Megaeventos esportivos: bom ou mau negócio?
IDEC: Os jogos Pan-americanos deixaram algum legado para o Rio de Janeiro?
CV: Deixaram uma dívida enorme. O legado, a meu ver, é dramático, e vai pesar no bolso do contribuinte sob a forma de carência de investimentos nas áreas fundamentais: educação, saúde, saneamento básico etc. Quando os professores da rede pública estiverem em greve, nós nos lembraremos de onde foi gasto o dinheiro: no estádio Mané Garrincha, no parque olímpico do Rio de Janeiro etc. É a festa do dinheiro publico.
IDEC: Há algo que possa ser feito para que os megaeventos que serão realizados no Brasil deixem, de fato, uma herança positiva para as cidades-sede?
CV: Não, eu acho que o que poderia haver são compensações. Por exemplo, a cada tostão gasto com equipamento esportivo/obra, nós queremos um tostão para a educação. Outra coisa: o número de famílias removidas deveria ser zero; elas deveriam se beneficiar dos investimentos feitos próximos às suas casas. E deveria ser proibido destruir escolas, como querem fazer com uma vizinha do Maracanã, considerada uma das melhores instituições de ensino públicas do Rio, para construir um estacionamento.
IDEC: Foram prometidas, nas cidades-sede dos eventos esportivos, obras relacionadas à mobilidade urbana. Elas estão sendo feitas ou serão tomadas medidas paliativas apenas durante os eventos?
CV: Durante os jogos Pan-americanos no Rio, algumas vias expressas tinham uma ou duas faixas em que os comuns mortais não podiam circular, só a família Pan-americana. Isso também aconteceu em Londres e, certamente, vai acontecer de novo.
A comunicação de Cumbica com a cidade de São Paulo é adequada para receber um número expressivo de pessoas? O mesmo pergunto em relação a Congonhas. No Rio, inventaram o Bus Rapid Transit, o BRT. Nenhum país sério projeta transporte público de massa que queima combustível fóssil. O Brasil projetou.
No mundo inteiro, especialistas em planejamento urbano falam do chamado smart growth (ou “crescimento esperto”), que significa não estender a malha urbana, porque, ao se fazer isso, aumentam-se os custos de infraestrutura, porque tem que fazer estrada, investir em água, luz etc. Mas estão estendendo a malha urbana no Rio de Janeiro em direção à área vazia da cidade, que é a zona oeste (Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes). Em São Paulo, pelo menos, a malha está sendo estendida no sentido do Itaquerão. Evidentemente, quando você faz um transporte público dessa natureza, há parcelas da população que acabam sendo beneficiadas, mas ela não foi o alvo desses investimentos.
No Rio de Janeiro, em Recife, em Fortaleza e em São Paulo, que são os casos que eu conheço melhor, a ligação entre estádio, hotel e aeroporto é feita para o público desses megaeventos. As melhorias no transporte não estão sendo feitas para atender à população da cidade.
Idec: E como esses megaeventos esportivos afetam os consumidores?
CV: A Lei Geral da Copa desrespeita os direitos dos consumidores. Por exemplo, em relação à liberdade de consumo. O consumidor não poderá escolher a cerveja ou o refrigerante que quer beber no estádio ou num raio de dois quilômetros do estádio durante a Copa e as Olimpíadas. Isso vai contra a legislação do consumidor [Código de Defesa do Consumidor – CDC]. Podemos chamar isso de venda casada, porque você compra um ingresso e é obrigado a adquirir produtos de uma determinada empresa.
A obrigatoriedade de meia-entrada para idosos e estudantes também não está sendo respeitada.
O Idec fez uma campanha contra a Lei Geral da Copa. Acho que os advogados de vocês poderiam analisar o Ato Olímpico também porque, embora as regras para a Copa sejam mais “famosas”, as regras para as Olimpíadas também são absurdas.
IDEC: Você realizou um estudo chamado Cidade de Exceção: reflexões a partir do Rio de Janeiro. O que seria uma cidade de exceção?
CV: A lei perdeu a sua universalidade, as suas generalidades, que são os princípios fundamentais em uma lei de estado de direito. A Lei Geral da Copa é uma lei de exceção. Se fôssemos uma ditadura, ninguém teria dificuldade para classificá-la como uma lei ditatorial, porque ela rompe com todos os princípios de direito. Por exemplo, o Estatuto do Torcedor diz que não é permitida a venda de álcool nos estádios, mas a Lei Geral da Copa diz que é permitida a comercialização de uma única marca.
