Faz toda a diferença
VIA-CRÚCIS
Os pesquisadores do Idec percorreram árduo caminho na busca pelos dados ambientais dos carros aqui comercializados. O esforço foi infrutífero: essas informações são quase sempre omitidas, conforme se pode verificar na tabela abaixo.
O primeiro passo foi vasculhar o site das montadoras. De nada valeu fuçar aqui, escarafunchar ali, farejar pra lá. Os responsáveis pelas 14 páginas virtuais pesquisadas parecemdesconhecer os conceitos de eficiência energética e emissões de gases poluentes e de efeito estufa. Como se os produtos que esses sites vendem e promovem não queimassem uma só gota de combustível.
No entanto, esse padrão de comportamento não foi encontrado nem no site global da marca nem no site do país de origem. Em seu “domicílio”, as empresas têm o mínimo de respeito pelo consumidor. Embora nem sempre divulguem todas as informações (apenas seis das 14 montadoras revelam os dados de eficiência energética e os níveis de emissões de todos os modelos), em geral se pôde perceber que os consumidores de seus mercados de origem têm um tratamento mais próximo do que seria o ideal. A exceção é a JAC, que não divulga nada nem aqui, nem em seu site global. “O que percebemos é o chamado ‘duplo padrão’: não há transparência para com o consumidor brasileiro, ao contrário do que essas mesmas empresas fazem em seu país de origem”, afirma Janaína Uemura, coordenadora da pesquisa.
Não que os sites brasileiros ignorem conceitos de sustentabilidade. Ao contrário, eles quase sempre propalam com entusiasmo as políticas de responsabilidade ambiental da empresa. Já a divulgação dos dados ambientais dos produtos é deixada de lado. Foram tantas as pérolas que não temos espaço para divulgar todas. Mas a da Citroën merece destaque. A montadora tem um hotsite www.comoreduzir.com.br com dicas de como “reduzir as agressões ao meio ambiente”, como jantar uma vez por semana à luz de velas e transformar a TV antiga em um aquário vintage.
A Toyota se promove como a empresa “mais verde do mundo”, e a Ford anuncia que é de seu interesse “fornecer informações precisas e atualizadas para os interessados nas questões ambientais da companhia”. Outro caso curioso é o da Volkswagen: seu website avisa que o modelo Polo Bluemotion pode consumir até 15% menos combustível e emitir até 15% menos gás carbônico. Ora, se é isso mesmo, por que a montadora não divulga os dados com exatidão?
O Idec enviou o resultado da pesquisa às 14 montadoras, mas apenas cinco se manifestaram: Fiat, JAC, Kia, Renault e Volkswagen.
A Fiat, a Renault e a Volkswagen alegaram que os dados de emissões de seus veículos estão disponíveis no site da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) www.anfavea.com.br/emissoes.html e que, desde abril deste ano, os modelos participantes do Programa Brasileiro de Etiquetagem Veicular (PBEV) já ostentam o selo.
A SNS Importadora Ltda., representante da JAC no Brasil, tentou se eximir de responsabilidade. A importadora informou que o site brasileiro tem “informações claras e precisas” e destacou que não pode ser confundida com a montadora chinesa.
A Kia argumentou que aderiu ao PBEV e que seu site está “em processo de reformulação”, de modo que os dados ambientais estão com “o departamento responsável para consideração e apreciação”.
Escolher um carro econômico e que emite menos gases é essencial para o meio ambiente e para o seu bolso. Só que as montadoras não revelam essas informações aos consumidores brasileiros
Um casal e uma moça estão à mesa de um bistrô. A moça será apresentada a um pretendente, que está prestes a chegar. O casal descreve o sujeito: executivo bem-sucedido, bom jogador de tênis e proprietário de um sedã. À medida que essas características são enumeradas, ela vislumbra uma pessoa que não lhe agrada. Até que o moço chega, a bordo de um belo carro. É aí que tudo muda: o tal sedã é um “carrão”, e o rapaz, um despojado galã caucasiano. A moça enfim se anima. A cena é um comercial de uma montadora francesa. Após essa míni-história, vem o slogan: “Renault Fluence. Ter um faz toda a diferença”.
