Onde está a fruta?
A aprovação de normas mais duras para a rotulagem de alimentos que fazem alusão a frutas mostra-se ainda mais urgente diante da postura das empresas de se negarem a assumir compromissos voluntariamente. No questionário enviado aos fabricantes, além de perguntar se o produto continha fruta e qual sua concentração, o Idec indagou se, tendo em vista sua responsabilidade social empresarial, eles se comprometeriam a informar a porcentagem de polpa em seus produtos de forma tão ostensiva quanto os apelos na embalagem. E caso o produto não contivesse polpa, se além de informar tal fato de forma clara e evidente, as empresas se comprometeriam a não fazer alusão (por meio de imagens ou frases) à presença de fruta.
Três empresas não responderam ao questionamento: Nestlé (sorvete Napolitano e refresco em pó La Frutta), Empresa Brasileira de Bebidas e Alimentos S/A - Ebba (Maguary) e General Brands (Top Fruit e Camp), que não se manifestou sobre a avaliação do refresco Camp.
Apenas duas empresas assumiram compromissos. A Sorveteria Kidelícia de Sabor (sorvete Napolitano Kidelícia) disse que vai passar a informar a porcentagem de fruta presente em seu produto – que é de 1% –, e a DuCocco, dona da marca de gelatina Frutop – que não contém fruta –, se comprometeu a deixar de utilizar a imagem de fruta em seus produtos num prazo máximo de seis meses. No entanto, ela não se pronunciou a respeito do compromisso de informar de maneira clara e ostensiva que o produto não possui fruta. O Grupo Pão de Açúcar, dono da marca Taeq, se comprometeu apenas a analisar os pontos abordados pelo Idec para a reformulação do rótulo.
Os demais fabricantes fecharam os olhos para a proposta de reformulação das embalagens a fim de salvaguardar o direito dos consumidores à informação, justificando que seguem o disposto na legislação e que não têm obrigação de adotar as mudanças sugeridas. Nas respostas das empresas fica bem claro que elas só informam o que são obrigadas por lei, como mostra este trecho da General Brands a respeito do néctar Top Fruit: “(...) não apresentamos tal informação [percentual de polpa de fruta] por não ser obrigatório. Cabe ao consumidor entender que nossos produtos são elaborados atendendo rigorosamente a legislação pertinente”. Esse é só um exemplo, já que quase todos os fabricantes deram respostas semelhantes.
Luciana Pellegrino, da Abre, reforça o coro de que a indústria deve seguir apenas o que está disposto nas normas. “A legislação de rotulagem já é completa. Mas se o poder público e os órgãos de defesa do consumidor estão percebendo problemas, é preciso que isso seja discutido e que eventuais mudanças sejam formalizadas”, afirma. “Isso [os pontos problemáticos] precisa ficar claro para a indústria em forma de legislação, até para uniformizar a informação dada ao consumidor. A indústria não pode criar suas próprias regras”, defende. Além da alusão a frutas, alguns alimentos pesquisados também se valem de outros apelos para sugerir que o produto é saudável. Na embalagem do sorvete Balance Napolitano Kibon, por exemplo, há uma inscrição que diz que o produto tem “47% menos gordura”. Mas menos gordura que o quê? O néctar Maguary dedica uma face inteira da caixinha a “dicas” que associam o consumo do produto a hábitos saudáveis. E todas as marcas de refresco em pó usam termos como “rico em vitaminas”. O refresco Tang Pró, por exemplo, usa expressões como “mix de vitaminas”, “para que as crianças cresçam saudáveis” e afirma que o produto “contribui para o desenvolvimento mental”.
Pela legislação, as empresas podem usar termos como “rico em vitaminas” ou “fonte de ferro” quando adicionam esses compostos ao produto. Mas isso não significa que eles sejam necessariamente saudáveis. “A vitamina adicionada não corresponde nem a um décimo do que a que tem nas frutas”, ressalta Carlos Monteiro. Além disso, ele afirma que estudos têm mostrado que o consumo de suplementos vitamínicos não apresenta os mesmos benefícios que o consumo de vitaminas in natura, pois nesses suplementos elas não estão associadas às outras propriedades das frutas. Mas o marketing das empresas quer fazer os consumidores acreditarem que sim.
SAIBA MAIS
Matéria “Menos saudáveis do que parecem”, publicada na edição nº 140 da Revista do Idec Pesquisa do Idec mostra que apesar de usarem e abusarem de imagens e de outras referências a frutas nas embalagens, os alimentos industrializados não contêm quantidades significativas desse ingrediente. Mas isso não fica claro para o consumidor.
