PEC do SUM
PEC nº 25/2023 viabiliza a criação do Sistema Único de Mobilidade e busca fim da crise do transporte público no Brasil.
Em 2024 temos eleições municipais no Brasil. E é nesse momento que temas do cotidiano, principalmente nas cidades, ganham maior destaque no debate público, trazendo para o foco a qualidade dos serviços públicos. Entre eles está a mobilidade urbana, cujo elemento principal é o transporte público coletivo, que pode ser considerado a coluna vertebral de uma cidade. Sem ele, a grande maioria das pessoas não se locomove, a cidade não funciona, não há trabalho, produção e consumo. Não se chega aos espaços de cultura, educação, saúde, não se acessa os direitos que nos são garantidos.
Mas mesmo sendo assim tão importante, esse é o único serviço público que é bancado somente pelas pessoas que o utilizam (por meio de tarifas caras), que, em sua maioria, são as mais vulneráveis da sociedade. “É por essas e outras que o transporte público vive uma grave crise no país inteiro – com qualidade muito baixa e preço muito alto – e tem sido estopim de revoltas, como a de junho de 2013”, lembra Annie Oviedo, analista de Mobilidade Urbana do Idec e integrante da Coalizão Mobilidade Triplo Zero.
Também não é à toa que nos últimos anos vimos aumentar o número de cidades com tarifa zero no Brasil. “Já são 103 com transporte gratuito em todos os dias, horários, linhas e para todos os cidadãos. Sem contar aquelas que a aplicam em dias, linhas e horários específicos”, informa Lúcio Gregori, ex-Secretário Municipal de Transportes de São Paulo no governo Luiza Erundina e membro da Coalizão Mobilidade Triplo Zero. Ele pontua que, até então, essa era uma medida vista como radical e utópica. “Hoje, temos prefeituras governadas pelos mais variados partidos aplicando essa política pública. Isso porque, além de trazer bons resultados ao funcionamento e à economia da cidade, também tem forte apelo eleitoral”.
Apesar de a tarifa zero já estar sendo pautada nas pré-campanhas eleitorais, sua implantação de forma ampla, consistente e bem controlada pelo poder público ainda está longe de acontecer, pois envolve mudanças importantes na forma como o transporte público é financiado e gerido no Brasil. “Vai além do que os municípios conseguem realizar por meio das leis que temos atualmente”, constata Oviedo.
Hoje, a maneira como o serviço é organizado no Brasil gera problemas para todos: usuários e não usuários, empresários do setor de transporte e de outros, e poder público. Esse caos tem dado origem a propostas - que partem desses diversos segmentos - para a criação de um novo conjunto de leis e políticas públicas para regrar e promover o serviço. Entre elas está a Proposta de Emenda à Constituição (PEC nº 25/2023) apresentada pela deputada federal Luiza Erundina (PSOL). A iniciativa viabiliza a criação de um Sistema Único de Mobilidade (SUM) e a implantação da tarifa zero em todo o país, nos mesmos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS). Existe também uma proposta de Marco Legal do Transporte que está sendo elaborada pelo Governo Federal e deve ser apresentada no Congresso Nacional neste primeiro semestre.
A CRISE
De acordo com as leis brasileiras, cada município é responsável por gerenciar seu próprio sistema de transporte. Já os governos estaduais cuidam do serviço entre as cidades e nas regiões metropolitanas. O Governo Federal apenas fornece recursos para a execução de algumas obras, mas não ajuda estados e municípios a organizar e pagar seus sistemas de mobilidade.
Transporte público para ser bom custa caro, e as cidades não estão conseguindo pagar essa conta sozinhas. Além da falta de recursos para financiar o serviço, os municípios adotam, há décadas, formas equivocadas de concessão do serviço à iniciativa privada. Esse modelo, que remunera a empresa por passageiro transportado e não pelo custo de operação do sistema, precariza o serviço e acaba expulsando usuários. Para entender melhor a questão, basta comparar com um táxi. Não importa se um ou quatro passageiros entram no carro, o preço da corrida é o mesmo, pois leva em conta o gasto que o motorista tem por quilômetro rodado. A mesma lógica deveria funcionar para o transporte público. Mas não é o que acontece.
