Escuridão seletiva
Estudo do Idec revela que enquanto cidadãos da região Norte do Brasil podem ficar até 56 horas sem luz 28 vezes ao ano; no Sudeste, o tempo e a frequência das interrupções no fornecimento de energia são bem mais baixos. Entenda por que
Em 15 de agosto, praticamente o Brasil inteiro sentiu como é passar um tempo sem luz. Em alguns lugares, o apagão durou poucos segundos, em outros, horas. Ainda não sabemos o que o causou, mas provavelmente foi uma falha no sistema de transmissão. Contudo, são problemas na distribuição que têm deixado, há anos, os brasileiros sem energia frequentemente e por vários dias. No site Reclame Aqui é comum encontrar mensagens como esta: "Desde ontem à tarde, por volta das 17h, a cidade onde meu pai mora está sem luz (agora são 23h30 do dia seguinte) e, com certeza, o problema não será resolvido hoje. Trata-se de uma cidade muito pequena, com poucos moradores. Talvez por isso o descaso seja tão grande".
Ciente desse grave problema, o Idec decidiu avaliar o desempenho das concessionárias e permissionárias no fornecimento de energia elétrica em todo o Brasil, de 2018 a 2022. De modo geral, houve melhora. Contudo, isso não significa que o serviço esteja sendo bem prestado. A seguir explicamos por que.
LIMITES PERMISSIVOS
Quando falamos em continuidade no fornecimento de energia elétrica, é importante conhecer dois indicadores coletivos: o FEC (Frequência Equivalente de Interrupção) e o DEC (Duração Equivalente de Interrupção). O primeiro aponta quantas vezes por ano, em média, um conjunto elétrico (grupo de unidades consumidoras [UCs] que estão na área de concessão de determinada distribuidora) ficou sem luz. Já o segundo mostra por quanto tempo, em média, cada conjunto elétrico ficou sem luz no ano.
As distribuidoras – responsáveis por levar a energia até a casa dos cidadãos – precisam respeitar o limite imposto pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para o DEC e o FEC. "Esses valores variam de acordo com o conjunto elétrico, pois cada um tem uma infraestrutura, algumas melhores, outras piores; e com o porte da distribuidora (e se ela é uma concessionária ou uma permissionária)", explica Priscila Morgon Arruda, pesquisadora do Programa de Energia e Sustentabilidade do Idec e responsável pelo estudo. Ela informa, ainda, que com exceção das concessionárias que atuam na região Norte, no geral os limites para as permissionárias de distribuição de energia elétrica – também conhecidas como cooperativas de eletrificação rural – são maiores.
O problema identificado pelo Idec é que muitos desses limites são altíssimos, especialmente na região Norte. Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins, além de Mato Grosso, no Centro-Oeste, são os estados com os maiores valores-limites para os indicadores. "Alguns valores são inaceitáveis, pois de tão altos são quase uma permissão para que a distribuidora deixe os consumidores sem energia por um período. Enquanto em São Paulo a interrupção do serviço pode ocorrer cinco vezes e somar, no máximo, 6 horas por ano, um consumidor de Roraima pode ficar quase 50 horas sem energia por até 58 vezes no ano", critica Arruda. Maria Gabriela Feitosa, assessora de projetos do Instituto Pólis, concorda: "O fato de os indicadores estarem dentro das metas projetadas esconde um padrão de fornecimento abaixo da média, com a continuidade do serviço prejudicada. Isso é consequência dos DEC e FEC limites, que estabelecem tempo de duração e frequência de interrupção elevados como algo tolerado em áreas periféricas e com menor renda". Ela informa, ainda, que a duração e frequência das interrupções de energia nas periferias impacta, em sua maioria, domicílios chefiados por mulheres com renda de até um salário mínimo, famílias de baixa renda e a população negra. Tanto o Idec quanto o Instituto Pólis acreditam que rever os limites estabelecidos pela Aneel é urgente e necessário para assegurar a equidade na qualidade do fornecimento de energia elétrica.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
Primeiramente, solicitamos à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), os DECs e FECs dos conjuntos elétricos de todas as distribuidoras que atuam no Brasil. Depois, comparamos esses dados com os limites estabelecidos pela agência reguladora. Isso foi feito para os anos 2018, 2019, 2020, 2021 e 2022, a fim de avaliarmos se, no período de cinco anos, houve melhora ou piora na qualidade do fornecimento de energia elétrica nas cinco regiões brasileiras.