Não é preciso ir ao setor de hortifrúti do supermercado para ver frutas. Elas estão na seção de iogurtes, na de sucos de caixinha e refrescos, entre outras com produtos industrializados, estampando as embalagens. Mas quando se trata do conteúdo, não espere encontrá-las de fato nesses alimentos. Um levantamento realizado pelo Idec com 18 produtos, entre iogurtes, pós para refresco, néctares, gelatinas, sorvetes e isotônicos (veja quais na tabela às páginas 18 e 19), mostra que oito deles não têm nem vestígio de frutas. Os demais apresentam quantidades bem pequenas – na melhor das hipóteses, não passa de 10% do conteúdo, mas há vários deles em que gira em torno de 1%. Apesar disso, em boa parte dos produtos as referências à fruta têm grande destaque: além de imagens reais ou estilizadas, as frases são em letra maior que a das demais informações do rótulo e ocupam grande parte da embalagem, enquanto a lista de ingredientes fica quase escondida. E o pior é que as empresas não informam claramente no rótulo que o alimento não contém fruta e, quando contém, qual o seu percentual em relação ao restante dos ingredientes. “As figuras e frases que fazem alusão à fruta são o grande chamariz do produto, mas não correspondem à sua real composição. E como o consumidor não é adequadamente informado disso, pode ser induzido a erro”, aponta Mariana Ferraz, advogada do Idec responsável pela pesquisa.
MARKETING FRUTÍFERO
Basta uma breve observação do rótulo dos alimentos analisados para perceber que a alusão à fruta é o carro-chefe para promovêlos. Em alguns casos, a imagem ou frase que faz referência à presença de fruta ocupa quase toda a embalagem. No néctar da Maguary, por exemplo, a foto do maracujá ocupa 18 cm dos 19,8 cm da caixinha; e o iogurte Kissy, da Batavo, tem mais da metade (12 cm) dos 20 cm de altura da embalagem ocupados pela imagem de morangos suculentos. Além disso, a maioria dos produtos também destaca o nome da fruta com letras grandes e recursos como o outline (contorno das letras).
Para o médico Carlos Augusto Monteiro, líder do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), a intenção dos fabricantes com tal associação é fazer com que seus produtos pareçam mais saudáveis do que realmente são. “As empresas estão ‘pegando carona’ na boa imagem das frutas para vender seus produtos; relacioná-los com elas dá a impressão de que o alimento é fresco, nutritivo, mas na realidade muitos alimentos industrializados são o oposto disso”, afirma. Luciana Pellegrino, presidente da Associação Brasileira de Embalagem (Abre), concorda que a alusão à fruta no rótulo confere uma conotação mais saudável ao produto, mas pondera que o recurso também tem por objetivo facilitar a identificação do sabor do alimento na hora da compra. “Com o uso de cores e da imagem da fruta na embalagem fica mais fácil para o consumidor saber se um suco é de pêssego ou de laranja”, justifica.
Entre os alimentos pesquisados, apenas três não usam imagens de fruta (fresca ou estilizada): os isotônicos Gatorade e Marathon, e a gelatina Dr. Oetker. Mas eles destacam o nome da fruta que dá sabor ao produto, além de usar cores a ela associadas. No caso do Gatorade, por exemplo, a letra que designa a palavra “tangerina” ocupa 5 mm de altura dos 43 mm do rótulo. Não é tão grande, mas é a segunda maior letra do rótulo, perdendo apenas para a usada no nome da marca. Além disso, o termo está em destaque na face principal do rótulo em letras maiúsculas, em negrito e com contorno, sobre fundo de cor laranja.
O Gatorade é um dos oito produtos que não contém fruta em sua composição, como se nota ao olhar a lista de ingredientes. No entanto, não há na embalagem qualquer frase que alerte para isso. O mesmo ocorre no caso do isotônico Marathon, da gelatina Dr. Oetker e do sorvete Kibon. Os demais produtos que não contêm fruta (isotônico Taeq; gelatinas Frutop e Royal; e o sorvete Napolitano da Nestlé) trazem algum tipo de alerta, mas, em geral, a frase está disposta na parte lateral da embalagem, na vertical e em letras miúdas. “A alusão à fruta sempre tem muito mais destaque na embalagem que a advertência de que o alimento não contém esse ingrediente”, critica Mariana Ferraz.
