Agências reguladoras e os direitos do consumidor
Criadas no bojo do processo de privatização com a finalidade de disciplinar e fiscalizar diversos setores da economia, as agências reguladoras têm falhado, sobretudo, no que se refere à garantia dos direitos dos consumidores. Seja nos campos de saúde suplementar, telefonia, energia elétrica ou aviação civil, a prática recorrente das agências tem sido deixar na mão dos consumidores o ônus de ir atrás de seus direitos. Uma omissão que tem levado ao crescimento considerável de ações judiciais envolvendo relações de consumo. Nesta entrevista, feita por telefone, o jurista e professor Joaquim Falcão, diretor da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas e ex-conselheiro do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), fala sobre os problemas estruturais que marcam a atuação das agências reguladores, do excesso de judicialização dos conflitos de consumo e da necessidade de mobilizar a opinião pública para influenciar de modo mais efetivo a regulação e o comportamento das empresas fornecedoras de produtos e serviços.
Idec: Do ponto de vista do direito do consumidor, qual a sua avaliação do nosso modelo de agências reguladoras?
JOAQUIM FALCÃO: As agências no Brasil têm três erros estruturais. O primeiro deles decorre de elas serem, no fundo, uma delegação de poder do Legislativo para o Executivo. Essa delegação tem sido entendida em sentido extremamente mais amplo do que o razoável em uma democracia. Uma vez criada a agência, o Legislativo não se preocupa mais com o que ocorre com o poder de legislar que foi concedido a ela. E esse poder é, às vezes, excessivo. No entanto, nossa Constituição estabelece a possibilidade de o Congresso Nacional limitar o poder normativo das agências.
Outro ponto é que as agências, sobretudo as de serviços públicos, obedecem a uma lógica segundo a qual o mercado atua melhor do que o Estado, desde que o mercado seja regulado. Todo sistema concorrencial do setor privado necessita de certo equilíbrio setorial, mas a finalidade das agências não é somente a busca desse equilíbrio da concorrência entre as diversas entidades privadas que atuam naquele mercado. Tanto a concorrência leal quanto o equilíbrio setorial são meios, não a finalidade das agências. A finalidade delas é garantir a prestação de um serviço ao cidadão, ao consumidor. Existem interesses públicos e do consumidor que vão além de um mero equilíbrio setorial ou de uma concorrência legal.
O terceiro ponto é a incapacidade que as agências mostram para resolver conflitos. Elas foram estruturadas como um míni poder do Estado voltado para um determinado setor econômico. Em seu campo de atuação, as agências têm poder para legislar, normatizar, fiscalizar e executar políticas necessárias ao desenvolvimento desse setor. E elas cresceram no Brasil desenvolvendo bem o seu poder de legislar, normatizar melhor e executar, mas não desenvolveram o poder de resolver os conflitos entre os meios e os fins, entre o consumidor e todas as entidades que ela regula. É como se faltasse – e ela deveria existir – uma função de resolução de conflitos, uma função de “pré-judiciário” ou talvez de uma justiça pré-administrativa, que trabalhasse com a conciliação e a mediação de conflitos, porque isso faz parte da sua função. Elas criam os problemas e quem tem de resolver isso é o Poder Judiciário. As agências reguladoras estão terceirizando os custos do conflito que elas próprias geraram.
Idec: O senhor poderia exemplificar esse comportamento que confunde meios e fins?
JF: Por exemplo, na telefonia, a Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações] não conseguiu impor uma regra para que, uma vez roubado um celular, sua linha e suporte (o aparelho) sejam imediatamente desativados, como ocorre com os cartões de crédito. Quando um cartão de crédito é roubado, automaticamente você corta as relações com o banco, e o suporte, que é o cartão, deixa de valer. Como é possível reusar o aparelho, há um estímulo para o roubo de celular no Brasil, e isso é de interesse público absoluto, porque é questão de segurança, envolve violência e alimenta outras práticas criminosas. A Anatel já tem instrumentos tecnológicos para proibir, de imediato, a reutilização dos celulares. Imagine os custos públicos de segurança que a ausência dessa norma impõe ao Rio de Janeiro atualmente? Esse é um bem público que deve ser considerado pelas agências, e não um gasto. Precisamos estimular a atuação da iniciativa privada, mas isso tem de fazer parte de uma equação na qual estejam presentes, além do estímulo ao lucro, a prestação de um bom serviço e a defesa de valores e dos custos públicos, como ilustra essa questão da Anatel e dos celulares. É uma situação de fácil solução. Já há mecanismos para isso. Bastava baixar essa resolução e, no dia seguinte, desapareceria o roubo de celulares no Brasil.