Também avaliamos a quantidade de compensações pagas pelas distribuidoras que ultrapassaram os limites de continuidade individuais das unidades consumidoras entre 2018 e 2022, assim como o valor pago.
Priscila Morgon Arruda, >pesquisadora do Programa de Energia e Sustentabilidade do Idec.
Questionada sobre os altíssimos valores-limites da região Norte, a Aneel explicou que eles são mais elevados do que os das demais regiões por conta da não prorrogação de diversas concessões, como as da CEA, CERR, CEAL, Cepisa, Eletroacre, Ceron, Boa Vista Energia e Amazonas Energia. Isso fez com que a prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica nessas áreas de concessão fosse realizada por distribuidoras designadas para prestar o serviço. Segundo a agência, "diante dessa situação precária, optou-se por definir limites de DEC e FEC mais flexíveis para os conjuntos de unidades consumidoras dessas distribuidoras para o ano de 2018 e os seguintes, até a realização da primeira revisão tarifária após a assunção do novo controlador. E a flexibilização de limites se encerra nas revisões que devem ocorrer ainda este ano para a maioria dessas empresas". A partir de então, a Aneel passará a adotar integralmente a metodologia comparativa, utilizada nas outras regiões para estabelecer esses limites.
O Idec reforça que os limites dos indicadores coletivos sofreram aumentos em comparação aos valores de 2017. Ainda assim, no geral, na região Norte, nos anos anteriores a 2018, eles eram mais elevados do que os das demais concessionárias que atuam no país. E o caso da Amazonas Energia é o mais grave, já que de 2015 a 2022, os limites do DEC apresentaram variações de 46 a quase 51 horas; e, os do FEC, de 44 a quase 48 vezes ao ano.
DESIGUALDADE ELÉTRICA
De modo geral, houve redução da proporção de UCs afetadas pela violação do DEC limite nas regiões Centro-Oeste, Sul, Sudeste e Norte entre 2018 e 2022. Na região Nordeste, porém, ocorreu aumento no período de 2018 a 2021, com ligeira redução de quase 7% em 2022 (veja o gráfico acima). Já em relação ao FEC, houve redução da proporção de UCs afetadas pela violação do FEC limite em todas as regiões brasileiras entre 2018 a 2022, sendo a região Sul a que apresentou a menor redução (veja o gráfico abaixo).
Em 2022, 24,9 milhões de UCs foram afetadas pela violação do limite do DEC, que indica a duração da interrupção do fornecimento de energia elétrica; e 10 milhões pela violação do limite do FEC, indicador de frequência da interrupção. Infelizmente, não é possível saber quantas pessoas são afetadas, considerando-se que uma unidade consumidora pode ser uma casa onde vivem vários indivíduos ou um edifício com muitas famílias.
A duração média da interrupção do serviço pelas distribuidoras da região Centro-Oeste – que atendiam 6,9 milhões de UCs em 2022 – foi de aproximadamente 15 horas, e a frequência média, de sete vezes. As distribuidoras da região Nordeste atendiam 22,9 milhões de UCs e tiveram DEC médio de 13 horas, e FEC de cinco vezes. As distribuidoras da região Norte atendiam 5,7 milhões de UCs. Em média, quem mora nessa parte do país ficou 12 vezes sem luz no ano, somando pouco mais de 24 horas no total. Na região Sudeste, que conta com 38,5 milhões de UCs, a duração e frequência médias foram de 7 horas e três vezes, respectivamente. Na região Sul, com 13,7 milhões de UCs, o DEC médio foi de 10 horas, e o FEC médio, de cinco vezes.
O Instituto Pólis também detectou desigualdades no fornecimento de energia elétrica em cidades brasileiras. Primeiramente, realizou um estudo de caso, em agosto de 2022, no qual analisou os indicadores de continuidade da prestação do serviço em São Paulo (SP). "Observamos que a qualidade do fornecimento de energia elétrica na capital paulista é desigual. Os resultados indicam que nas periferias, onde está a maior porcentagem de população de baixa renda e negra, as interrupções são mais duradouras e frequentes, diferentemente das áreas centrais, com população predominantemente branca e renda média alta", pontua Feitosa.
