Democratização às avessas na educação
Lisete Arelaro, diretora da Faculdade de Educação (FE) da Universidade de São Paulo (USP), adverte contra a expansão de empresas privadas no ensino superior, impulsionada por financimento voltado aos estudantes, caso do Programa Universidade para Todos (ProUni). Ex-secretária de Educação de Diadema (SP), Lisete expressa preocupação com a baixa qualidade na formação em faculdades particulares, critica a falta de política de formação de pesquisadores, cobra rigor na fiscalização do Ministério da Educação (MEC), alerta para o perigo da disseminação dos cursos de ensino a distância como primeira formação e comenta o impacto da contratação de sistemas de ensino nas escolas públicas.
Idec: O acesso ao ensino superior se ampliou, mas isso não tem sido sinônimo de qualidade, aparentemente (considerando o mau desempenho em exames da Ordem dos Advogados do Brasil — OAB, Conselho Regional e Conselho Federal de Medicina — CRM e CFM, entre outros). Ou vale a máxima 'quanto mais, melhor'?
LISETE ARELARO: As melhores escolas no ensino superior são públicas porque têm um padrão: jornada e condições de trabalho para os professores, equipamentos, atualização de conhecimento. Somos pagos para melhorar o conhecimento, podemos ir ao exterior, temos bolsa de estudo permanente e condições de trabalho bastante razoáveis. É preciso que o Ministério da Educação tenha controle de outro tipo, não somente de quem pagou a mensalidade. Se olhar para essas faculdade privadas parece que se está em um shopping, não em uma universidade. O MEC deveria ser mais rígido, e não se basear apenas nas provas. Tem de acompanhar mais as condições efetivas de ensino.
Idec: Três dos seis maiores grupos de educação privada superior do mundo são brasileiros (fusão dos grupos Kroton e Anhanguera, Estácio e Abril Educação). Outros grandes grupos são chineses, norte-americanos e sul-coreanos, e a educação nesses países está anos-luz à nossa frente. A educação aqui se tornou apenas um negócio muito lucrativo?
LA: Estou muito preocupada: temos um problema e está na hora de tomarmos providência, mesmo sem considerar a fusão Kroton/Anhanguera. Antes disso, a Anhanguera comprou em três anos 257 unidades de ensino superior. A Anhanguera é absolutamente financista. O Chile fechou uma escola porque seu objetivo era meramente comercial. E a Anhanguera tem apenas um interesse: comercial. Para um grupo de alunos que foi reclamar ao gerente de uma unidade foi dito: você paga R$ 400, quer o quê? Se quiser ensino melhor pague R$ 1 mil. Esse tipo de relação deveria ser controlada de forma mais dura pelo MEC. Eles são gulosos e estão ultrapassando os limites.
Idec: Programas de financiamento ao ensino superior voltados diretamente aos estudantes (caso do ProUni) deveriam levar em conta critérios de qualidade de faculdades financiadas?
LA: O ProUni provocou massificação do ensino superior, mas ao mesmo tempo é um equívoco e criou um problema social grave. Essa união entre Kroton e Anhanguera levou 1,2 milhão de alunos a essas empresas, das quais 450 mil são bolsas ProUni. Praticamente é o Estado brasileiro que está sustentando essas empresas, portanto deveria exigir mais e estabelecer padrões, como a necessidade de o professor ter titulação. Não há regime de dedicação exclusiva, nem obrigação de fazer pesquisa. Não há política de formação de pesquisadores, o que no ensino superior é calamitoso. Sem isso não se produz conhecimento.
Idec: Não é um contrassenso financiar, com dinheiro público, o setor privado de má qualidade? Isso não é apenas massificar o ensino superior?
LA: São Paulo tem seis universidade públicas, mas elas representam apenas 10% das vagas disponíveis no Estado. Ou seja, 90% dos alunos matriculados em algum curso superior estão em escola privada. Das escolas privadas vamos tirar 10% que tenham qualidade; há 80% de profissionais sendo formados com baixíssima qualidade. Estamos fazendo uma democratização às avessas. Temos um número de brasileiros muito grande que não terminou o ensino fundamental: a estimativa é de 49 milhões de pessoas – trabalhadores, maiores de 15 anos – que entraram na escola, mas não continuaram até o fim. Não dá para ficar investindo apenas no ensino superior sem olhar o que está acontecendo no ensino fundamental e médio.
