O futuro do busão
Entenda como funciona o processo de licitação de ônibus e como ele pode afetar o serviço prestado aos usuários.
A licitação de ônibus decisiva para a mobilidade e a qualidade de vida dos cidadãos em áreas urbanas. Entenda os principais pontos discutidos nesse processo e como ele pode afetar o serviço prestado aos usuários
Está na lei: o transporte público urbano é um direito do cidadão, e a competência de oferecê-lo é das administrações municipais. No entanto, as prefeituras não são obrigadas a fornecer o serviço de forma direta; elas podem conceder sua prestação à iniciativa privada – e é o que a maioria faz no Brasil. Nesses casos, a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei no 12.587/2012) obriga que a prefeitura faça uma licitação. Trata-se de um processo conduzido pelo poder público para definir os critérios para a prestação do serviço e por meio do qual as empresas interessadas concorrem para executá-lo [leia na página 28 como funciona uma licitação de ônibus].
Os ônibus devem ter ar-condicionado? Qual será a idade máxima permitida aos veículos da frota? Qual é o intervalo máximo de espera por um ônibus de determinada linha? Esses são apenas alguns dos critérios que podem ser incluídos no edital de licitação – ou deixados de fora –, impactando diretamente o dia a dia de quem usa o transporte público.
É nesse processo que a rede de linhas é organizada e são estabelecidas características e metas de qualidade para o transporte coletivo da cidade – além das penalidades aplicáveis em caso de descumprimento das metas. "Por isso, é fundamental que os usuários conheçam a importância do processo licitatório e acompanhem as discussões", destaca Rafael Calabria, pesquisador do Idec em mobilidade urbana.
Uma vez licitado, o serviço de transporte continua a ter caráter público, mas quem o opera é uma ou várias empresas vencedoras da licitação. O município passa a ser apenas regulador e fiscalizador. Levantamento feito pelo Idec em abril mostra que quase todas as 27 capitais brasileiras têm o serviço de transporte municipal licitado ou, ao menos, com processo em andamento ou em discussão. As exceções são Boa Vista (RR), Vitória (ES) e Belém (PA). Em São Paulo (SP), principal capital do país, uma nova licitação de ônibus deve ser aberta ainda neste semestre. Porém, não basta licitar: os critérios previstos e a forma como o processo é conduzido fazem toda a diferença na qualidade do transporte. Veja, a seguir, os principais pontos que merecem ser debatidos.
Os ônibus devem ter ar-condicionado? Qual será a idade máxima permitida aos veículos da frota? Qual é o intervalo máximo de espera por um ônibus de determinada linha? Esses são apenas alguns dos critérios que podem ser incluídos no edital de licitação – ou deixados de fora –, impactando diretamente o dia a dia de quem usa o transporte público.
É nesse processo que a rede de linhas é organizada e são estabelecidas características e metas de qualidade para o transporte coletivo da cidade – além das penalidades aplicáveis em caso de descumprimento das metas. "Por isso, é fundamental que os usuários conheçam a importância do processo licitatório e acompanhem as discussões", destaca Rafael Calabria, pesquisador do Idec em mobilidade urbana.
Uma vez licitado, o serviço de transporte continua a ter caráter público, mas quem o opera é uma ou várias empresas vencedoras da licitação. O município passa a ser apenas regulador e fiscalizador. Levantamento feito pelo Idec em abril mostra que quase todas as 27 capitais brasileiras têm o serviço de transporte municipal licitado ou, ao menos, com processo em andamento ou em discussão. As exceções são Boa Vista (RR), Vitória (ES) e Belém (PA). Em São Paulo (SP), principal capital do país, uma nova licitação de ônibus deve ser aberta ainda neste semestre. Porém, não basta licitar: os critérios previstos e a forma como o processo é conduzido fazem toda a diferença na qualidade do transporte. Veja, a seguir, os principais pontos que merecem ser debatidos.
MODELO DE REMUNERAÇÃO E SUPERLOTAÇÃO
É no edital de licitação que se define o cálculo do pagamento às empresas concessionárias, critério crucial, pois influencia diretamente o preço da passagem. No atual modelo da cidade de São Paulo, por exemplo, as empresas são pagas com base no número de passageiros transportados, metodologia que divide a opinião de especialistas.
Para Gabriel Feriancic, professor do Departamento de Engenharia de Transportes da Universidade de São Paulo (USP), o modelo de remuneração por passageiro vingou porque, para não perder receita, a empresa empenha-se para atender à demanda de passageiros. No entanto, ele mesmo pondera: "o risco da remuneração por passageiro é ter ônibus muito lotados". Essa é a crítica feita pelo engenheiro Lúcio Gregori, ex- -secretário municipal de transportes na gestão Luiza Erundina na capital paulista (1989-1992). "O custo por passageiro acaba estimulando a redução do número de ônibus nas ruas. Assim, a empresa enche mais os veículos, tem mais receita e gasta menos. É uma forma indireta de estimular a superlotação. Isso resulta em lucros absurdos".
