Guia dos Bancos Responsáveis
Estudo do Idec aponta descaso dos bancos em fiscalizar empréstimos a pecuaristas, frigoríficos e varejistas. O problema é grave, considerando que a pecuária é a atividade que mais desmata a Amazônia*
(*Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Reporter Brasil (https://reporterbrasil.org.br/).
Sem regras ambientais eficazes, bancos públicos e privados financiam empresas envolvidas na atividade que mais desmata a Amazônia: a pecuária. Essa é a conclusão do novo estudo do Idec e do Guia dos Bancos Responsáveis (GBR), “Financiamento da cadeia da carne: instrumentos regulatórios e o meio ambiente”, lançado no início de dezembro em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, durante a Conferência do Clima da ONU (COP 28).
A pesquisa alerta para a necessidade de o sistema financeiro se comprometer com medidas em prol do meio ambiente na concessão de créditos à cadeia da carne, seja em negócios com pecuaristas, frigoríficos ou varejistas. “Falamos muito sobre [os impactos ambientais das] empresas pecuaristas, mas olhamos pouco para as instituições financeiras”, diz Julia Catão Dias, especialista do Programa Consumo Sustentável do Idec. Ela explica que as normas atuais do Banco Central (Bacen) determinam a verificação do perfil ambiental dos clientes apenas antes da concessão do crédito. No entanto, é fundamental monitorar também a aplicação dos recursos e os impactos das atividades financiadas. “O que nos preocupa é a falta de obrigatoriedade de os bancos acompanharem os contratos e saberem onde estão colocando o dinheiro”, destaca Dias.
PECUÁRIA, GRANDE POLUIDOR
As emissões de gases de efeito estufa pelo setor agropecuário chegaram a 601 milhões de toneladas de CO2 em 2021, o maior índice desde 2004. Só a participação da pecuária cresceu 182% desde 1970, segundo o Observatório do Clima. A atividade responde por 74% de toda a poluição climática no país.
Um dos principais gargalos é a falta de rastreabilidade dos animais. “Ao investir em um setor sem um sistema eficaz de controle de fornecedores, as instituições financeiras assumem o risco de causar danos ambientais. E elas não podem dizer que não estão financiando o desmatamento. No fundo, elas não sabem se estão ou não”, opina Merel van der Mark, coordenadora da plataforma Forests and Finance (Florestas & Finanças, em português). A adoção de medidas é cada vez mais urgente, tendo em vista que a pecuária continua em expansão no país. A capacidade de abate instalada dos frigoríficos registrados nos Sistemas de Inspeção Federal (SIF) e nos Sistemas de Inspeção Estadual (SIE) aumentou 5% em 2022 na comparação com 2016. Foram abatidos 65 mil animais por dia no ano passado, ou 23,7 milhões ao todo, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).Sem a rastreabilidade, a Imazon calcula que mais de 3 milhões de hectares de florestas na Amazônia estão sob risco de desmatamento até 2025. “Existe um ecossistema de negócio com desmatamento. É o fazendeiro, o frigorífico, o banco, o agente público, o agente privado, o fundo de pensão. É todo mundo fechado com o desmatamento de várias formas”, declara Paulo Barreto, pesquisador do Imazon. Ele ressalta que, ao fornecerem créditos às atividades pecuárias sem critérios rigorosos de sustentabilidade, os bancos toleram o desmatamento e, consequentemente, podem agravar a crise climática no país.
BANCOS E O RISCO AMBIENTAL
Os bancos brasileiros são os que mais financiam empresas de commodities com risco de causar desmatamento, segundo relatório do Florestas & Finanças divulgado no início de dezembro. Segundo o levantamento – que considera os investimentos feitos desde a assinatura do Acordo de Paris, em 2015 –, foram destinados, no Brasil, 127 bilhões de dólares para empresas agropecuárias com histórico de violações socioambientais, entre janeiro de 2016 e setembro de 2023. Os dados incluem créditos para a produção de carne bovina, soja, óleo de palma, celulose e papel, borracha e madeira. Só a pecuária recebeu 54% do crédito.