Idec: A atitude de deixar nas mãos do Judiciário a resolução de conflitos não pode causar um prejuízo financeiro às empresas?
JF: A questão que se coloca para as empresas é a de como prevenir esses custos. Diversas empresas de energia e telefonia estão hoje preocupadas em diminuir esses custos, principalmente devido à incerteza das decisões proferidas pelo Poder Judiciário. Até mesmo como arma de autodefesa, o Judiciário criou o dano moral, que torna incalculável as perdas que podem resultar das sentenças dadas nessas ações. Quanto mais essas empresas abusarem do direito de ingressar com ações judiciais, mais o Judiciário aplicará sanções para coibir estratégias de defesa que prolongam a duração dos processos, radicalizando a possibilidade de os juízes decidirem o dano moral. É uma situação em que todos os lados perdem: a empresa, o consumidor e o Judiciário. É preciso criar, cada vez mais, mecanismos de prevenção e resolução de conflitos antes que estes sejam levados à Justiça e se transformem em processo. Nesse sentido, as agências reguladoras deveriam ter uma atuação mais efetiva, com o objetivo de criar nas empresas setores de conciliação e mediação de conflitos. Mais ainda: elas deveriam criar canais por meio dos quais o consumidor pudesse requerer a intervenção das agências antes de recorrer aos tribunais. Outra medida importante seria fortalecer os Procons, dando a eles também capacidade para atender um número maior de demandas. Aqui no Rio de Janeiro, o Procon só aceita 50 queixas por dia.
Idec: O senhor acha que Sistema Nacional de Defesa do Consumidor ainda está muito fragilizado no Brasil?
JF: Ele não tem presença. Tem disposição, mas não possui musculatura, por isso não chega aos milhões de consumidores que precisam dele. É certo que não vai existir uma fórmula mágica para resolver essa situação, seja ela a conciliação em nível da concessionária ou da justiça administrativa no âmbito das agências, ou apenas a ação dos Procons. É preciso se valer de todas essas possibilidades, inclusive de câmaras de arbitragem, que já funcionam muito bem para os grandes negócios. Elas vão ter de se transformar, pouco a pouco, em câmaras de mediação, que é para atingir uma maior gama de conflitos e, entre estes, os do consumidor. O problema é tão sensível que o governo do Estado do Rio de Janeiro deverá criar, em 2013, a Secretaria Estadual de Direito do Consumidor. Os planos estão sendo detalhados e novos tipos de software devem ser desenvolvidos com o objetivo de solucionar, por meio de ferramentas tecnológicas, grande parte dos conflitos envolvendo consumidores e fornecedores, sem qualquer intermediação. De modo que você pode imaginar no futuro um direito do consumidor defendido pelo próprio consumidor sem qualquer tipo de intermediário, apenas utilizandose de recursos tecnológicos que lhe forem colocados à disposição.
Idec: Como o senhor vê a participação do consumidor nas audiências e consultas públicas promovidas pelas agências reguladoras?
JF: Ela é insuficiente. Além do mais, a discussão técnica das questões e os recursos para contratar bons consultores e advogados fazem os legítimos lobbies econômicos mais presentes nessa regulação. Do meu ponto de vista, a união entre a opinião pública e a mídia exerce um poder muito mais forte que uma audiência pública. A divulgação que os meios de comunicação fazem da insatisfação dos consumidores, os rankings de empresas mais reclamadas, os baixos índices de resolução de reclamações, o uso de sites para divulgar más práticas de consumo, tudo isso, somado à pressão da própria opinião pública, tem maior impacto e efetividade nas decisões tomadas pelas agências e no comportamento das empresas.
Idec: Qual é o papel das entidades de defesa do consumidor nesse processo?
JF: Elas têm de, mais e mais, se especializar não somente nos mecanismos tradicionais de audiências públicas, nas análises técnicas e proposições, mas também se voltar para o uso da opinião pública como um instrumento de defesa do consumidor. Porque o que está em jogo em muitos momentos é o capital da marca da empresa, e contra esse capital, que é um bem intangível, deve-se atuar com pressões intangíveis [ou seja, quando necessário, as entidades de defesa do consumidor devem ajudar a expor a imagem da empresa de maneira negativa].