Incentivo para o que faz mal
Estudo do Idec, em parceria com a ACT Promoção da Saúde, constata que produtos ultraprocessados, associados ao desenvolvimento de doenças e à mortalidade, fazem parte da cesta básica brasileira e recebem vantagens fiscais
O Brasil encara uma triste realidade: cerca de um em cada seis brasileiros não tem o que comer. O cenário é pior do que o de 2004, quando as políticas públicas de erradicação da pobreza e da miséria precisaram ser implementadas no País. Entre 2021 e 2022, 14 milhões de pessoas passaram a sobreviver em situação de fome e mais da metade dos brasileiros (58,7%) a conviver com diferentes formas de insegurança alimentar e nutricional, de acordo com a última pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan). Perda de emprego, piora na crise econômica, aumento da inflação, pandemia e desmonte de políticas públicas são algumas das razões que fizeram com que a situação se agravasse.
Por outro lado, segundo os dados da última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), do Ministério da Saúde e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Seis em cada dez adultos e uma a cada três crianças apresentam excesso de peso, fator relacionado à obesidade e a outras doenças crônicas, como diabetes e pressão alta. Apesar de parecerem opostos, os dois cenários – fome e obesidade – estão relacionados à má alimentação e ao preço da comida no Brasil. Enquanto alimentos saudáveis como a cenoura foram vendidos por R$ 15 o quilo em 2022, outros produtos com baixo valor nutricional, como macarrão instantâneo, passaram a ser economicamente mais atrativos. O resultado foi o aumento do consumo desses itens.
Segundo a coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, Janine Coutinho, a forma como a tributação da cesta básica é feita hoje, permite a inclusão de diversos ultraprocessados beneficiados pela redução da incidência tributária, como cremes vegetais, biscoitos, salsichas, bebidas lácteas, macarrão instantâneo, entre outros. "A gente luta para que a cesta básica seja composta de alimentos in natura e minimamente processados, além de alimentos regionais, e não de ultraprocessados, cujo consumo está relacionado ao desenvolvimento de obesidade, doenças crônicas e mortalidade precoce", ela declara.
Foi justamente para entender a composição das cestas básicas que o Idec e a ACT Promoção da Saúde encomendaram uma pesquisa que avaliou como as políticas tributárias incidem sobre a cesta básica em diversos estados brasileiros e quais alimentos fazem parte delas. Para a surpresa dos pesquisadores, em São Paulo e no Paraná, por exemplo, foram encontradas salsichas. Em outras cestas havia margarina, pão de forma, entre outros produtos ultraprocessados.
OPORTUNIDADE PARA A INDÚSTRIA
A ideia da Cesta Básica surgiu em 1938, no governo de Getúlio Vargas, por meio do Decreto-Lei nº 399, que instituiu o salário mínimo. Na época, definiu-se que a remuneração deveria suprir as necessidades de habitação, vestuário, higiene, transporte e alimentação dos trabalhadores. Assim, o valor seria determinado a partir da soma das despesas diárias com cada um desses itens. Em relação à alimentação, o Decreto definiu que cada estado teria liberdade para adicionar os alimentos que quisessem à cesta, desde que estes pertencessem aos seguintes grupos nutricionais: carnes, lácteos, óleos, cereais, farinhas, leguminosas e raízes, ervas, frutas, açúcares, café e mate, leite e ovos.
Para garantir que esses alimentos sejam economicamente acessíveis, os governos estaduais e federal implementaram uma série de medidas legais que fazem com que os impostos que incidem sobre eles sejam mais baixos. Porém, o que era para garantir alimentos básicos para o trabalhador virou um campo de disputas das grandes indústrias. "Os estados acabam se aproveitando dessa flexibilidade, que é necessária para garantir a diversidade nutricional e cultural, para colocar qualquer item que o lobby local viabilize", afirma o economista Arnoldo de Campos, diretor executivo da AGMAAC Soluções e autor do estudo do Idec. "Muita gente acha que a população mais pobre tem de comer porcaria. É um pensamento populista e que atende aos interesses da indústria", ele completa.
