Barreiras ao conhecimento
Nova pesquisa do Idec constata que faltam livros na biblioteca das universidades e que o preço, quando eles estão disponíveis no mercado, é exorbitante. A situação reforça a necessidade de revisar a Lei de Direitos Autorais, que proíbe cópia para fins educacionais.
Para conseguir ler todos os livros obrigatórios na graduação, o universitário brasileiro pode se tornar um infrator. Isso porque ele não encontra todos os livros na biblioteca da faculdade e muitos deles também não estão disponíveis nem nas livrarias nem na editora (e quando estão, o preço é absurdamente alto). Fazer cópia dos livros deveria ser, então, uma possibilidade de o estudante ter acesso ao conteúdo que lhe permita acompanhar as aulas e realizar provas e trabalhos. Porém, a prática esbarra na Lei de Direitos Autorais (LDA – Lei no 9.610/1998), altamente restritiva, que impede a cópia integral de obras (não só de livros, mas também de músicas, filmes etc.) mesmo que para uso pessoal, sem intenção de lucro, ou para fins educacionais.
A sinuca de bico vivida pelos universitários foi identificada pelo levantamento realizado pelo Idec nas bibliotecas de duas universidades paulistas: a Universidade de São Paulo (USP), maior universidade estadual do país, e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), tradicional instituição privada. A pesquisa verificou a disponibilidade das obras da bibliografia obrigatória para o primeiro semestre dos cursos de Direito, Engenharia Elétrica e Medicina das duas instituições. Vale ressaltar que o objetivo do levantamento não era avaliar a qualidade das duas bibliotecas, mas utilizá-las como exemplo para revelar uma situação que se repete em outras universidades do país e também em outros cursos da USP e da PUC. “Se nessas duas grandes universidades de São Paulo já existe dificuldade para os estudantes encontrarem os livros, seja nas bibliotecas seja nas livrarias/editoras, imagine em outros estados, principalmente os mais afastados, e em áreas rurais”, ressalta Guilherme Varella, advogado do Idec e coordenador da pesquisa.
A dificuldade de acesso às obras da bibliografia obrigatória dos cursos superiores evidencia o fato de a LDA brasileira ser considerada uma das piores do mundo. “A LDA tem representado sério óbice à concretização do direito à educação no país”, ressalta Varella. “A atual lei é uma enorme barreira [à educação].
Ela só autoriza a cópia de ‘pequenos trechos’, mas ninguém sabe o que isso significa”, concorda Sérgio Branco, professor e pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-Rio).
A ausência de livros nas bibliotecas universitárias e seu alto preço nas livrarias já haviam sido verificados em 2008, na primeira pesquisa realizada pelo Idec sobre o tema (publicada na edição no 120). À época, foram analisados 13 cursos de graduação de seis faculdades, públicas e privadas, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Quatro anos se passaram e a LDA não foi alterada, o que seria boa parte da solução para o problema.
A seguir, listamos algumas iniciativas que facilitam o acesso a livros na internet:
-Domínio público: portal do Ministério da Educação que disponibiliza para download obras que já são de domínio público, ou seja, que não são mais protegidas por direito autoral, ou aquelas em que o autor ou sua família abriu mão dos direitos autorais www.dominiopublico.gov.br.
-SciElo: um dos maiores sites que disponibilizam artigos e revistas acadêmicas www.scielo.org.
-Biblioteca Brasiliana da USP: reúne todo o acervo bibliográfico do advogado, empresário e bibliófilo brasileiro José Mindlin. Os livros doados estão em processo de digitalização.www.brasiliana.usp.br
-Biblioteca Digital Mundial: dispõe de grande acervo da América Latina e da Ásia www.wdl.org/pt.
Retrocessos
A atual LDA entrou em vigor em 1998 e apresentou artigos muito mais rigorosos. A legislação brasileira anterior, de 1973, permitia a cópia integral para uso particular e sem intenção de lucro, por exemplo. Esse direito é garantido em vários países, como Estados Unidos, México, Canadá e Austrália, que preveem amplas exceções para fins educacionais. Além de mais rígida que a lei anterior, a atual LDA adota uma proteção ao autor maior que a estabelecida pelos acordos internacionais de que o país é signatário. “O Brasil tem uma lei inacreditavelmente limitadora. É incrível que um país que precisa tanto melhorar o acesso da população aos bens culturais e educacionais tenha uma Lei de Direitos Autorais que não garante esse acesso”, critica Branco.