Segundo o relatório, Banco do Brasil, Bradesco e Itaú lideram o ranking de investimentos em empresas com risco ambiental. “Os bancos não vão adotar as medidas necessárias voluntariamente. Precisamos de regulações fortes do Banco Central”, argumenta Mark, do Florestas & Finanças. Ela comenta, ainda, que o Banco do Brasil é o que mais oferta crédito rural no país e é, de longe, o que mais fornece crédito a empresas cujas atividades podem provocar o desmatamento.
Em nota, o Banco do Brasil informou que sua política de crédito observa critérios socioambientais, mas não apontou de que forma o monitoramento é realizado. Disse ainda que exige dos clientes a apresentação de documentos que comprovem a regularidade socioambiental dos empreendimentos e que antecipa o vencimento do contrato quando há violações socioambientais. Procurados, o Bradesco disse que não iria se manifestar, e o Itaú não respondeu.
MEDIDAS INEFICAZES
O Bacen e a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) lançaram, em 2023, novas regras em prol de negócios sustentáveis no agronegócio. As medidas, contudo, são consideradas ineficazes pelos especialistas desta reportagem.
Em junho, o Bacen publicou uma nova regra que impede a concessão de crédito para áreas embargadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por desmatamento. A medida já valia para a Amazônia, mas a partir de janeiro será aplicada em todo o território brasileiro. A norma também veda o acesso ao crédito rural para proprietários de imóveis sem inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR), inseridos em área de Unidade de Conservação ou Terras Indígenas.
O estudo do Idec considera a nova regulação um avanço, no entanto, ressalta que essas regras não impediram o crescimento da pecuária predatória na Amazônia nos últimos anos. Assim, defende a adoção de outros mecanismos mais eficientes no combate às práticas antiambientais. Uma sugestão para os bancos seria utilizar o sistema Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite) para verificar eventuais desmatamentos ilegais recentes, que geralmente ocorrem em áreas onde os órgãos ambientais ainda não chegaram. “Os bancos podem verificar a data em que se deu o desmatamento e, sendo recente, podem solicitar que o cliente apresente a autorização para supressão de vegetação. Se o cliente não apresentá-la, o desmatamento é ilegal, ou seja, não é necessário esperar a área ser embargada para concluir isso”, explica a pesquisadora Flávia Vieira do Amaral, da Universidade Federal do Pará (UFPA), responsável pelo estudo do Idec.
Outras medidas adotadas pelo sistema financeiro em 2023 também são apontadas como ineficazes pelo Idec, como o novo Manual de Crédito Rural do Bacen, divulgado em novembro, e a proposta de autorregulação da Febraban. Ambas não incluem cláusulas de monitoramento dos contratos, consideradas cruciais pelos especialistas. “Sem o acompanhamento periódico, não há controle sobre como os recursos são investidos, de modo que os bancos podem se envolver em atividades que estejam violando as salvaguardas ambientais e climáticas”, pontua Vieira, da UFPA.
No caso da proposta da Febraban, os especialistas criticam o fato de a instituição dar prazo até 2025 para que os frigoríficos comprovem a rastreabilidade da carne. “Os bancos, como especialistas em gestão de risco, poderiam ter ações diferentes em cada território. Eles não deviam dar mais crédito aos atores ligados ao desmatamento ilegal. E não precisam esperar 2025 para tomar medidas”, critica Barreto, do Imazon.
Em nota, a Febraban informou que, além de observar o CAR e as resoluções do Bacen, as instituições financeiras estabelecem protocolos para a gestão dos riscos de desmatamento ilegal e critérios para a concessão de crédito. De acordo com a representante dos bancos, a autorregulação prevê cláusulas contratuais para operações com maior exposição a riscos socioambientais, porém ainda não houve sinalização sobre o acompanhamento desses clientes após a concessão dos empréstimos. Procurado, o Banco Central não se manifestou.
Saiba mais
Leia o relatório da pesquisa em: https://bit.ly/3RGpu5B