Reféns das farmácias
Governo brasileiro ainda permite que drogarias inflacionem preços de medicamentos e coajam consumidores a trocar dados pessoais por descontos, mostra pesquisa do Idec.
Quem compra remédios no Brasil sabe que os preços podem variar bastante de um dia para o outro ou de acordo com a farmácia. Sabe ainda que o fornecimento de dados pessoais, como o CPF, é revertido em ótimos descontos, que praticamente ninguém está disposto a perder. Também já não é mais novidade que por trás dessa discrepância de valores está um sistema equivocado de criação de preço-teto pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Isso porque os critérios adotados permitem que o teto seja fixado muito acima dos preços efetivamente praticados no mercado. Como resultado, as farmacêuticas e farmácias acabam tendo uma margem muito grande para alterar os preços e negociar descontos injustificados. Permite, ainda, que aumentem os valores em situações de escassez, como aconteceu na pandemia, ou pressionem consumidores a compartilharem seus dados pessoais em troca de produtos mais baratos.
Essa realidade está sendo mostrada há anos pelo Idec, em pesquisas realizadas em 2013, 2014, 2021 e 2023. Elas comparam o preço de alguns remédios bastante consumidos pelos brasileiros (nas farmácias e no Sistema Único de Saúde – SUS) com os tetos estabelecidos pela CMED. Agora, em 2024, um novo levantamento foi feito. Desta vez, focou-se na comparação entre os tetos da CMED estipulados para a venda dos medicamentos nas farmácias e os preços reais pagos pelo consumidor, incluindo as políticas de descontos praticadas por esses estabelecimentos.
Como foi feita a pesquisa
Foram escolhidos 20 princípios ativos e suas respectivas marcas, quando disponível. Os sete primeiros produtos da lista foram selecionados a partir das pesquisas realizadas pelo Idec em 2021 e 2023, garantindo continuidade e comparabilidade entre as evidências coletadas. Foram incluídos 13 novos fármacos (o critério de escolha foi o maior volume de vendas por mercado relevante). Para cada um dos mercados relevantes considerados, foram selecionados os princípios ativos com o maior volume de vendas. Para a seleção da marca, foi considerada a mais prevalente do mercado.
Os preços foram coletados em março de 2024 pelas centrais de televendas de três redes de farmácia: Raia Drogasil, Drogaria Pacheco São Paulo e Grupo Pague Menos, localizadas em São Paulo (SP). Para realizar a comparação com o preço-teto regulado, foi utilizada a lista da CMED referente ao mês de março de 2024.
Marina Magalhães, analista do programa de Saúde do Idec
Assim como nas pesquisas anteriores, ficou claro que o preço-teto regulado continua sendo bem maior. “Na média, os valores praticados nas drogarias podem dobrar e até quintuplicar de um dia para o outro, sem que isso represente descumprimento da regulação”, informa Marina Magalhães, analista do Programa de Saúde do Idec e responsável pela pesquisa. Segundo ela, o poder público está ciente do problema, mas tem sido lento para solucioná-lo. “Temos visto declarações da CMED de que a regulação de preços será revisada, mas não sabemos quando nem como isso será feito. Enquanto isso, a população não consegue acessar plenamente seu direito à saúde e ainda fica refém do uso indevido de seus dados pessoais”, afirma.
Diferenças encontradas
Inicialmente, foram comparados os preços médios de 20 medicamentos, sem desconto, com o teto determinado pela CMED. No caso daqueles com marca, a diferença média foi de 37,82%, sendo a menor variação de -6,97% (Triaxin), e a maior, de 329,90% (Aradois). Já para os genéricos, a diferença média foi de 20,89%, com a maior variação de 136,21% (omeprazol), e a menor de -12,51% (atenolol). Com relação à variação negativa, Magalhães explica que, em tese, ela não deveria existir, pois indica que o valor praticado no mercado estava acima do permitido pela regulação. “Isso reforça a hipótese, já levantada na edição anterior da pesquisa, de que as farmácias fixam preços inflacionados ou exatamente iguais ao teto da CMED para coagir consumidores a fornecer seu CPF em troca de um desconto fictício”, ela argumenta.
