Do lado do consumidor
No final de maio, entrou em vigor a chamada "lei do SuperCade" (Lei 12.529/11), que deu novas atribuições ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Agora, o órgão é responsável por acompanhar todo o processo dos atos de concentração econômica (fusão e aquisição de empresas) e por avaliar condutas anticompetitivas, atividades que antes eram divididas com a Secretaria de Direito Econômico (SDE), do Ministério da Justiça, e a Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae), do Ministério da Fazenda. Daí o termo "super" atribuído a ele. As mudanças no sistema de concorrência abriram espaço para a criação da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), uma antiga reivindicação do Idec.
Além disso, a lei do SuperCade estabeleceu uma nova forma de avaliação dos atos de concentração: agora, todos precisam passar por análise prévia do Cade para serem concretizados. Antes, a avaliação ocorria depois de a concentração já ter sido consumada, o que dificultava a anulação do processo, mesmo que ele representasse diminuição da concorrência e, consequentemente, prejuízos para o consumidor.
Para entender melhor essas mudanças, entrevistamos, por telefone, o novo presidente do Cade, Vinícius Marques de Carvalho, que tomou posse em julho. Doutor em Direito Comercial, Carvalho foi secretário da SDE até assumir a presidência do Cade e, antes disso, de 2008 a 2011, já havia sido conselheiro do órgão.
IDEC: O que o senhor achou da criação da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon)? E de que forma o trabalho dessa Secretaria e do Cade se complementam?
VINÍCIUS MARQUES DE CARVALHO: Eu vi o surgimento da Senacon com grande alegria e entusiasmo. Quando me tornei secretário de direitos econômicos [cargo que ocupou antes de ser nomeado presidente do Cade], eu me dei conta da importância do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) e de seu empenho, com os Procons, as Defensorias Públicas, os Ministérios Públicos e as entidades civis, como o Idec.
Hoje, o consumo é um direito econômico essencial para o acesso à cidadania. Nada mais natural do que dar o status de secretaria a esse tema. O Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assumiu isso como um projeto e só esperou a aprovação da lei do novo Cade para criar a Secretaria Nacional do Consumidor.
Eu acho que o prognóstico é muito positivo, pois, com a Secretaria, a defesa do consumidor ganha um novo status. E nós, aqui na defesa da concorrência, temos procurado potencializar ações que possam ser complementares, já que tanto a defesa do consumidor quanto a defesa da concorrência têm como objetivo garantir o bem-estar do consumidor. Quando tomei posse como presidente do Cade, assinei um termo de cooperação com a Juliana Pereira, secretária da Senacon, com o intuito de estabelecer um diálogo entre essa secretaria e o Cade.
A defesa do consumidor, assim como a defesa da concorrência, tem se afastado do seu papel de punir situações individuais, para fortalecer o caráter preventivo e educativo.
IDEC: O senhor tem afirmado, desde sua posse como presidente do Cade, que o órgão vai passar a analisar as operações de concentração econômica das empresas levando em conta cada vez mais aspectos relativos à defesa e proteção do consumidor. O senhor pode explicar isso melhor?
VMC: Mesmo quando o nível de concentração apresentado ao Cade é alto, a operação pode ser aprovada, se for observado, durante o processo de análise, que a concentração não é maléfica ao consumidor, ou seja, que não acarretará aumento de preço, perda de qualidade dos produtos e redução de investimentos em inovação.
IDEC: Quais os benefícios que a análise prévia das operações de concentração econômica (fusões e aquisições de empresas) traz ao consumidor?
VMC: No modelo anterior, as empresas podiam consumar a operação antes da análise do Cade. Com a nova lei, a análise é prévia. Dessa forma, os consumidores não serão prejudicados caso a operação tenha efeitos negativos. Esse é um benefício bastante importante.
O segundo grande benefício é que as empresas tendem a fazer uma análise de risco mais cuidadosa e detalhada no momento em que estão avaliando a possibilidade de um ato de concentração; e se, por ventura, chegarem à conclusão de que a tendência do Cade será a de reprovar a operação, elas podem até deixar de realizá-la. As empresas podem optar por, em vez de crescer via fusões e aquisições, crescer por meio de mecanismos orgânicos, como investimentos em produtividade, em inovação e em capacidade produtiva. E se, mesmo percebendo que a fusão oferece riscos concorrenciais, decidir fazê-la, a empresa pode sugerir ao Cade "remédios" para mitigar os riscos, o que também facilita a nossa análise.
IDEC: O senhor acredita que, com a análise prévia, a relação da Justiça com o Cade será mais respeitosa em relação às suas decisões, ou ainda existem brechas para a contestação das decisões do órgão?
VMC: O princípio da revisão judicial é garantido pela Constituição. O índice de confirmação das decisões tomadas pelo Cade é elevado (cerca de 70%). E essa porcentagem aumentou nos últimos anos, porque o Cade tem se preocupado cada vez mais com princípios basilares do estado democrático de direito, com os quais o Judiciário também se preocupa muito. O nosso objetivo é continuar aprimorando a transparência desses princípios.
IDEC: E o papel do Cade para nessa análise prévia ou ele continua acompanhando a atuação das empresas após a aquisição/fusão?