Pois é. O slogan é sugestivo e escancarado. É esse o conceito por trás da maior parte dos comerciais de automóveis: quem compra um carro adquire também um estilo de vida – sucesso, beleza, e outros adjetivos em voga nas sociedades de consumo. O que as montadoras não revelam é um preocupante outro lado da história: os “dados ambientais” de seus produtos, como eficiência energética (quantos quilômetros é possível rodar com 1 litro de combustível), e os níveis de emissão de gases poluentes (como monóxido de carbono e dióxido de enxofre) e os de efeito estufa (o principal deles é o gás carbônico). Essa é a alarmante constatação de uma pesquisa do Idec com as 14 maiores montadoras em operação no Brasil (veja quais são elas no quadro Como foi feita a pesquisa). E aí retomamos o slogan “Ter um faz toda a diferença”. Em termos ambientais, certamente faz. Ao consumidor brasileiro, no entanto, é negado o direito de saber se essa diferença é acachapante ou não tão drástica assim.
Ao não divulgarem as “informações ambientais” de seus veículos, as montadoras batem de frente com o artigo 6o do Código de Defesa do Consumidor (CDC), segundo o qual a “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem” é direito básico. Com essa omissão, as montadoras acabam por promover uma espécie de “nivelamento por baixo”. Sim, pois a partir do momento em que os conceitos de sustentabilidade não são considerados por quem vende, dificilmente serão considerados por quem compra. Uma enquete do Idec com 511 associados mostra que 68% deles não sabiam que poderiam escolher um carro levando em conta o consumo de combustível, pois essa informação nunca lhes foi passada. “Não se agrega valor ao melhor produto. Ficam todos – produtos bons e ruins – no mesmo patamar”, opina Paulo Saldiva, médico do Laboratório de Poluição Atmosférica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Um dos argumentos da indústria automobilística é que os carros de hoje poluem muito menos que os de antigamente, pois a legislação atual é mais rigorosa, sem falar da evolução tecnológica. Isso é verdade. Assim, segundo esse raciocínio, o consumidor poderia ficar tranquilo, pois todos os modelos disponíveis seriam ambientalmente menos nefastos que os do passado. Quer dizer, divulgar as informações ambientais não faria grande diferença. Mas façamos algumas contas simples. Imaginemos que todos os modelos dos 2,7 milhões de automóveis vendidos no ano passado tivessem sido os de menor emissão de gás carbônico por quilômetro rodado (cerca de 64 gramas, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama). Consideremos uma média mensal de 500 quilômetros rodados por mês (ou 6 mil por ano). Chegamos à conclusão de que essa nova frota hipotética emitiria, em um ano, 1,037 milhão de toneladas de gás carbônico.
Certo. Agora, façamos o raciocínio inverso: a mesma conta, mas com o modelo que mais expele gás carbônico por quilômetro (256 gramas, também segundo o Ibama). Se essa frota hipotética fosse composta exclusivamente por esses veículos, em um ano seriam emitidas 4,147 milhões de toneladas do gás de efeito estufa. Uma diferença gritante (3,110 milhões de toneladas). Claro, sabemos que nenhuma das situações é real, pois jamais todos os carros vendidos seriam de apenas um modelo, mas essa linha de raciocínio nos dá a dimensão do que ocorre com a diferença de parcos gramas multiplicada por milhões de quilômetros e de veículos. Faz toda a diferença.
O objetivo da pesquisa, realizada em março, foi verificar se as montadoras informam qual a eficiência energética e os níveis de emissão de gases poluentes e de efeito estufa de seus veículos. No entanto, não foi verificada a veracidade e a coerência das informações fornecidas.