Ainda em 2022, o Instituto Pólis analisou a qualidade do fornecimento de energia em: Maceió (AL), no Rio de Janeiro (RJ) e em Rio Branco (AC). Novamente, foram identificadas desigualdades. "Nessas cidades, a partir da análise dos indicadores de continuidade individuais demonstramos que famílias de baixa renda, compostas de pessoas negras ou chefiadas por mulheres, residentes nas periferias, enfrentam apagões mais vezes e por mais tempo no ano, se tomada como referência as médias de interrupção de energia elétrica observadas nessas cidades", informa Feitosa, lembrando que "a desigualdade coloca em risco o acesso ao suprimento mínimo de energia para assegurar a refrigeração de alimentos e a iluminação dos domicílios".
INCENTIVOS PARA INVESTIMENTO NA QUALIDADE
O Idec também avaliou as compensações financeiras oferecidas aos consumidores por meio de crédito na fatura toda vez que extrapolam os limites dos indicadores individuais da Aneel para a duração e a frequência das interrupções, ou seja, por unidade consumidora. Isso porque acredita que os valores baixos não estimulam as distribuidoras a investir em infraestrutura e, consequentemente, na qualidade do serviço. "Se o custo para melhorar a infraestrutura é muito mais alto do que a multa que ela deve pagar, pode ser preferível manter as interrupções e indenizar o consumidor", argumenta Arruda.
De acordo com o estudo, o valor dessas compensações aumentou entre 2018 e 2022 – principalmente nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste –, mas continua baixo, uma vez que a compensação média passou de R$ 6 para R$ 39. "Trinta e nove reais é pouco perto dos prejuízos sofridos por quem fica muito tempo sem luz: comida que estraga na geladeira, trabalho que não pode ser feito sem internet, sem contar as pessoas doentes que dependem de aparelhos elétricos", opina a pesquisadora do Idec.
A Aneel informou, por meio de nota, que para atender à preocupação do Idec sobre as compensações pagas aos consumidores, os valores pagos sofreram um "importante" acréscimo em 2022, sendo um sinal mais forte para que as distribuidoras atuem no reestabelecimento das interrupções de maior duração. A agência disse ainda que a ferramenta Fator X - que penaliza ou recompensa a distribuidora por meio de reajuste da tarifa de energia elétrica caso ela descumpra alguns de seus critérios - foi aperfeiçoada, com a inclusão do item "cumprimento dos limites de qualidade no fornecimento de energia por conjunto elétrico". Segundo a Aneel, essa também é uma forma de fazer com que as distribuidoras atuem mais fortemente no atendimento dos consumidores afetados pelas interrupções.
QUAL A SOLUÇÃO?
O serviço público de energia deve ser prestado com qualidade e de forma igualitária e contínua a todos os consumidores do país. Mas na prática, não é isso o que acontece. Por conta dos diferentes valores-limites para a frequência e a duração das interrupções do fornecimento de energia, alguns locais podem ficar mais tempo e mais vezes no ano sem luz. Por isso, para reverter essa situação, o Idec recomenda à Aneel que estabeleça uma meta nacional para os indicadores DEC e FEC. "Para isso, é preciso planejamento. A Aneel não tem uma estratégia de longo prazo, ela vai fazendo pequenas reduções a cada ano, sem uma meta", analisa Arruda.
Para Feitosa, do Instituto Pólis, aprimorar a qualidade do fornecimento de energia elétrica é uma tarefa complexa que requer uma abordagem abrangente e atenta às desigualdades sociais e regionais existentes no nosso país. "Embora as causas das interrupções sejam múltiplas e envolvam questões técnicas, seu enfrentamento requer uma visão multifacetada que priorize o atendimento de territórios e grupos vulneráveis, cujo direito ao acesso à energia adequada, confiável, eficiente, moderna, segura e a preço acessível é mais violado", ela afirma, completando: "Para isso, é preciso garantir, através de regulamentos, investimentos mínimos nas redes de distribuição, que não utilizem apenas critérios de demanda de carga, mas também critérios socioterritoriais, sobretudo no que diz respeito aos marcadores de classe, raça e gênero, para que se possa garantir a equidade do serviço ofertado".
Sobre a compensação financeira oferecida aos cidadãos que vivem nos locais onde as distribuidoras extrapolaram os limites do DEC e do FEC, o Idec sugere revisão da metodologia que define o valor pago, considerado muito baixo, a fim de incentivar investimentos na melhoria dos sistemas elétricos.
Saiba mais
- Matéria "Brasil no escuro", publicada na edição 219 da Revista do Idec: https://bit.ly/3OIkGLe
- Estudo "Justiça energética nas cidades brasileiras, o que se reivindica?", do Instituto Pólis: https://bit.ly/3KS71jQ