A Lei Geral da Copa diz que ninguém poderá vender produtos que não sejam autorizados pela Fifa ou pelo COI no entorno dos estádios, e que o poder público deverá reprimir de maneira sistemática os vendedores ambulantes. Isso desrespeita os direitos do trabalho previstos na legislação brasileira, portanto é uma lei de exceção. Outra lei de exceção: a segurança pública, pela nossa constituição, é de responsabilidade dos estados, por meio de suas polícias. Mas foi criada, pelo Ministério da Justiça, uma secretaria nacional de segurança para os megaeventos. Essa responsabilidade não cabe ao ministério. O Brasil receberá, nesta década, dois megaeventos esportivos: a Copa do Mundo, em 2014, e os Jogos Olímpicos, em 2016. Sem falar da Copa das Confederações, que mobilizará seis cidades de 15 de junho a 15 de julho deste ano. Diante desse cenário, o Idec e, certamente, muitos cidadãos brasileiros têm se perguntado: o Brasil tem estrutura para sediar esse tipo de evento? Que legado eles deixarão ao nosso país? Para responder a essas e outras questões, entrevistamos, por telefone, o urbanista Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e especialista em megaeventos esportivos. Entre tantas outras considerações, ele afirma que os eventos esportivos se transformaram num grande negócio, no qual o que menos importa é o esporte em si
Idec: Vale a pena sediar megaeventos esportivos?
CARLOS VAINER: Há quem ganhe e quem perca. O primeiro ganhador é o promotor do evento. Isto é, no caso de uma Copa do Mundo, a Fifa, e, no caso das Olimpíadas, o Comitê Olímpico Internacional (COI). Ambas são entidades privadas que, associadas a grandes empresas, obtêm enormes lucros. Essas empresas patrocinadoras são, por exemplo, os fabricantes de cerveja. O que o esporte tem a ver com o álcool? Nada. Mas não estamos falando de esporte, estamos falando de negócios.
Outras beneficiadas por esses eventos são as grandes empresas de comunicação, que vendem os direitos de transmissão ao mundo inteiro a preços altíssimos. O negócio também é bastante vantajoso para os proprietários fundiários do setor hoteleiro.
Até os anos 1970, inicio dos 80, esses eventos tinham caráter completamente diferente: não era permitida a participação de atletas profissionais nos Jogos Olímpicos, nem a associação do evento a empresas privadas ou produtos. Os campeonatos de futebol eram apenas campeonatos de futebol. A partir dos anos 80, eles foram transformados nessa grande operação comercial e, hoje, tornaram-se os chamados megaeventos.
Quem perde com a realização desses eventos, na verdade, é a sociedade, que terá de arcar com as dívidas monstruosas que estão sendo contraídas. Foi prometido que seria feita uma Copa privada, mas 97% dos investimentos são públicos.
Idec: Como a sociedade arcará com essas dívidas?
CV: Nas restrições orçamentárias que as cidades e os estados endividados vão enfrentar para pagar as dívidas. Principalmente o Rio de Janeiro, que acumulou a Copa e as Olimpíadas. O orçamento dos Jogos Pan-americanos, quando o Rio se candidatou, era de cerca de R$ 370 milhões. A apuração final do Tribunal de Contas foi de R$ 4,5 bilhões. Só com a reforma do Maracanã, já se gastou mais de R$ 600 milhões nos últimos anos. Essa obra não ficará por menos de R$ 2 bilhões – e, com esse valor, seria possível fazer cinco estádios. Depois da reforma, o governo ainda pretende entregá-lo a uma empresa privada. E sabemos o nome e o endereço de quem provavelmente ganhará a licitação: o senhor Eike Batista. Além disso, o processo de reforma do Maracanã envolve a destruição do centro esportivo Antônio de Barros e de um ginásio de natação que é usado por muitos atletas olímpicos brasileiros. A justificativa para a demolição é que, para que a privatização do Maracanã se viabilize comercialmente, é necessário que ali se instaure um shopping. Você conhece algum país olímpico onde se destroem aparelhos esportivos?
Há cerca de seis meses, estive em um debate na televisão com o presidente da Autoridade Pública Olímpica (APO), Márcio Fortes. Perguntei para ele quanto vão custar as obras para os Jogos Olímpicos, e ele respondeu: “Estamos terminando as contas”. Ele começaria uma obra no banheiro da casa dele sem o orçamento?
