria dos casos. Assim, ele sobrevive mais do que o coronavírus. É como o vírus da gripe aviária: ele matou muita gente, mas não conseguiu prosperar. É isso que se espera do coronavírus.
Quem viaja para o Oriente Médio deve evitar ambientes fechados e aglomerados. Se surgir qualquer sintoma, como tosse ou febre, é preciso procurar a autoridade médica e comunicar esse antecedente de viagem.
Idec: A dengue segue sendo um problema preocupante no país. As estimativas apontam que, se o ritmo atual se mantiver, o número de casos notificados em 2013 deve superar o de 2010, o pior da história. Por que as medidas de controle do mosquito não têm dado certo até agora?
JG: Isso se deve, em parte, à própria população, que se esquece da importância de fazer a sua vigilância em casa. É preciso entender que a dengue não é uma doença que só está presente na periferia; ela é cosmopolita, não diferencia regiões nobres. Onde o mosquito tiver condição de fazer sua ovoposição, ele vai procriar. Em áreas nobres de São Paulo, como o Morumbi e o Alto de Pinheiros, há presença do mosquito contaminado, e a chance de disseminação é alta. O litoral de São Paulo também tem muitas vítimas, até porque a Mata Atlântica fica próxima, e há um perdurar de chuvas mais intensas que na capital, o que favorece a procriação.
Idec: Há estudos no Brasil e no mundo para desenvolver uma vacina contra a dengue. Quais são as principais dificuldades? Em que pé estão essas pesquisas?
JG: Há pesquisas com a participação de agências brasileiras em estágio avançado, mostrando uma grande eficácia das vacinas. Elas são quadrivalentes, ou seja, contemplam os quatro subtipos da dengue, o que dá uma proteção muito grande, garantindo que possamos, no futuro, erradicar essa doença no país.
Idec: Então a vacina será definitiva para acabar com a dengue, independentemente de medidas de controle do mosquito?
JG: Na medida em que as pessoas estarão imunizadas, mesmo em contato com o Aedes aegypti não vão pegar a doença. Assim, elimina-se o doente. O mosquito pode estar presente, portanto, mas ele não vai disseminar o vírus. É claro, porém, que o ideal seria também erradicar os focos.
Idec: Uma doença de que pouco se fala é a tuberculose, mas nem por isso ela deixou de existir: em 2012, foram registrados 70 mil novos casos no Brasil. A tuberculose faz parte das chamadas "doenças negligenciadas", para as quais não há investimento da indústria farmacêutica, sobretudo porque atinge grupos socialmente desfavorecidos — no Brasil, moradores de rua, indígenas, presidiários e portadores de HIV. Nesse cenário, como devem agir os governos para combater a doença?
JG: Apesar do desinteresse da indústria farmacêutica, existe preocupação do governo com a tuberculose. O próprio Farmanguinhos [laboratório farmacêutico da Fundação Oswaldo Cruz, ligado ao Ministério da Saúde] produz os medicamentos, que são distribuídos gratuitamente à população; campanhas são feitas, principalmente em Unidades Básicas de Saúde, para orientar sobre 'tossidores crônicos' – aqueles que tossem três a quatro semanas seguidas e têm febre –, que são encorajados a procurar um posto médico e fazer o teste. Nós não dependemos de nenhum incremento da indústria para poder agir contra a tuberculose. Tanto as secretarias municipais quantos as estaduais [de saúde] têm atuado de maneira frequente, até porque essa ainda é uma doença de grande prevalência no Brasil.
Idec: Dados do Ministério da Saúde indicam que mais de cinco milhões de brasileiros são portadores de hepatite viral do tipo C — a mais grave entre as hepatites —, mas 90% demoram a detectá-la. Quais são os impactos dessa identificação tardia?
JG: O problema é que os médicos não pedem exames para identificar hepatite B e C, assim como HIV, quando o paciente vai em busca de um check-up. Assim, as pessoas passam muitas vezes por médicos sem que façam esses exames e só vão descobrir a doença quando ela já está instalada e avançada, já que, em geral, os vírus das hepatites B e C são silenciosos, sem sintomas aparentes. Assim, o vírus vai agindo sobre o fígado durante anos, levando à cirrose. O estágio mais tardio de destruição do órgão é o hepatocarcinoma, que é o câncer de fígado propriamente dito.
Idec: O tratamento da hepatite C é altamente custoso e recai sempre sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), que fornece medicamentos caríssimos. Ele tem sido realizado a contento?
JG: Sim. A questão não é só o medicamento, é o diagnóstico correto: saber qual é o tipo e o subtipo de vírus, dosar a quantidade presente no sangue, avaliar o grau de destruição do fígado por meio de biópsias e, também, realizar controles mensais diretamente no consultório ou por exames. O serviço público brasileiro oferta tudo isso de forma gratuita, além do próprio medicamento, que é mesmo muito caro e que, em outros países da América do Sul e do Caribe, não são fornecidos.