Uma luta incansável
Idec continua batalhando pelos direitos dos consumidores que têm planos de saúde coletivos. Veja o que já fizemos e o que estamos fazendo nessa área.
A administradora de empresas Poliana Baptista, do Rio de Janeiro (RJ), vive em constante alerta com o plano de saúde da filha Laura, de 6 anos, que tem Transtorno do Espectro Autista, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDHA), apraxia da fala e uma doença metabólica rara e grave no ciclo da ureia, que pode causar uma série de alterações. “Ela está bem e, do nada, a amônia sobe e ela começa a vomitar, vem dores abdominais, sonolência, rebaixamento de consciência, convulsão, coma e pode chegar até à morte”, detalha. Por conta desse quadro, Batista parou de trabalhar para cuidar da filha, que já foi internada onze vezes e passou por uma cirurgia.
Em 2021, quando o plano de saúde (um coletivo por adesão) foi contratado, a filha era saudável. Só depois é que os sintomas apareceram e vieram todos os diagnósticos. Junto com eles, os problemas com a operadora. “Tudo o que a gente tem que solicitar é com muita briga, tem que abrir reclamação na Ouvidoria, eles dão um prazo, passa o prazo, não cumprem, estendem o prazo. A gente fica numa luta constante, ligando para a operadora, perdendo horas e horas ao telefone”, desabafa.
O pior momento para a família de Laura aconteceu em junho, quando foi informada, por e-mail, que o plano seria cancelado. Dezenas de clientes sofreram o mesmo baque, com rompimentos unilaterais. Os casos repercutiram na mídia e, depois de dois dias de muito estresse, Baptista recebeu um novo correio eletrônico comunicando que o plano seria mantido. “A gente fica preocupada, apreensiva, porque não sabe se no mês seguinte o plano vai estar ativo, se a gente vai conseguir manter as terapias. E isso tudo gera ansiedade, gera pânico. Pago o plano rigorosamente todos os meses, mas não tenho nenhuma segurança de que vou continuar usufruindo”, declara.
Situação parecida enfrenta a fisioterapeuta Fabiane Simão, também do Rio de Janeiro (RJ). Seu filho Daniel, de 9 anos, nasceu prematuro extremo, com 5 meses. Ele tem paralisia cerebral, deficiência intelectual e autismo. O menino precisa de fisioterapia motora e respiratória, fonoaudiologia, terapia ocupacional e acompanhamento com psicopedagoga e psicóloga. Já a mãe necessita de muita paciência para lidar com o plano de saúde coletivo por adesão. “Ninguém quer ficar doente. Ninguém quer ter um filho com algum tipo de deficiência. Como mãe, como consumidora, o meu principal desejo é que os nossos direitos sejam respeitados”, afirma.
Diferenças entre os planos coletivos
De acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), existem atualmente no Brasil, 667 operadoras de assistência médica, que oferecem planos variados. No universo dos coletivos, é importante destacar que há basicamente dois tipos: os empresarias e os por adesão. Os primeiros são aqueles em que uma empresa empregadora contrata o serviço de uma operadora, e o funcionário é o terceiro beneficiário desse contrato. Nessa cesta entram também os planos feitos pelos microempreendedores individuais (MEIs). Já os planos coletivos por adesão são os que o consumidor consegue contratar quando é vinculado a um grupo coletivo, como uma associação, um sindicato ou algum órgão de classe, por exemplo. Tanto nos planos empresariais quanto nos planos por adesão, a inclusão de familiares nos planos depende de autorização da operadora.
Em 2019, Simão recorreu à Justiça e conseguiu sentença favorável para que o convênio custeasse as terapias do filho. Mesmo assim, em setembro de 2023, recebeu um comunicado indicando que o plano seria cancelado em outubro. Iniciou uma nova batalha e, após dar duas entrevistas para grandes veículos de comunicação, o serviço foi retomado por meio de uma migração do plano. “Hoje eu tenho plano. Mas será que amanhã terei? Será que quando meu filho fizer aniversário e vier o reajuste, o aumento vai ser justo?”, questiona.
