Toda cidade pode ser ciclável
Idec: Estamos em um momento de ascendência da classe C e de estímulo à indústria automobilística. Isso dificulta o estímulo ao uso de transporte coletivo?
RC: Você pode estimular a compra de automóveis sem incentivar o uso. Mas, para isso, é preciso melhorar as condições do transporte coletivo em vez de abrir mais avenidas, porque mais vias significam mais carros e, consequentemente, mais congestionamento. O cidadão pode ter carro para usar no fim de semana para passear com a família, não para ir ao trabalho, sozinho, e deixá-lo parado por oito horas num estacionamento ou ocupando uma vaga na rua, que é um espaço público. Se o carro é usado coletivamente, ele não é tão agressivo para a cidade, o problema é o uso individual.
Idec: Com um transporte coletivo ruim em grande parte das cidades, como estimular seu uso em detrimento do automóvel? O Dia Mundial sem Carro, que acontecerá no dia 22 deste mês, é uma iniciativa válida?
RC: O Dia Mundial sem Carro é simbólico, em um mundo onde as cidades são desenhadas para o uso do automóvel, mas apenas cerca de 5% dos cidadãos o adotam. Em São Paulo, apenas 20% dos habitantes usam carro. Ou seja, 80% da população já não o usaria em 22 de setembro. Não adianta instituir um Dia Mundial sem Carro sem oferecer alternativas para esses 20% da população. Em vez de um dia sem carro, deveria ser criada uma semana da mobilidade para se discutir essa questão. Isso, sim, geraria impacto.
Idec: Alguns urbanistas defendem que seria possível melhorar a mobilidade impedindo que os veículos estacionem nas vias e ampliando o número de estacionamentos de superfície e subterrâneos em algumas áreas, sobretudo próximas de metrô e terminais de ônibus. O que você pensa disso?
RC: Existem muitos achismos, mas um dado interessante é que nas cidades norte-americanas cada vaga na rua estimula sete carros a saírem de casa. Em Londres, por exemplo, o pedágio urbano onera quem tem renda e quer usar o carro, mas o dinheiro arrecadado é usado como subsídio para um transporte coletivo de qualidade. Não dá para simplesmente cobrar pedágio urbano em São Paulo e proibir os carros de pararem na rua sem oferecer um bom transporte público. Em Belo Horizonte, identificamos que o sistema de transporte coletivo é subutilizado em certos locais do centro e muito utilizado em outros. Começamos, então, a estudar a quantidade de estacionamentos privados e verificamos que existem muitos e que eles concorrem entre si. Com isso, o preço acaba baixando, incentivando as pessoas a andarem mais de carro, porque é barato estacionar. Isso deve ser regulado e planejado. Por exemplo, quando se atingir determinado número de estacionamentos, fica proibido construir novos.
Idec: Por que a implantação de corredores de ônibus é tão tímida em alguns centros urbanos?
RC: Aqui em São Paulo, não se chegou nem perto do que foi feito em Curitiba na década de 1970. Os corredores de ônibus têm de funcionar como o metrô: o passageiro paga antes de embarcar, aguarda numa plataforma e pode entrar e sair de ônibus biarticulados por mais de uma porta. Isso aumenta a agilidade do sistema e é essencial para aumentar a capacidade. Não adianta ter um corredor se as pessoas têm de formar fila para pagar a passagem dentro do ônibus, e se cada ônibus vai para um lugar. Tem de ser como o metrô: todos os ônibus vão e voltam naquela linha e, quem quiser mudar de sentido, tem de trocar de ônibus.
Hoje, em São Paulo, temos 15 mil ônibus, mas precisamos de um sistema mais eficiente, que consiga atender mais gente (por um corredor de ônibus passam em torno de 50 mil passageiros por dia). O ideal seria que os ônibus não saíssem do corredor, que a velocidade fosse mais alta e que o cidadão pudesse pegar qualquer um que passasse, não tivesse de esperar por “seu ônibus”.
Na Marginal Tietê [avenida de São Paulo que margeia o rio Tietê], um corredor de ônibus daria conta de toda a população. Se a capacidade do transporte coletivo for aumentada, as pessoas deixarão de usar tanto o carro e migrarão para ele, porque verão os ônibus andando mais rápido e os ciclistas pedalando felizes. Então, será possível tirar vagas das ruas, estreitando as vias e diminuindo a velocidade dos carros para, no máximo, 50 km/h. Com isso, ganha-se espaço entre as faixas e os carros, que poderia virar uma ciclovia.