Segundo o professor da FGV, o recrudescimento da lei brasileira ocorreu em decorrência da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), que defende que a propriedade intelectual é uma mercadoria. Além disso, Branco destaca o desenvolvimento das tecnologias digitais, que facilitaram as cópias. Em resposta, houve o endurecimento das regras para o acesso às obras. “A [atual] LDA é uma tentativa frustrada de controlar a tecnologia. Hoje em dia qualquer pessoa, em casa, consegue fazer cópias e distribuí-las facilmente. Ao tentar impedir isso por meio de uma lei rigorosíssima, esta se torna ineficaz”, afirma o professor.
Durante o governo Lula, o Ministério da Cultura (MinC) percebeu a incongruência da atual LDA frente à realidade tecnológica e deu início a um processo de discussão para a reforma da lei. Foram realizados debates e seminários e colhidas contribuições dos mais variados setores da sociedade, da indústria fonográfica às organizações da sociedade civil ligadas ao tema. “Nesse período, o Idec se articulou com outras organizações da sociedade civil e formou a Rede pela Reforma da LDA, que participou ativamente da elaboração do projeto para a criação de uma nova lei”, recorda Varella. O projeto de lei (PL) de reformulação da LDA ficou em consulta pública de junho a agosto de 2010.
“O país precisa entender que o direito autoral não é absoluto. Ele deve se equilibrar com outros direitos, como o direito à informação e à educação”
Sérgio Branco, professor da FGV-Rio
No entanto, todos os esforços caíram por terra com a nova gestão do MinC, a partir de 2011. Houve clara mudança política em relação aos direitos autorais, e o processo de revisão da LDA, então em estágio avançado, retrocedeu. “Em abril do ano passado, o atual ministério abriu novo processo de consulta pública do projeto de lei, não para dar andamento à reforma, mas para adiá-la e alterar, para pior, o texto já amplamente discutido”, critica Varella. Mais de um ano se passou e ninguém sabe o que aconteceu com o PL, pois os resultados da consulta não foram divulgados, e não há previsão para o envio da proposta ao Congresso. Com essa omissão do MinC, os parlamentares se adiantaram e levaram a discussão ao Congresso por outras vias. O deputado federal Nazareno Fonteles propôs o PL no 3.133/2012, cujo texto parte do anteprojeto para a reforma da lei autoral da gestão anterior do MinC. No Senado, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais (Ecad) também propôs a alteração de vários pontos da LDA.
Contudo, enquanto essa reforma não avança, o Brasil segue com um dos piores regimes de direito autoral do mundo. Na edição de 2012 da International Property Watchlist (IP Watchlist) – elaborada anualmente pela Consumers International –, o país recebeu a quinta pior nota em relação à legislação autoral e ao respeito aos direitos dos consumidores. O Idec foi responsável pelo levantamento de dados do Brasil. “A situação é preocupante, pois o estudo concede a pior nota (F) no quesito ‘educação’ para o regime brasileiro. Isso significa que a lei traz poucas possibilidades ao exercício do direito à educação e à utilização das obras por bibliotecas, por exemplo”, comenta Varella. Todos esses fatos só ressaltam a necessidade de mudança urgente na LDA. “O país precisa entender que o direito autoral não é absoluto. Ele deve se equilibrar com outros direitos, como o direito à informação e à educação”, finaliza Branco. Caros demais
Quando o estudante encontra à venda os livros de que precisa, corre o risco de cair para trás ao ver o preço. A bibliografia mais cara entre as pesquisadas é a do curso de Medicina da USP. Se o futuro médico comprar todos os títulos obrigatórios para o primeiro semestre, desembolsará nada menos que R$ 10.663,90. O custo dos livros equivale a quase seis vezes a renda média dos trabalhadores empregados de São Paulo, conforme levantamento mensal realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cujo valor, em março, era de R$ 1.852,40. É verdade que nem toda a bibliografia precisa ser adquirida pelo estudante, mas mesmo considerando apenas os livros em falta na biblioteca, o gasto não é para qualquer bolso: os nove títulos de Medicina indisponíveis na biblioteca da USP somam R$ 1.263,60. A situação do curso de Direito da USP não é muito melhor: a bibliografia completa do primeiro semestre custa R$ 9.267,18; e só os livros não encontrados na biblioteca representariam uma baixa de R$ 941,70 no orçamento dos estudantes.
No caso da PUC-SP, os valores são menores, porque a quantidade de livros indicados na bibliografia dos cursos é menor. Mas ainda assim são caros. Para o curso de Direito, todos os títulos recomendados pelos professores custariam R$ 2.354,87, e os nove indisponíveis na biblioteca, R$ 272,10. “Os dados demonstram quanto a cópia educacional é importante para os estudantes. Se eles dependerem da disponibilidade e do valor dos livros no mercado, certamente seu direito à educação não será concretizado”, ressalta o advogado do Idec. Branco, da FGV, concorda que a melhor saída é autorizar o xerox. “A lei precisa se adequar à realidade. Seria ótimo se as universidades pudessem ter mais livros, mas elas não têm, pois as obras são caras tanto para o estudante quanto para a biblioteca”, destaca.