Casos como os de Simão e Baptista determinaram a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em junho. A iniciativa tem como objetivo apurar irregularidades na prestação médica para pessoas com deficiência. No fim de setembro, porém, uma liminar do Tribunal de Justiça fluminense suspendeu os trabalhos da CPI até que seja julgado o mérito de um mandado de segurança impetrado pela Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge). Mas a questão ganhou holofotes, e a CPI ouviu dezenas de pessoas. Entre elas, o coordenador do Programa de Saúde do Idec, Lucas Andrietta, que destacou que o que acontece no Rio de Janeiro não é uma situação isolada e não se restringe a um perfil específico. “Qualquer consumidor de plano de saúde é vulnerável nessa relação de consumo. Ninguém sabe quando vai ficar doente, nem qual doença será diagnosticada, nem quais serviços, quais consultas, quais exames, quais terapias vai precisar”, pondera. E acrescenta: “Essa incerteza é a própria razão de ser desse mercado. Gerenciar esses riscos é atribuição das operadoras, não de consumidores e pacientes”.
Atenção que não vem de hoje
O Idec tem um histórico de trabalho intenso voltado para a relação dos consumidores com a assistência privada de saúde. Foi atuante na criação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) – que deve ser respeitado pelos planos de saúde - e também na elaboração da Lei de Planos de Saúde (Lei nº 9.656/1998). Apesar dos inquestionáveis avanços, Marina Paullelli, advogada do Programa de Saúde do Idec, avalia que, infelizmente, questões cruciais ficaram de fora dessa legislação, porque a lei não confere aos planos coletivos o mesmo tipo de proteção garantida aos planos individuais.
O Procon-SP vai na mesma linha. O órgão entende que a ANS pode e deve aprimorar a regulação dos planos coletivos. “Precisamos de uma atuação e fiscalização mais efetiva para coibir abusos e distorções, especialmente nos planos coletivos. Em que pese as garantias do CDC, as normas reguladoras hoje existentes não protegem o consumidor contra cancelamentos imotivados, reajustes abusivos etc.”, avalia Maria Feitosa, especialista em defesa do consumidor do Procon-SP. Questionada pelo Idec, a ANS informou que regula tanto os planos individuais/familiares quanto os coletivos (empresariais e por adesão) e, por sua vez, ambos os reajustes. Contudo, pontua que algumas regras são específicas. Em relação às coberturas obrigatórias e prazos máximos de atendimento, por exemplo, o órgão diz que todos os tipos de planos possuem as mesmas obrigações, embora as regras de reajuste variem conforme o tipo de contratação e o tamanho da carteira.
Um setor de grandes dimensões
No Brasil, a maioria dos planos são coletivos. De acordo com relatório da ANS, com dados de agosto de 2024, os planos de saúde privados contam com 51.407.752 beneficiários. Isso equivale a mais de 25% dos brasileiros. Destes, 36.667.192 estão em planos coletivos empresariais, e 5.904.499, em planos coletivos por adesão, representando cerca de 80% do número total de consumidores de planos. E o chamado duplo padrão regulatório, apontado pelo Idec, parece explicar esse cenário. “A regulação protetiva de planos individuais causou um desinteresse das operadoras em comercializar esse tipo de produto. É por isso que a quantidade de planos coletivos é muito maior”, explica Paullelli, do Idec.
Se o número de consumidores é imenso, também é grande o descontentamento em relação aos serviços prestados. Segundo o Procon-SP, o maior do país, de janeiro a agosto deste ano, foram quase 10 mil reclamações e atendimentos (9.722) relacionados a planos de saúde. A ANS enxerga o alto número de reclamações em seus canais e em órgãos de defesa do consumidor como algo natural. Segundo a nota enviada à reportagem da Revista do Idec, “é importante contextualizar um pouco a saúde suplementar: trata-se de um setor complexo, sensível e que tem grandes dimensões, envolvendo milhões de consumidores, milhares de prestadores de serviços de saúde e centenas de operadoras”. Entretanto, o Idec avalia que o alto número de reclamações de pessoas consumidoras é um sintoma grave, resultante de práticas abusivas das operadoras. “O volume de reclamações registradas pela ANS e por órgãos de defesa do consumidor está crescendo. Nós entendemos que isso é consequência de brechas na regulação e também da omissão da agência. Atos normativos da ANS poderiam imediatamente inibir essas práticas e também responder adequadamente aos casos reportados”, opina Andrietta.