Oviedo explica que a remuneração por passageiro transportado faz com que as empresas, para diminuir o custo e ampliar seu lucro, reduzam a frota em circulação e lotem os veículos. “A empresa ganha com a precarização do serviço. Porém, a falta de qualidade mais a tarifa alta afastam o usuário do sistema. Com menos gente pagando, a empresa aumenta cada vez mais a tarifa para manter a receita. É um círculo vicioso”, ela diz. Gregori conta que as organizações da sociedade civil que lutam pela mobilidade denunciam, há anos, esse modelo de remuneração, cujo problema ficou evidente durante o isolamento imposto pela pandemia da Covid-19 em 2020 e 2021. Naquele momento, a situação das empresas ficou ainda pior, pois houve uma queda brusca no número de usuários pagando passagem. “A partir da crise econômica das empresas de ônibus é que o debate sobre o transporte público, que estava ofuscado, ganhou novo destaque no cenário nacional”, ele afirma.
A PEC E O SUM
Diante da crise das empresas, tanto os movimentos sociais quanto o setor privado passaram a defender que o poder público criasse meios para subsidiar o serviço. “Este é o cerne da PEC nº 25/2023 e do SUM. Defendemos que toda a sociedade financie o transporte público, pois ela se beneficia do serviço, inclusive quem não o utiliza”, aponta Oviedo. Mas ela alerta que, diferentemente do que querem os empresários, a proposta da sociedade civil organizada, consolidada no SUM, prevê a transparência e participação social sobre o uso dos recursos públicos, entre outros instrumentos de controle.
O SUM é uma proposta elaborada pela Coalizão Mobilidade Triplo Zero, da qual o Idec faz parte. Seu objetivo é garantir transporte público bom e gratuito para todas as pessoas, assegurando mobilidade para acessar outros direitos, conforme previsto na Constituição Federal. Dessa forma, pretende-se diminuir a desigualdade social, a poluição do ar, o aquecimento global e os acidentes no trânsito. Para isso, o SUM prevê a integração dos governos federal, estadual e municipal para que, juntos, contribuam com o custo e a gestão do transporte público nas cidades; participação, transparência e controle social deliberativos; novas fontes de recursos para garantir a tarifa zero; linhas de financiamento para infraestruturas ao transporte público e à mobilidade ativa; novas formas de gestão do transporte; promoção e integração dos modos ativos de deslocamento; frota limpa e fiscalização da emissão de poluentes.
Foi para custear a gratuidade do transporte público que surgiu a PEC nº 25/2023, que prevê a possibilidade de os municípios criarem a contribuição pelo uso do sistema viário (Conusv) com base no tamanho e na potência do veículo. Quanto mais caro e potente ele for, maior o valor da contribuição. “Aplicando isso à frota da capital paulista de 2019, teríamos uma arrecadação de R$ 6,5 bilhões, o que paga o sistema de transporte da cidade toda”, exemplifica Gregori, que idealizou a proposta. A PEC também apresenta as diretrizes do SUM e o insere no texto da Constituição, para que, depois, o governo o regulamente. Atualmente, a proposta se encontra na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
Já o Marco Regulatório dos Transportes está sendo elaborado pelo Governo Federal, em parceria com o Fórum Consultivo de Mobilidade Urbana, o qual o Idec integra. Trata-se de um novo arcabouço legal para o transporte coletivo, uma atualização da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU). “Há perspectivas de que o Marco comece a tramitar no Legislativo ainda neste ano”, comunica Oviedo. Segundo ela, o Idec apoia a tramitação do Marco Legal, pois certas inovações jurídicas e regulatórias precisam ser implementadas por meio de uma lei dessa natureza. “O papel do Idec, contudo, é de avaliar a proposta e sua capacidade de expansão dos direitos da população usuária. Faremos as críticas necessárias e nos empenharemos em propostas construtivas”, garante.
Oviedo acredita que, dificilmente, a PEC e o SUM impactem as eleições deste ano devido ao tempo dos trâmites legislativos. As duas propostas, contudo, fazem parte de um mesmo contexto, que também envolve os municípios, com crescente interesse por políticas de tarifa zero, demanda por descarbonização da frota e necessidade de combater a emergência climática ampliando o acesso e a abrangência do transporte coletivo.