Para Marília Albiero, coordenadora de inovação e estratégia da ACT Promoção da Saúde, as políticas fiscais e econômicas brasileiras foram desenhadas para estimular a produção de commodities e ultraprocessados. Por exemplo, produtos como macarrão instantâneo, nuggets e néctar de frutas têm isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o que não faz muito sentido, já que esses itens passam por diversos processos industriais. "Quanto mais etapas há no processamento, mais os impostos são amortecidos. O produtor rural, que está no início da cadeia [e produz o alimento in natura], recebe beneficiamento mínimo e praticamente não consegue reduzir esses impostos, que acabam sendo incluídos no preço final [e repassados ao consumidor]", explica Albiero. Ou seja, o preço da cana-de-açúcar pode ser mais alto do que o de um refrigerante, já que o produtor precisa acrescentar todos os impostos com insumos, transporte e mão de obra ao valor final do produto.
CESTA BÁSICA SAUDÁVEL E SUSTENTÁVEL
Enquanto é economicamente positivo para as indústrias ter seus produtos incluídos na cesta básica, o Governo não pode dizer o mesmo. Pesquisa recente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que os ultraprocessados são responsáveis pela morte prematura de 57 mil pessoas por ano no Brasil. Além disso, outros estudos mostram que mais de R$ 3 bilhões são gastos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) só para o tratamento de pressão alta, diabetes e obesidade. Há uma perda econômica e de mão de obra para o Estado. "É inadmissível que com as evidências científicas que temos hoje sobre os efeitos negativos do consumo de ultraprocessados ainda tenhamos uma abordagem tributária que privilegie esses produtos em detrimento de alimentos saudáveis", critica Coutinho.
A forma com que os ultraprocessados são produzidos também traz impactos para o meio ambiente. A soja, que serve de base para muitos produtos, está diretamente ligada ao desmatamento da Amazônia e do Cerrado brasileiros. Outro fator é o uso indiscriminado de agrotóxicos para o cultivo do grão, que podem causar câncer e acabam contaminando rios e lençóis freáticos. Apesar de todos esses impactos para a saúde e o meio ambiente, não existe uma política tributária que favoreça a produção de alimentos orgânicos ou agroecológicos no País, o que pode torná-la inviável para muitos agricultores. O suco de uva integral orgânico, por exemplo, chega a pagar quase quatro vezes mais tributos do que um néctar de uva ultraprocessado, que passa por muito mais etapas de processamento antes de chegar ao supermercado.
Para os especialistas ouvidos nesta reportagem, a cesta básica tem de ser repensada a fim de garantir a promoção do desenvolvimento do País e, consequentemente, da saúde e da segurança alimentar da população. Além disso, uma nova cesta básica saudável precisa ter como premissa o Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado em 2014 pelo Ministério da Saúde. "Precisamos ter orientações e diretrizes que atendam às necessidades nutricionais atuais da nossa população e que favoreçam a saúde, não a doença. Queremos alimentos de verdade e, se possível, orgânicos e/ou agroecológicos na composição da nova cesta básica, e com preços acessíveis aos consumidores", destaca Coutinho. Os especialistas ainda defendem a necessidade de tributar de forma diferente os ultraprocessados, com o objetivo de deixá-los mais caros e fazer com que menos pessoas os comprem.
A principal conclusão do estudo é que é urgente atualizar a política tributária dos alimentos para que ela favoreça a segurança alimentar e nutricional da população. "O Brasil é um país em desenvolvimento e há muita coisa que precisa ser feita. Uma delas é pensar a cesta básica sob a ótica da cidadania, da segurança alimentar e do direito humano à alimentação. A cesta básica não é uma cesta mínima, ela tem de ser básica, mas diversificada, com opções que atendam às diversas regiões brasileiras", conclui Campos.