O Procon-SP destaca que o registro das reclamações é um importante instrumento para identificar e inibir os abusos e desrespeitos aos direitos dos consumidores praticados pelas operadoras, uma vez que elas terão a oportunidade de solucionar as reclamações dos usuários em âmbito administrativo. Além disso, o registo das irregularidades praticadas por essas empresas pode ser utilizado para nortear atuações coletivas dos órgãos de defesa do consumidor, por refletir condutas de mercado de algumas operadoras.
Demandas do Idec
Nos últimos anos, especialmente do final de 2021 para cá, com os altos índices de reclamações e os problemas já identificados, o Idec tem enviado uma série de contribuições para a ANS, buscando garantir a defesa dos consumidores e coibir práticas abusivas das operadoras. “Entre os pleitos do Idec está o aprimoramento das regras para impedir definitivamente os cancelamentos unilaterais para todos os planos coletivos e a regulação de reajustes nessa modalidade de contratos”, informa Andrietta. Ele e a equipe do Idec têm participado de audiências públicas, comissões especiais na Câmara e no Senado, além de reuniões com o corpo técnico da agência reguladora. “Ficou claro nessas reuniões que muitos técnicos da ANS têm um diagnóstico preciso e correto sobre as consequências perversas para essas lacunas, mas, infelizmente, essa pressão ainda não gerou avanços significativos”, lamenta.
A agência reguladora alega que, ao longo de seus quase 25 anos de existência, tem se dedicado ao aprimoramento da regulação e à ampliação da participação social em suas decisões. E que, além disso, trabalha para que o consumidor tenha acesso a tudo aquilo que ele contratou, com qualidade e dentro dos prazos máximos de atendimento estabelecidos. Argumenta, ainda, que monitora constantemente a atuação das operadoras e administradoras de benefícios, para que seja possível atuar em caso de identificação de problemas. Contudo, o Idec avalia que a ANS tem autonomia para promover avanços na proteção do consumidor. Porém, diante do atual cenário, a diretoria da agência não demonstra disposição em reconhecer e enfrentar o problema. Por isso, a pressão e a cobrança do Idec se mantêm. No final de setembro, junto com o Procon paulista e a Defensoria Pública da União (DPU), o Instituto enviou um novo pedido à ANS exigindo que ela tome medidas urgentes de atendimento aos consumidores dos planos coletivos e que avance no âmbito regulatório, com critérios mais definidos e protetivos aos consumidores. Além disso, defende a implementação de uma CPI no Congresso Nacional sobre planos de saúde a fim de passar o setor a limpo.
Reconhecimento
Em meio a este cenário tão complexo, o Idec tem conseguido um reconhecimento público pelo seu trabalho, seja pelas autoridades que comandam comissões especiais e audiências públicas, seja pelos consumidores diretamente afetados pela atuação dos planos, como Fabiane Simão e Poliana Baptista, cujas histórias conhecemos no início desta reportagem. “O Idec é uma grata surpresa nesse cenário, porque é uma instituição que se coloca ao lado dos consumidores e se propõe de forma séria a debater o assunto e propor soluções efetivas, vislumbrando sempre resguardar o lado mais vulnerável”, elogia Simão.
Andrietta assegura que esse trabalho não vai parar. “O Idec se dedica há décadas a defender avanços e impedir retrocessos. A proteção de consumidores e a regulação adequada da saúde suplementar são fundamentais para a defesa do interesse público neste âmbito”, finaliza.