As informações foram procuradas no site das empresas, no Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC) e nas concessionárias. Em relação aos sites, foram examinadas as páginas dirigidas ao mercado brasileiro e também as páginas globais ou direcionadas ao mercado do país de origem da montadora. O intuito foi identificar se as empresas agem de maneira diferente no Brasil.
Foram consideradas as 14 montadoras que mais venderam automóveis no Brasil em 2011, segundo a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave): Chery, Citroën, Fiat, Ford, GM, Honda, Hyundai, JAC, Kia, Nissan, Peugeot, Renault, Toyota e Volkswagen. Escolhemos um modelo de cada marca, aleatoriamente, já que o intuito não era comparar modelos, mas verificar a disponibilidade das informações. Só nos sites foram avaliados todos os modelos fabricados.
A pesquisa faz parte de um projeto financiado pela Climate Works Foundation, que visa contribuir para a construção de padrões mais sustentáveis de produção e consumo no Brasil.
Me engana que eu gosto
Os pesquisadores do Idec também buscaram os dados ambientais dos carros no Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC). O descaso de um atendente da Renault, que recomendou busca no Google, resume a postura das empresas. A resposta mais comum foi que o consumo de combustível depende de muitas variáveis (como o jeito de dirigir, se o trecho é urbano ou rodoviário, se o ar-condicionado está ligado ou desligado, quantas pessoas estão no veículo etc.) e que, por isso, é impossível fornecer os dados de eficiência energética. As exceções foram as chinesas JAC e Chery, e a nipônica Honda.
Quanto aos dados de emissão de gases, os funcionários de 13 das 14 montadoras não souberam passá-los. A exceção foi a JAC, cujo atendente enviou, por email, um link de acesso à Nota Verde (ranking do Ibama com os níveis de emissão de todos os modelos).
Para o Idec, não há desculpa. A metodologia de medição de consumo de combustível e de níveis de emissão de gases existe. Tanto é, que para um carro ser homologado, esse tipo de informação é coletado pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb). “A Cetesb é uma empresa pública. Portanto, esses dados também deveriam ser públicos”, contesta Saldiva.
Outra resposta padrão dos atendentes dos SACs foi que as informações procuradas só eram fornecidas nas concessionárias. E lá foram nossos pesquisadores. Novamente, em vão. Os vendedores deram respostas informais sobre o consumo de combustível, sem nenhum embasamento. Foram comuns os “de acordo com meus clientes”, “mais ou menos” e “isso varia muito”.
Quanto aos níveis de emissão de gases, necas de pitibiriba. Em nenhuma concessionária os vendedores souberam (ou quiseram) passar as informações. Aliás, a sensação era a de que nossos pesquisadores estavam falando outra língua. Destaques ao “isso não é importante”, proferido por um consultor da Fiat, e “para que vocês querem saber isso?”, cujo autor é um representante da Kia. Surpresa mesmo foi a reação de um vendedor da Hyundai: “nossos carros são a gasolina, poluem mesmo, não tem jeito”.
Quem vai comprar um carro pode pesquisar no site do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) http://goo.gl/ojCdY o consumo de combustível de alguns automóveis que fazem parte do Programa Brasileiro de Etiquetagem Veicular (PBEV). Os modelos são divididos em categorias, e, dentro delas, as notas variam de A (mais econômico) a E (menos econômico). É algo semelhante ao que é feito com alguns eletrodomésticos, como geladeiras. A diferença é que, para carros, a adesão ao programa ainda é voluntária. O Idec está preparando uma pesquisa sobre a disponibilidade dessa etiqueta nos automóveis, que será publicada no segundo semestre.
Os níveis de emissão de poluentes podem ser consultados no site do Ibama http://goo.gl/Tjvx. É a chamada Nota Verde, cujas avaliações variam de uma (modelo mais poluidor) a cinco (modelo menos poluidor) estrelas.