Idec: O que seria necessário fazer para que uma pessoa que complete o ensino superior veja com interesse a dedicação ao magistério, ao ensino fundamental?
LA: São Paulo paga muito mal seus professores. A situação no Estado mais rico da federação é alarmante. Parece que falar em salário diminui o sacerdócio. Salário é uma variável fundamental. Os que estão fazendo licenciatura sabem que, de certa forma, ficarão pouco tempo na profissão. Procurarão outras em que ganharão mais. Eu defendo regime de dedicação exclusiva na educação básica. Temos na USP a Escola de Aplicação, que é pública e de qualidade. Os professores trabalham exclusivamente, têm possibilidade de estudo, planejamento das atividades e correção dos trabalhos, que é uma variável importante na qualidade do ensino. Um professor que acumula cargos acaba, de certa forma, dependendo do sistema apostilar. Ele não tem condições físicas de preparar a sua aula todos os dias. Trabalhar oito horas diariamente com alunos exaure.
Idec: A educação a distância (EAD) responde por 14,6% das matrículas de graduação no ensino superior do País, segundo o Censo da Educação Superior de 2010, divulgados pelo MEC. O que acha dessa expansão?
LA: A introdução do ensino a distância como primeira formação me preocupa. A primeira formação obrigatoriamente deveria ser presencial. O sistema, por mais interessante e moderno que seja, tem como tutor um professor que a gente chama de polivalente. Ele responde às perguntas de qualquer tema. Não há dúvida que o ensino a distância, como um processo de formação permanente, pode ter algumas alternativas. Mas para a área de educação é um problema porque parte dessas opções de ensino a distância é para professores. A minha formação é boa porque eu tive 30 professores que pensavam de forma diferente sobre diferentes assuntos, e que me obrigaram a ponderar sobre a relatividade do certo e errado. Essa diversidade é que enriquece.
Idec: Como a senhora vê a expansão dos sistemas particulares de ensino em escolas públicas? A adoção desses sistemas melhorou o nível educacional, conforme aponta uma pesquisa de 2010 da Fundação Lemann?
LA: O sistema de ensino está entrando de forma definitiva nas redes públicas do Brasil. As empresas se apresentam vendendo um produto chamado "melhoria da qualidade do ensino público" por meio de um material pré-fabricado, independentemente das condições de vida, trabalho e história da cidade. Funciona simbolicamente como uma escola de elite, mas é uma referência ilusória. Eles nunca aplicariam nas escolas deles o material que mandam, em geral muito pobre em alternativas pedagógicas. Não é verdade que, repetindo a compra desse material, os resultados tiveram curva ascendente. Há uma melhora média de dois anos e depois uma queda.
Idec: Qual a sua avaliação do Plano Nacional de Educação 2001-2010? As metas decenais foram alcançadas?
LA: Ninguém deu importância ao PNE 2001-2010. Nem o governo da época, nem o governo que o sucedeu, nem as escolas, nem a população. Ainda temos tradição de fazer planos para ter documento, e não como tradutor do desejo da sociedade. Temos condições de cobrar a definição de prioridades nacionais, independentemente de quem estiver no governo. Isso é direito de cidadania e desenvolve o país. O PNE 2001-2010 não foi levado a sério. O plano estabelecia mais metas para os municípios do que para ele mesmo [governo federal]. Estávamos num momento em que o governo acreditava que tinha de congelar o Estado, mesmo que os direitos sociais não tivessem sido atingidos. Não fomos bem-sucedidos, tanto é que várias da metas que estavam no primeiro plano voltaram para o segundo plano.
Idec: Como se contrapor à expansão da privatização do ensino diante da reação da opinião pública ao incremento dos aportes na educação, assim como a saúde, com o argumento de que o dinheiro se perde nos canais de corrupção e na má gestão?
LA: Uma das áreas mais controladas no Brasil é a educação. Não quer dizer que não tenha desvios. A educação é a área social que mais deu certo, por isso é tão atacada pela mídia. Bem ou mal, 90% dos brasileiros matriculados na educação básica está em escola pública. A área de cultura foi privatizada. A saúde também, mediante o estímulo aos planos de saúde, por isso a educação é cobiçada e atacada pela mídia. Como está resistindo, há essa investida 'por dentro': deixa o Estado manter que vamos entrar 'por dentro', pela venda de apostilas.