Uma maneira de implantar corredores seria fazer com que as ruas paralelas fossem exclusivas para carro.
Idec: Um levantamento feito pelo Idec em novembro do ano passado constatou que o metrô brasileiro está entre os mais caros do mundo (o valor da passagem chega a representar 20% do salário). Mas, embora o preço seja alto, a malha metroviária é ínfima perto de outros países. A que você acha que isso se deve?
RC: O transporte coletivo nas grandes cidades ricas é subsidiado pelo poder público, que sabe que, com um bom sistema de transportes, as pessoas vão se deslocar mais e vão fazer girar a renda da cidade.
Em São Paulo, o metrô não é subsidiado e, por isso, ele é tão caro. Eu não conheço a política pública do metrô, mas falo como cidadão: já que o metrô não é subsidiado, por que não se melhora o transporte coletivo de superfície? Em oito anos, daria para resolver muita coisa. O metrô, no ritmo em que está, em oito anos não vai melhorar muito. Mas em oito anos é possível revolucionar o sistema de transporte de superfície, e São Paulo tem capital para isso.
Idec: Até Brasília, que tem uma topografia que favorece a implantação de uma rede metroviária, privilegia o transporte individual. Seu metrô é o segundo maior do país, mas só tem 42 km de extensão. O que a impede de ter um metrô mais eficiente?
RC: Nada melhor do que a capital do país para servir de modelo. Quando Brasília foi projetada por urbanistas e arquitetos que se diziam comunistas, acreditava-se num modelo de modernidade que seria “carro para todos”, mas ninguém pensou que se todo mundo usasse carro, a cidade travaria. Eu acho que existem condições de se mudar o modelo de Brasília sem tocar no que foi planejado inicialmente. A cidade é um organismo vivo, se você congelá-la, ela estará fadada ao fracasso. O país cresceu, a vida dos brasileiros se transformou, mas não há vontade política de mudar.
Idec: Como o metrô é uma solução cara e demorada, a implantação de ramais de monotrilho seria uma boa alternativa?
RC: O monotrilho não é a solução para esse momento. Se já estivesse tudo saturado, implantar o monotrilho seria uma solução. O problema é que ele é muito mais caro que o sistema de ônibus e de ciclovia, e menos eficiente. E, por estar a 20 m de altura, além de poluir a paisagem urbana, ele não compete com o carro, porque não tira o seu espaço.
Idec: A mídia revela constantemente que as receitas oriundas de multas não são revertidas para melhoria no transporte público. Não seria mais correto se as cidades fossem obrigadas a criar um fundo público com esse dinheiro para financiar as melhorias?
RC:O dinheiro arrecadado com multas não é usado para a melhoria do transporte público porque as secretarias não conversam (em São Paulo, por exemplo, temos a CET [Companhia de Engenharia de Tráfego] e a SP-Trans). Fica cada uma no seu quadrado , tentando resolver os seus problemas e gerando mais recursos para si. Só com a aprovação da Política de Mobilidade Nacional Urbana (PMNU), neste ano, é que surgiu a possibilidade de essas relações acontecerem.
SAIBA MAIS
TC Urbes — mobilidade e projetos urbanos http://tcurbes.com.br
Não é de hoje que um dos grandes desafios dos prefeitos é a questão do transporte público. De acordo com a Constituição, essa área tão dificultosa é de competência dos municípios, que podem administrar o serviço ou concede a administração a uma empresa, por meio de licitação. Como estamos em ano de eleições municipais, a torcida é para que as tão propagadas melhoriassaiam do discurso e sejam colocadas em prática.
Este é um dos muitos temas com o qual o Idec se preocupa. Isso porque, desde a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, os usuários de trem, metrô ou qualquer outro transporte público são considerados consumidores, portanto, são protegidos por essa legislação. Os direitos existem, só precisam ser efetivados.
Em um bate-papo descontraído, o arquiteto e urbanista Ricardo Corrêa, sócio-fundador da empresa de consultoria TC Urbes e especialista na área de transportes, planos e projetos cicloviários para institutos nacionais e internacionais, opinou sobre o setor de transportes, que ele conhece bem, e deu algumas sugestões para a melhoria da mobilidade urbana, como, por exemplo, tornar as cidades cicláveis, de forma que os cidadãos possam ir a qualquer lugar de bicicleta
Idec: Quais são os principais problemas relacionados ao transporte público no Brasil? Eles costumam ser os mesmos nas diferentes cidades do país?