Para Gregori, o cálculo deve ter como base o chamado "custo operacional", o que na prática equivale a "fretar" os coletivos das empresas prestadoras por um valor fixo. Calcula-se o preço de operação de cada linha com combustível, pneu, motorista etc., independentemente da quantidade de passageiros. Entre as vantagens desse método, segundo o engenheiro, está o fato de que as empresas não têm interesse no valor ou no reajuste da tarifa, pois o frete já está pago pela prefeitura. Consequentemente, o município tem muito mais liberdade para determinar o valor da passagem e implementar políticas sociais de transporte. Mas Feriancic alerta que, nesse modelo, aumenta a responsabilidade do poder público por desenhar as linhas e a oferta corretamente, sob o risco de as empresas receberem por itinerários ociosos.
COMO FUNCIONA UMA LICITAÇÃO DE ÔNIBUS?
Uma licitação começa com uma fase interna: o poder público define que tipo de serviço quer contratar, reserva o recurso orçamentário e elabora o edital – convocação de eventuais empresas interessadas e capacitadas. O edital estabelece as exigências de qualidade do serviço a ser prestado e as condições para a disputa entre os concorrentes.
Na fase externa, o edital é aberto para discussão com a sociedade em audiência pública. Então, é publicado, e as propostas das empresas são recebidas e julgadas. Por fim, as empresas vencedoras são divulgadas.
"Em São Paulo, a escolha é tradicionalmente feita considerando-se o maior pagamento ao município ou a oferta de menor tarifa", explica Gabriel Feriancic, professor da USP
EFICIÊNCIA DO SISTEMA
Em São Paulo, além do modelo de remuneração, outro grande desafio para a licitação é a melhoria da eficiência do sistema, por meio da organização das linhas. "Há regiões da cidade com número de ônibus abaixo do desejado, e momentos em que há vários ônibus congestionando um corredor exclusivo, com clara sobreposição de linhas", avalia Feriancic.
O professor argumenta que muitas linhas fazem trajetos iguais ou muito parecidos e acabam competindo pelo espaço viário. A racionalização defendida por alguns especialistas implica cortar linhas ou, ao menos, reduzir itinerários, liberando espaço para que os ônibus andem mais rápido. Por outro lado, o usuário teria de fazer mais baldeações, por isso, o tempo de viagem tende a ficar igual ou piorar.
Gregori acrescenta que, na atual lógica de remuneração por passageiro, quanto mais baldeações, mais a prefeitura paga às empresas. Isto é, mesmo que o passageiro faça integração entre ônibus com bilhete único, sem gastar mais, os operadores são remunerados cada vez que a catraca gira.
TRANSPARÊNCIA, FISCALIZAÇÃO E AVALIAÇÃO
Um consenso entre os especialistas ouvidos pela reportagem é que a fiscalização e a transparência dos processos de licitação são fracas e precisam melhorar. "Ninguém conhece os custos efetivos da operação do transporte público coletivo, nem mesmo os órgãos públicos gestores. Precisamos de transparência nos custos, na fiscalização e no sistema de avaliação dos operadores", aponta Hellem Miranda, consultora em mobilidade urbana do Idec.
Em São Paulo, a avaliação é feita pelo chamado IQT (Índice de Qualidade do Transporte), uma complexa pontuação que leva em conta inúmeros critérios, como reclamações, acidentes e pontualidade. "[O IQT] é muito burocrático. Os dados sobre as melhores e piores empresas deveriam ser divulgados, tornando-se um instrumento que a sociedade pudesse usar para pressionar os prestadores de serviço", defende Calabria.
Para piorar, uma eventual má avaliação nesse índice não tem consequências práticas. Caso uma empresa apresente resultados insatisfatórios por dois meses consecutivos, ela deve apenas apresentar um relatório apontando as falhas e possíveis soluções, sem receber qualquer sanção.
Para João Alencar Oliveira, doutor em engenharia de transportes e atualmente no Ministério dos Transportes, o problema da fiscalização só será resolvido com o fortalecimento do poder regulador. "Precisamos de mais servidores treinados e dotados de autonomia para fiscalizar", opina.
OUTROS FATORES IMPORTANTES
Apesar da reconhecida importância da licitação, diversos fatores externos são tão ou mais importantes para que o transporte público urbano funcione bem. O professor Gabriel Feriancic, da USP, explica que a qualidade também está vinculada à infraestrutura disponível para a circulação dos ônibus. "Se fizer licitação e não tiver corredor de ônibus, não resolve", diz.
Um exemplo que ilustra bem essa complexidade é o da cidade de Curitiba (PR), frequentemente apontada como referência em sistema de transporte. Feriancic ressalta que isso foi possível graças ao planejamento urbano da cidade. "O principal de Curitiba é a disponibilidade de corredores de ônibus, um plano diretor que induziu a cidade a crescer no entorno desses corredores, com estações de embarque onde o passageiro passa o bilhete antes de entrar no ônibus", completa.