A cidade de Montreal, no Canadá, sediou uma Olimpíada nos anos 80 e, só agora, acabou de pagar a dívida. Ficaram com um estádio que é um elefante branco. Na África do Sul, estava em discussão se alguns estádios seriam derrubados devido ao alto custo de manutenção, o que pode acontecer em Brasília e Manaus, por exemplo, onde estão sendo construídos estádios para 40 mil pessoas, mas o público médio dos jogos fica entre duas e três mil pessoas.
Idec: Qual o impacto desses megaeventos para o planejamento urbano?
CV: Acredita-se que os jogos são uma oportunidade para desenvolver a cidade, mas, na verdade, a cidade é um instrumento dos jogos. O investimento feito para ligar o aeroporto aos estádios e à área hoteleira em Fortaleza (CE), por exemplo, não está atendendo às necessidades da população. No Rio de Janeiro, 80% da demanda no setor de transportes são no subúrbio, na baixada fluminense e em Niterói, mas os investimentos estão sendo feitos na Barra da Tijuca. Há, com isso, um aprofundamento das desigualdades sociais. As prefeituras e os governos aproveitam os jogos para fazer uma limpeza social e étnica nas áreas de valorização imobiliária. É o que estamos vendo em Porto Alegre, com a expulsão de uma série de comunidades populares. No Rio de Janeiro, estimamos que entre 30 e 40 mil pessoas seriam removidas por conta das obras relacionadas aos jogos, mas já foram 170 mil.
Um milhão de metros quadrados de terra pública está sendo entregue a um consórcio privado a preço de banana, embora a Lei Federal Brasileira, de 2004, a Constituição do estado do Rio de Janeiro e a Lei Orgânica do Município determinem que terras públicas ociosas devam ser prioritariamente consagradas para habitação. E pessoas estão sendo removidas de maneira brutal e arbitrária. Um exemplo é a Vila Autódromo. Cerca de 450, 500 famílias que vivem ali há mais de 30 anos serão obrigadas a se retirar porque são vizinhas de um empreendimento e poluem visualmente a área.
As obras realizadas no Parque Olímpico do Rio de Janeiro são chamadas de parceria público-privada. Mas isso não é uma parceria, é a entrega do recurso e da terra públicos a empreendedores privados, sem nenhum retorno para a cidade. E isso não ocorre só no Rio de Janeiro. É que o Rio transformou-se numa espécie de Barcelona tropical, modelo invejado por prefeitos de várias capitais. Mas os custos e as consequências virão em breve.
IDEC: Mas esses megaeventos mexem com a autoestima da população, que sente orgulho de sediar uma Copa ou uma Olimpíada, não?
CV: Mas a maioria de nós ficará de fora desses eventos por conta dos altos preços dos ingressos. Nos jogos Pan-americanos, os estádios estavam vazios. O Rio de Janeiro é uma cidade com milhões de espetáculos públicos nos espaços públicos. Só que esses eventos esportivos não serão em espaços públicos, porque, a partir do momento em que o Maracanã for entregue à Fifa, ele será um espaço privado. E o povo não vai ser chamado para a festa.
Na época da Rio+20 [conferência organizada pela Organização das Nações Unidas em 2012], o prefeito sugeriu que os moradores saíssem da cidade, o que deixou claro que o evento não era para eles. E isso vai acontecer de novo.
Idec: Barcelona é realmente um bom exemplo de cidade que soube aproveitar bem os Jogos Olímpicos?
CV: Bom, em Barcelona o índice de desemprego está em 21%. É isso o que a gente quer? Sem falar da Grécia, que é covardia. Que tipo de crescimento é esse que se oferece para a cidade? É um crescimento voltado para o mercado externo. A população da cidade é desconsiderada. Em vez de fazer investimentos para atender às necessidades de quem vive nas cidades, o governo e a iniciativa privada envolvida os fazem para atender às necessidades da Fifa, do COI, dos patrocinadores, dos associados e das grandes empreiteiras. A experiência recente em Londres [Jogos Olímpicos de 2012] mostrou que a cidade recebeu menos turistas em 2012 do que nos anos anteriores. Você acha que Curitiba vai virar uma cidade internacional porque vai sediar três jogos? Se eu quero atrair turistas para o Rio de Janeiro, é melhor acabar com o esgoto a céu aberto, com as balas perdidas etc.