Sabe-se que os outros dez produtos analisados contêm fruta porque a polpa está relacionada entre os ingredientes, mas apenas os refrescos em pó Camp, La Frutta e Tang informam qual o seu percentual: 1%, nos três. Ou seja, quase nada, embora a imagem estampada no rótulo faça parecer que se trata do mais puro suco. Os demais alimentos não indicam no rótulo quanto têm de fruta. Além de esconder essa informação dos consumidores, duas empresas também se recusaram a fornecer esse dado ao Idec: Batavo, fabricante do iogurte Kissy, e Danone, que produz o iogurte Danoninho (esta alegou que se trata de informação confidencial).
De acordo com Carlos Monteiro, a quantidade de polpa nesses produtos é muito pequena para que eles possam oferecer algum dos benefícios intrínsecos às frutas. “A vantagem das frutas é que elas concentram grande quantidade de nutrientes, vitaminas e minerais, e fornecem pouca energia [calorias]. Já os alimentos que fazem alusão a elas não são nada nutritivos, além de terem muito açúcar”, compara.
Analisamos o rótulo de alimentos industrializados com imagens e frases que sugerem a presença de frutas e verificamos se a legislação referente ao tema está sendo cumprida. Foram avaliados 18 produtos, de 15 marcas, entre iogurtes, refrescos em pó, néctares, gelatinas, sorvetes e isotônicos (veja quais são na tabela às páginas 18 e 19).
O levantamento levou em conta se os apelos relacionados a frutas nas embalagens condizem com o conteúdo. Para tanto, comparamos o tamanho das letras usadas para a referência a frutas com o das demais informações, e analisamos se o rótulo informa claramente se o produto contém ou não polpa e qual o seu percentual.
Além disso, os fabricantes foram questionados sobre a presença de frutas no produto (quando isso não estava claro no rótulo) e se assumiriam compromissos para melhorar a comunicação com o consumidor nas embalagens — seja informando o percentual de fruta, seja deixando claro que o alimento não a contém.
Não é à toa que apenas os refrescos em pó indicam o percentual de polpa em seu rótulo. É porque só eles são obrigados pela legislação a isso. A Portaria no 544/98 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) estabelece que essa categoria de alimento deve conter, no mínimo, 1% de fruta. Essa regra, no entanto, é exceção. As demais normas que tratam da rotulagem de alimentos, embora preconizem o direito à informação do consumidor quanto às características e à composição do alimento, não obrigam os fabricantes a informar expressamente se o produto que faz alusão a frutas contém esse ingrediente e nem a sua quantidade. “Por conta dessa lacuna normativa, as empresas acabam descumprindo o dever de informar”, constata a advogada do Idec.
No caso de bebidas à base de frutas, o Decreto no 6.871/09 estabelece concentrações mínimas de polpa, que estão diretamente relacionadas à classificação do produto. Assim, para ser denominada “suco”, a bebida deve conter 100% de fruta (com exceção dos sabores manga e mamão, cujo mínimo é 60% de fruta). Recebem o nome “néctar” as bebidas que concentram de 30% a 40% de fruta; e as que contêm de 20% a 30% são chamadas de “refresco”. A resolução, porém, não prevê que tais percentuais sejam informados no rótulo do produto. “Sabemos que o consumidor, em geral, não tem conhecimento das regras da legislação e não tem como diferenciar intuitivamente o conteúdo de fruta num néctar ou num refresco”, pondera Mariana.
As empresas se apoiam nessas falhas da regulação. Exemplo disso é que em resposta ao questionário enviado pelo Idec, muitos fabricantes argumentaram que pelo fato de na embalagem estar escrito que o produto é “sabor de” já indica que ele não contém a fruta cujo sabor é mencionado. Mas a verdade é que os termos técnicos não são assim tão óbvios, e pelo Código de Defesa do Consumidor, a informação deve ser clara e precisa, ou seja, não dar margem a dúvidas. Para Monteiro, a regulação é fraca e benevolente com as empresas. “Se 1% das pessoas forem induzidas a erro, isso já é suficiente para impedir que determinado recurso seja utilizado. Deveria ser mais claro para o consumidor que não há fruta ou que a quantidade é muito pequena”, opina o médico.
O Idec enviou o resultado da pesquisa à Anvisa, ao Mapa e ao Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), órgão do Ministério da Justiça, e pediu o aperfeiçoamento da regulação do tema, sugerindo que se torne obrigatório informar no rótulo a porcentagem de fruta presente no produto de forma clara e ostensiva, e também disponibilizar tal dado em outros canais de interação entre a empresa e o consumidor, como site e Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC). O Instituto também quer que seja proibido fazer alusão à presença de fruta de forma desproporcional ao real conteúdo do alimento, e que os produtos que fazem referência a frutas, mas não as contêm, informem isso mais claramente.