Remédio na mão é um problema
Guardar medicamentos em casa favorece a automedicação e todos os riscos que ela envolve, mas a dificuldade de descartá-los corretamente estimula essa prática. A venda fracionada dos remédios poderia minimizar a medicação por conta própria e o descarte inadequado, no entanto, ainda não saiu do papel.
Quando surge aquela dor de cabeça ou a garganta começa a coçar, muita gente não pensa duas vezes: em vez de ir ao médico, recorre à famosa “farmacinha” – a caixinha de remédios mantida em casa – à procura de um comprimido que possa, supostamente, resolver o problema. Segundo José Luis Maldonado, assessor técnico do Conselho Federal de Farmácia (CFF), guardar medicamentos em casa faz parte da cultura dos brasileiros. Porém, esse costume traz uma série de riscos. Para começar, o estoque doméstico pode comprometer a qualidade das drogas. “Dependendo do tempo que ficam guardados e das condições em que isso é feito, os medicamentos podem perder as características asseguradas pelo fabricante”, alerta Maldonado.
A automedicação (uso do remédio por conta própria) é mais perigosa do que parece. Como explica o técnico do CFF, um remédio que deu certo para uma pessoa pode não dar para outra, e, mais do que isso, pode ser prejudicial, caso ela seja hipersensível ou tome uma dose excessiva, por exemplo. O uso indevido de medicamentos – seja por equívoco na automedicação ou por acidentes (que também são facilitados quando há um estoque de remédios em casa, principalmente nas que têm crianças), é a maior causa de intoxicação no país, segundo dados do Sistema Nacional de Informações Tóxico Farmacológicas (Sinitox), da Fundação Osvaldo Cruz. Em 2009, o Sinitox registrou quase 27 mil casos e 71 mortes por intoxicação medicamentosa.
"Apesar dos riscos, do total de medicamentos consumidos no país, 30% são por conta própria"
José Augusto Cabral de Barros, médico e representante do Idec no Comitê Nacional para Uso Racional de Medicamentos
Apesar desses riscos, do total de medicamentos consumidos no país, 30% são por conta própria, de acordo com o médico José Augusto Cabral de Barros, que pesquisa o assunto há mais de 30 anos. Barros é sócio-fundador do Idec e representante do Instituto no Comitê Nacional para Uso Racional de Medicamentos. Segundo o especialista, um dos responsáveis pelo fenômeno da automedicação é o sistema de saúde deficiente. “Para grande parte da população, conseguir uma consulta médica é um martírio. Por isso, muitos preferem ir direto à farmácia”, analisa. Ainda de acordo com Barros, o fácil acesso aos remédios induz à automedicação. Maldonado concorda. “O desrespeito à lei com a venda de medicamentos que precisam de receita sem a apresentação desta e o livre acesso aos isentos [de prescrição] ajudaram a criar essa cultura de tomar medicamento por conta própria”, atesta Maldonado.
Os dois especialistas criticam a recente decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de liberar a oferta de medicamentos que não precisam de receita médica nas gôndolas de farmácias e drogarias. Em 2009, a agência aprovou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) no 44, que determinava que medicamentos como analgésicos e antitérmicos ficassem atrás do balcão das farmácias, de forma que o consumidor precisasse pedi-los ao farmacêutico. Contudo, em julho, a Anvisa voltou atrás, apesar das manifestações contrárias do Idec e de outros órgãos durante a consulta pública sobre o tema. “É um absurdo. O fato de um medicamento ser isento de prescrição não significa que ele não apresente risco. Remédio não é um produto qualquer, para o consumidor pegar na prateleira e levar pra casa sem orientação”, opina o sócio-fundador do Idec. O técnico do CFF concorda. “Medicamento não é bala. Uma ‘simples’ aspirina pode provocar perfuração esofágica”, exemplifica. Tanto esses remédios não são inofensivos que, segundo dados da Anvisa, os analgésicos e os antitérmicos estão entre o que mais causam intoxicação. Fracionar é preciso
Asobra de medicamentos é um problema tanto de saúde pública, por favorecer o estoque em casa e, consequentemente, a automedicação, quanto ambiental, pelo problema do descarte inadequado. De acordo com Maldonado, do CFF, as sobras são frequentes porque, no geral, a quantidade de medicamento que vem nas caixinhas não é adequada aos planos terapêuticos. Assim, muitas vezes, uma caixa é pouco, e duas são demais. A solução para esse impasse existe, mas não é implementada: chama-se fracionamento, que é a fabricação de medicamentos em embalagens especiais que permitam a venda na medida exata que o consumidor precisa.