VMC: Se o Cade não detectar nenhum problema e a fusão for aprovada sem restrições, a tendência é que só voltemos a olhar o crescimento desse mercado de novo quando acontecer outra fusão nele ou se recebemos uma denúncia de conduta anticompetitiva. Já se a fusão for aprovada com restrições, o órgão a acompanha e monitora.
Temos um projeto que pretende avaliar o impacto das nossas decisões, independentemente de a aprovação ter sido com ou sem restrição. Ou seja, olhar para um mercado e analisar o que aconteceu nele depois de uma aprovação do Cade – se ela teve impacto e se este foi positivo ou negativo – não para rever a decisão, mas para aprimorarmos nossos mecanismos de intervenção. Já estamos fazendo isso no caso da aquisição do Mate Leão pela Coca-Cola.
IDEC: Temos a impressão de que, mesmo com as medidas impostas pelo Cade para mitigar a concentração no mercado, como obrigar as empresas a renunciar ou suspender o uso de certas marcas fortes, o resultado é que, ao final, a empresa resultante da fusão detém maior parte do mercado e o consumidor fica sem muita opção (por exemplo, a compra da Kolynos pela Colgate-Palmolive, em 1996; e, mais recentemente, a compra da Sadia pela Perdigão). Isso é só impressão?
VMC: Primeiramente, é importante ressaltar que existem alguns mercados que têm tendência à concentração e, às vezes, esta gera bem-estar ao consumidor. Vou fazer uma comparação talvez um pouco reducionista: às vezes, é melhor ter de escolher entre quatro produtos bons de marcas diferentes do que entre dez muito ruins. Em tese, a concentração não é um mal, ela só o é quando gera um potencial abuso de poder econômico. No caso da Sadia-Perdigão, por exemplo, a restrição do Cade viabilizou a entrada de dois novos concorrentes no mercado de suínos e de frangos: a Marfrig, que já estava no mercado e cresceu bastante com a venda dos ativos da Sadia-Perdigão, e a JBS, que está entrando no mercado de suínos e ovinos. Os consumidores ganharam duas novas opções em decorrência das decisões do Cade.
IDEC: Com a reestruturação do Cade, houve uma modificação na aplicação de multas em caso de infração das empresas. Quais as novidades?
VMC: A lei anterior falava que a multa seria de 1 a 30% do faturamento da empresa, descontados os tributos; a nova lei fala de 1 a 20% do faturamento do grupo econômico envolvido na infração e não prevê a exclusão de tributos. Tem muita gente que fala "nossa, mas a lei nova diminuiu o poder de punição do Cade". Eu tenho minhas dúvidas quanto a isso, porque uma lei fala em empresa e a outra, em grupo. Então, temos uma mudança na base de cálculo, já que uma fala em faturamento total e a outra, de faturamento descontados os tributos.
IDEC: De que forma o Cade poderia trabalhar mais próximo às agências reguladoras ou mesmo aos ministérios, no sentido de ajudá-los a corrigir más práticas empresariais reiteradas que trazem prejuízos ao consumidor? Ou isso foge das atribuições do Cade?
VMC: A defesa da concorrência tem dois eixos: um preventivo, que controla os atos de concentração, e outro repressivo, que coíbe as condutas anticompetitivas. No caso das agências reguladoras e dos setores regulados, de uma maneira geral, temos um terceiro eixo, chamado de advocacia da concorrência.
Com a nova lei, esse terceiro eixo fica sob a responsabilidade da Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae), do Ministério da Fazenda, que discute as normas das agências visando incentivar uma maior competição dentro daquele mercado regulado. O Cade, quando discute condutas anticompetitivas ou atos de concentração nos setores regulados, acaba as discutindo também com as agências. Temos pensado em dialogar com elas sobre o acesso à base de dados para que consigamos construir um conhecimento comum sobre determinados mercados. Eu acho que isso tende a melhorar muito com a nova lei, porque criamos algumas coordenações técnicas dentro do Cade e aumentamos o corpo técnico, o que permite dialogar melhor com as agências.
IDEC: Mesmo que o Cade não acompanhe os preços no varejo, qual a sua opinião sobre o fato de que conhecidas marcas de roupas, artigos esportivos, eletroeletrônicos etc. impõem um "tabelamento" de preços de seus artigos aos comerciantes? Isso não é uma prática anticoncorrencial que prejudica consumidores e lojistas?
VMC: Essa conduta é descrita na literatura antitruste como fixação de preço de revenda e pode ou não ter efeito anticompetitivo, ou seja, pode ou não ser uma conduta anticoncorrencial. Ela é anticoncorrencial quando incentiva uma conduta coordenada entre as marcas participantes de determinado mercado. No caso de tênis, por exemplo, a tendência é que a fixação de preço de revenda tenha um efeito pró-competitivo, porque ela permite incentivar a concorrência entre marcas e não intramarca. Por exemplo, se eu fabrico o tênis x e não quero que os revendedores vendam meu produto pelo preço que eles desejarem, eu posso estabelecer o preço já com a margem do varejista. Assim, o meu tênis x vai competir com o tênis y e não com o mesmo tênis x de outro comerciante. Isso não é necessariamente ruim, mas cada caso é um caso.
SAIBA MAIS
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) www.cade.gov.br