Livros em falta
A indisponibilidade de livros nas bibliotecas é semelhante nas duas universidades: na USP, 17,5% dos livros solicitados estão em falta, e na PUCSP, 16,3%. Além disso, dos títulos indisponíveis nas bibliotecas, 46,2% e 30,8%, respectivamente, também não são encontrados no mercado.
Apenas os alunos da USP têm uma alternativa legal nesses casos, pois a universidade regulamentou o xerox em seu campus. Uma portaria expedida em 2005 autoriza, dentro da universidade, a cópia integral de livros esgotados e sem republicação há mais de 10 anos. “A USP faz uma interpretação da Lei de Direitos Autorais favorável à educação. Na verdade, ela aplica o direito constitucional à educação suprindo uma falha da LDA. Outras instituições de ensino deveriam seguir esse exemplo”, aprova Varella. “É uma regra bastante razoável, pois se uma obra não é republicada há mais de 10 anos, não existe qualquer prejuízo ao autor ou à editora, já que não há exemplares a serem vendidos. A cópia, nesse caso, só traz benefícios ao estudante que precisa acessar aquele conteúdo”, completa Branco. O professor da FGV também acredita que outro ponto positivo da norma interna da USP é que ela define o que é o “pequeno trecho” a que o texto da LDA faz referência, designando- o como um capítulo de livro ou um artigo de revista científica, por exemplo. “Essa definição é importante porque traz concretude a uma lei imprecisa e que, por conta de sua imprecisão, se torna ineficaz”, ele afirma.
Mas o problema não é só a ausência dos livros nas bibliotecas; a quantidade reduzida de exemplares frente ao número de alunos também dificulta a vida dos universitários. Na USP, considerando-se a bibliografia dos cursos avaliados e a quantidade de vagas disponíveis no semestre para essas carreiras, há 1,8 livros por estudante. O resultado está dentro do índice previsto pela International Federation of Library Associations and Institutions (Ifla), que estabelece como razoável a existência de 1,5 a 2,5 livros por pessoa. No entanto, a realidade das bibliotecas da universidade pública não é tão boa assim, pois a distribuição das obras recomendadas pelos professores não é nada equilibrada. No caso do curso de Direito, por exemplo, um dos títulos possui 128 exemplares, enquanto outras 38 obras obrigatórias (cerca de 30% da bibliografia) contam com apenas um ou dois exemplares para atender até 460 estudantes. No caso da PUC-SP, a média de livros dos cursos de Direito e Medicina está abaixo do padrão internacional (0,86 e 1,12 por estudante, respectivamente). A biblioteca da Engenharia é exceção, com 4,92 livros por estudante, em média, o que se justifica pelo pequeno número de alunos, cerca de 10% da quantidade de alunos do curso de Direito da mesma instituição.
Para saber como anda o acesso a livros universitários no Brasil, analisamos a relação entre a bibliografia obrigatória, a disponibilidade dessas obras nas bibliotecas das universidades e o seu preço no mercado. Utilizamos como amostra a bibliografia recomendada para o primeiro semestre dos cursos de Direito (Humanas), Medicina (Biológicas) e Engenharia Elétrica (Exatas) de duas universidades paulistas, uma pública (Universidade de São Paulo — USP) e outra privada (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo — PUC-SP). No caso da USP, a bibliografia dos cursos foi verificada no site da universidade; já a da PUC-SP, como não estava disponível no site, foi obtida junto aos coordenadores dos cursos pesquisados.
O levantamento avaliou a disponibilidade para empréstimo dos livros na biblioteca de cada curso (quando o curso não possuía biblioteca própria, avaliava-se a biblioteca central). Foram consideradas todas as edições dos livros presentes na biblioteca.
Os preços das obras foram verificados nos sites das livrarias Fnac, Livraria Cultura e Saraiva. Quando disponível em mais de uma loja, o valor considerado foi sempre o menor. Nos casos em que o livro não foi encontrado em nenhuma livraria, a pesquisa foi feita na página virtual da editora que o vende diretamente ao consumidor e, se não fosse encontrado, no site de comparação de preços Buscapé. Nas livrarias e editoras, foram pesquisadas as edições recomendadas pelos professores.
O objetivo da pesquisa não foi avaliar as bibliotecas da USP e da PUC especificamente, mas traçar um panorama da disponibilidade de livros universitários nas bibliotecas e comparar o seu preço no mercado com a renda dos estudantes.