O fracionamento foi autorizado pelo governo federal, através do Decreto no 5.775/2006, e regulamentado pela RDC no 80/2006, da Anvisa. Nem o decreto nem a regulamentação, porém, estabeleceram obrigatoriedade de fabricação e comercialização de remédios fracionáveis. Com o desinteresse dos fornecedores, o resultado foi que, seis anos depois da criação da lei, ela não saiu do papel. Para Barros, o fracionamento só vai “pegar” se for obrigatório. “Voluntariamente, nunca acontecerá, porque vai contra a lógica de mercado de vender mais”, acredita. A advogada do Idec Joana Cruz destaca que a falta de obrigatoriedade do fracionamento, assim como do descarte adequado, estão em desacordo com a Política Nacional de Medicamentos (Portaria no 3.916/1998, do Ministério da Saúde) e a Política Nacional de Assistência Farmacêutica (Resolução no 338/2004 do Conselho Nacional de Saúde).
Além disso, laboratórios e drogarias alegam entraves técnicos para a implementação da medida. A Abrafarma, por exemplo, afirma que “o fracionamento de medicamentos foi superado pela própria realidade, pois aumenta assustadoramente o risco de falsificações, uma vez que as embalagens fracionáveis, pelo seu próprio tamanho e formato, e a posterior separação em ‘pequenas partes’, ou aglomeração em ‘novos frascos’ fragiliza o processo”. O técnico do CFF, no entanto, aponta que é possível, sim, incluir nas embalagens, informações que garantam a segurança e a rastreabilidade das drogas. Mas isso exige investimento dos fornecedores. “O fracionamento foi pensado para induzir o uso racional de medicamentos, independentemente de custos. Ele é um direito e o consumidor tem que exigir que seja cumprido”, ressalta Maldonado.
SAIBA MAIS
- Artigo Direitos do consumidor e uso racional de medicamentos http://goo.gl/94D5S
- Os perigos da automedicação http://goo.gl/Rqn4w
- Site da Anvisa sobre medicamento fracionado www.anvisa.gov.br/fracionamento
Enquanto o fracionamento não sai do papel, as farmácias de manipulação são uma alternativa para o consumidor comprar medicamentos na quantidade exata de que precisam para o tratamento. Na manipulação, o remédio é “personalizado”, ou seja, fabricado na dosagem, concentração e quantidade estabelecidas pelo médico. De acordo com José Luis Maldonado, técnico do CFF, o pressuposto da manipulação é produzir medicamentos que não são industrializados ou que, por alguma necessidade do paciente, precisam ser adaptados. “Tem pessoas — idosos e crianças, principalmente — que não conseguem deglutir o remédio, por menor que seja a cápsula. Nesse caso, é necessário mudar a forma de apresentação farmacêutica do medicamento, e a manipulação é a solução”, exemplifica.
Na prática, contudo, não são só esses casos que vão parar nos balcões de manipulação: as farmácias costumam produzir qualquer tipo de remédio. Segundo o farmacêutico, desde que o estabelecimento cumpra todos os requisitos estabelecidos pela vigilância sanitária, a manipulação pode ser uma opção interessante para o consumidor.
Para adquirir medicamentos manipulados, o paciente deve ter uma receita médica especificando a dosagem, a concentração etc. A embalagem deve apresentar todas as informações sobre as características do remédio: prazo de validade, composição, quantidade ou volume, indicação da farmácia e do farmacêutico responsável pela manipulação do produto, indicações para o uso correto, além do nome da pessoa que irá fazer uso do medicamento e o do médico que prescreveu a fórmula.