Em um segundo momento, foi feita a comparação entre os preços médios dos medicamentos sem desconto e com desconto, concedidos mediante a entrega de dados pessoais. Para os remédios de marca, houve uma diferença média de 20%, com o maior deles sendo de 49,44%, correspondendo a R$ 59,56 (Clavulin), e o menor deles de 0,67%, correspondendo a R$ 0,18 (Polaramine). Já para os medicamentos genéricos constatou-se a diminuição média de 77,31% do valor cheio. Entre eles, a maior diferença correspondeu a 307,82% do preço final, equivalente a um desconto de R$ 95,61 (aciclovir), e a menor a 1,95% ou R$ 0,51 (nistatina + óxido de zinco). Magalhães destaca que em casos de medicamentos mais caros, como o Saxenda, o desconto em valor absoluto chegou a R$ 219,97. “Isso corresponde a 14,2% do salário mínimo no estado de São Paulo. Ou seja, uma vantagem muito relevante para a decisão do consumidor sobre o compartilhamento de seus dados”, ela ressalta.
Mas é ao comparar os preços com desconto com o teto da CMED que se revela a maior prática abusiva identificada pela pesquisa. Entre os remédios de marca, a diferença média foi de 71,63%, mais do que o dobro da diferença entre os medicamentos sem desconto e o teto da CMED. No caso dos genéricos, enquanto os preços sem desconto apresentaram uma diferença média de 20,89%, este número saltou para 115,52% quando aplicados os descontos. Esses dados permitem trabalhar com a hipótese de que os descontos concedidos com base no fornecimento do CPF são artificiais. “Na prática, as farmácias aproveitam a grande distância entre o teto e os valores de mercado para inflacionar o preço dos produtos e coagir o consumidor a trocar seus dados por um desconto injustificado”, critica Magalhães.
O que se ganha com os dados pessoais?
Manipular o preço de um medicamento para pressionar o consumidor a entregar seus dados pessoais é uma prática abusiva. No entanto, ela pode ser vista por todo o país. E de acordo com a pesquisadora Joyce Souza, do Laboratório de Tecnologias Livres da Universidade Federal do ABC (UFABC), essa prática se tornou um modelo de negócio. Ela explica que a farmácia não ganha diretamente com a coleta do número do CPF, mas com o que se atrela a ele: as informações sobre o perfil de consumo daquele cidadão. Por exemplo, o que está sendo adquirido, qual a forma de pagamento, quanto se gasta e com o que, além da idade, do sexo, de onde mora etc. “Ao processar esses dados, as farmácias categorizam seus clientes. Assim, torna-se possível realizar ações de marketing direcionadas, ampliando vantagens econômicas. Porém, os cidadãos não sabem que seus dados são utilizados dessa forma, o que inviabiliza qualquer processo para corrigi-los”, ela esclarece. A pesquisadora cita a situação em que uma pessoa pode adquirir em seu CPF uma medicação para terceiros e ser enquadrada em um perfil com o qual ela não tem qualquer relação.
Além disso, a prática viola a privacidade das pessoas e pode aprofundar processos discriminatórios. “Suponhamos que uma farmácia tenha parceria com uma empresa onde uma das funcionárias adquire, mensalmente, anticoncepcionais. No entanto, em determinado mês, ela não compra esse medicamento. Tendo acesso ao dado compartilhado pela farmácia, a empresa pode entender que a funcionária está tentando engravidar e, com isso, demiti-la por antecipação”, ela exemplifica.
Qual a saída?
Souza não acredita em solução individual. “O cidadão sozinho nada pode fazer em relação a essa prática. Pensar sobre a privacidade dos dados perpassa por uma questão de classe. Quem pode se negar a fornecer o CPF diante de descontos tão altos?”, ela questiona.
A pesquisadora aponta alternativas coletivas, como pressionar instituições e organizações para que façam cumprir legislações já vigentes. Entre elas está a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que precisa ser melhor implementada e fiscalizada pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANDP) no cenário da saúde. Além disso, Magalhães, do Idec, ressalta a necessidade de modernização das regras do setor, para promover maior transparência sobre os custos de produção e venda dos medicamentos e estabelecer critérios de precificação mais adequados à realidade nacional. “Todas essas propostas estão incluídas na campanha Remédio a Preço Justo, que o Idec lançou em 2021”, ela destaca. E finaliza: “A iniciativa inclui a busca de apoio da sociedade para a aprovação do Projeto de Lei nº 5.591/2020), que traz uma série de medidas para garantir preços-teto mais justos para os medicamentos”.
Saiba mais
Campanha Remédio a Preço Justo: https://bit.ly/44mYKwQ