RICARDO CORRÊA: O problema do transporte público está diretamente relacionado à falta de planejamento. Não existe falta de dinheiro, existe falta de prioridade pública. No Brasil, a mobilidade problemática é um dos reflexos da desigualdade social. Em um país que não preza por uma sociedade igualitária, prioriza-se o transporte individual em vez do coletivo.
Uma sociedade que não tende a ser justa não tem uma mobilidade justa e, consequentemente, tem um transporte público de má qualidade. No Brasil, por exemplo, quem tem carro e mora em um centro urbano consegue fazer em média de quatro a cinco viagens por dia, mesmo com trânsito, e, assim, usufruir da cidade. Quem mora em bairros afastados tem menos mobilidade (a média é de uma viagem e meia por família) e não consegue desfrutar da cidade. Já nos países desenvolvidos, a média é de cinco a seis viagens por dia, independentemente da renda.
Neste ano, após 29 anos de tramitação, foi aprovada a Política Nacional de Mobilidade Urbana [PNMU – Lei no 12.578/2012], que estabelece que todos os municípios com mais de 20 mil habitantes tenham um plano de mobilidade que priorize os não motorizados e o transporte público, em detrimento do transporte individual motorizado. A questão não é abolir o carro; ele pode existir, mas não deve ser prioridade.
Um modelo brasileiro de mobilidade muito conhecido é o de Curitiba (PR), concebido em meados da década de 1970. De lá pra cá, o sistema não evoluiu nem foi copiado por outras cidades, porque não há interesse. É muito mais interessante construir uma ponte estaiada, como aconteceu em São Paulo (SP), que pode sair na mídia e até virar pano de fundo para telejornal.
Mais recentemente, Belo Horizonte (MG) tem feito um bom entendimento de mobilidade, e o Rio de Janeiro está tentando desenvolver uma versão melhorada do sistema de Curitiba, principalmente para os grandes jogos [Copa do Mundo de 2014 e Olimpíada de 2016], e implantando o sistema cicloviário, mas não existe uma integração muito clara entre o transporte coletivo, as bicicletas e os carros. O transporte tem de ser multimodal: se é possível ir de carro até o metrô e pegar uma bicicleta pública, você ganha dinâmica urbana. Cidades europeias, como Paris e Londres, têm apostado no modelo de bicicletas públicas, e a quantidade de viagens aumentou em 5%. É interessante que, quanto mais rico um país é, melhor o seu sistema cicloviário e de transporte coletivo. A situação é inversamente proporcional nos países pobres, como a Nigéria, por exemplo, que tem sistemas rodoviários com pontes muito semelhantes às de São Paulo. Parece moderno, mas prioriza as necessidades da população de alta renda.
Rio Branco (AC) já tem mais de 100 km de ciclovia, por onde passam 500 ciclistas por hora. Fizemos um trabalho nessa capital, porque existe uma premissa de que implantar ciclovia é só fazer uma pintura no chão e pronto. Mas existe toda uma lógica, que, se não for seguida, gera confusão, como tem ocorrido com as ciclofaixas de lazer, que são colocadas junto ao canteiro central. O correto é o ciclista ficar perto do pedestre, já que a sua velocidade e massa se assemelham mais à dele.
Idec: Além de Rio Branco (AC), quais outras cidades estão tentando inserir a bicicleta como meio de transporte, integrando-a ao sistema viário?
RC: Porto Alegre tem um Plano Diretor Cicloviário integrado à legislação e ao plano de transportes. Se não me engano, lá, a cada 200 vagas de carro, tem de ser criado 1 km de ciclovia. Belo Horizonte, mesmo sendo uma cidade montanhosa, também tem um plano cicloviário.
Idec: Todas as cidades têm potencial para ter ciclovias, de modo que a bicicleta seja usada como meio de transporte?
RC: Como não temos relevos muito acidentados, todas as cidades brasileiras têm condições de se transformar em cidades cicláveis, que são aquelas que permitem que o cidadão vá, com segurança, de qualquer origem a qualquer destino de bicicleta, podendo fazer parte do trajeto de carro ou transporte coletivo.
Idec: Quais são as condições para uma cidade se tornar ciclável?
RC: Em primeiro lugar, é preciso planejamento. Depois, é necessário dar segurança aos ciclistas, independentemente da idade (uma criança de 12 anos ou um idoso de 60 não podem competir com um ônibus; eles precisam ser segregados fisicamente na ciclovia). E, em ruas locais, é preciso ter moderação de velocidade, o chamado trafic calm, para condicionar o carro a andar a 30 km/h. Hoje, o desenho das ruas e a falta de fiscalização permitem que os motoristas circulem a 70 km/h.