ALTERNATIVAS PARA O DESCARTE
Ok. Guardar remédios em casa pode ser perigoso, mas o que fazer, então, com as sobras? Algumas pessoas costumam doá-las a instituições de caridade. Contudo, Maldonado pondera que, para evitar riscos, essa só deve ser uma possibilidade caso a embalagem esteja íntegra, com informações sobre o lote e o prazo de validade, e desde que haja um farmacêutico para receber e administrar os medicamentos. Mas e o que fazer com aqueles que não estão dentro dessas condições, ou até já vencidos? Embora nem todo mundo saiba, os remédios não podem ser descartados no lixo comum, pois as substâncias químicas presentes na droga podem contaminar o solo. E, caso vá parar num lixão, por exemplo, o perigo é de que pessoas ou animais o consumam e se intoxiquem. Jogar pela pia ou pela descarga tampouco é recomendável pelo risco de contaminação da água.
Por enquanto, não existe nenhuma lei federal que regulamente o descarte de medicamentos no que se refere ao consumidor doméstico; há apenas normas para os grandes geradores de resíduos, como hospitais, laboratórios, farmácias e drogarias. Felizmente, isso deve mudar em breve, pois a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) determina que todos os resíduos de medicamentos tenham destinação adequada, com um plano de logística reversa (devolução para quem os produziu) e metas de redução da geração de resíduos. De acordo com a Anvisa, coordenadora do Grupo de Trabalho Temático (GTT) que discute como implementar essas medidas, está prevista para março do ano que vem a apresentação de um acordo setorial sobre o assunto. Mas até as propostas saírem do papel, tem muito chão pela frente.
A agência reguladora autoriza as farmácias e drogarias a, voluntariamente, recolher medicamentos descartados pela população. Mas, sem serem obrigadas, será que elas põem isso em prática? A Revista do Idec questionou, via assessoria de imprensa, as cinco principais redes do país, segundo o último ranking da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), referente a 2010: Droga Raia; Drogasil; Drogaria São Paulo; Drogaria Pacheco; e Pague Menos. Esta última, porém, não respondeu.
As drogarias São Paulo e Pacheco, que fazem parte de um mesmo grupo empresarial, informaram que recolhem, em todas as suas filiais, medicamentos fora de uso, exceto remédios controlados (psicotrópicos, anorexígenos, anabolizantes etc.).
A Droga Raia tem parceria com o programa Descarte Consciente, uma iniciativa de empresas do setor farmacêutico, e recebe todos os tipos de medicamento – inclusive os de controle especial – porém, o recolhimento não é feito em todas as filiais, apenas nos pontos de coleta indicados no site www.descarteconsciente.com.br. De acordo com Roberto Yunes, representante da Brasil Health Service (BSH), empresa responsável pela gestão do programa Descarte Consciente, a prefeitura de São Paulo só autoriza o descarte de remédios controlados nessas estações de coleta, pois os aparelhos são equipados com sistemas de controle e rastreamento dos medicamentos. Já a Drogasil, embora tenha sido comprada pela Droga Raia, não faz parte do programa Descarte Consciente nem tem outra iniciativa para o recolhimento. Segundo a assessoria de imprensa, as redes estão em fase de integração.
Confira no quadro abaixo outras iniciativas para a coleta de medicamentos fora de uso.
Veja algumas opções para entregar medicamentos fora de uso. Caso nenhuma dessas iniciativas esteja disponível em sua cidade, procure a prefeitura municipal para saber o que fazer.
-Programa Descarte Consciente www.descarteconsciente.com.br. Há postos de coleta em cidades das regiões Sul e Sudeste, e em Pernambuco, no Nordeste; a inauguração de postos no Ceará está prevista para este mês.
- Em todas as filiais da Drogaria São Paulo e da Drogaria Pacheco (só não recebem medicamentos controlados).
- Em todas as Unidades Básicas de Saúde da rede municipal de São Paulo. Procure o mais próximo em http://goo.gl/A8QaN.
- Em alguns supermercados Pão de Açúcar e Extra, em São Paulo (SP). Veja quais em http://goo.gl/8XC4A.