Ar mais limpo
Com um debate cada vez mais intenso sobre mudanças climáticas e seus efeitos na saúde, a eletrificação dos ônibus aparece como solução para o problema. Veja o que o Brasil está fazendo a respeito
Falar de mudanças climáticas é falar também sobre mobilidade urbana. Segundo dados da Agência Internacional de Energia, o setor de transportes foi responsável por 37% das emissões de CO2 no mundo em 2021. O crescimento das emissões de gases do efeito estufa foi mais notável em países emergentes e em desenvolvimento, como o Brasil.
Contudo, a poluição do ar não afeta apenas o clima. Em 2018, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) divulgou que a emissão de substâncias na atmosfera é responsável, anualmente, por 51 mil mortes no Brasil. "A poluição é muito grave, mas as pessoas não têm noção. Ela causa doenças crônicas não transmissíveis, que são a primeira causa de mortalidade no mundo", afirma a médica Evangelina Vormittag, diretora do Instituto Saúde e Sustentabilidade (ISS).
Assim, ter uma mobilidade mais sustentável é essencial. Isso significa repensar a forma como nos locomovemos e ampliar a discussão sobre a eletrificação dos veículos, principalmente os coletivos. A poluição gerada por carros é proporcionalmente muito maior, por conta do tamanho da frota e da quantidade de quilômetros rodados. Contudo, a diretora do ISS informa que a maioria dos ônibus utiliza o diesel como combustível, substância que polui mais do que a gasolina e o etanol devido a sua composição química. "O diesel emite um pó superfino chamado de material particulado, que é supertóxico. Ele pode entrar facilmente nas vias respiratórias e causar doenças do coração, derrames cerebrais, pneumonia e até alguns tipos de câncer", ela alerta.
Segundo Vormittag, os mais afetados pela poluição são as pessoas que têm doenças crônicas pré-existentes, como asma; idosos; crianças e fetos. Mesmo dentro do útero da mãe, o bebê não está protegido da poluição do ar. "O material particulado provoca problemas vasculares na placenta que causam efeitos reprodutivos no feto, como prematuridade e baixo desenvolvimento", diz a médica. Já nas crianças, como os pulmões terminam de se desenvolver aos 6 anos, esse poluente pode causar, em longo prazo, efeitos em seus sistemas respiratório, neurológico e imunológico. "Onde há escolas com alto nível de poluentes, as crianças têm rendimento escolar mais baixo, porque há prejuízo do desenvolvimento cognitivo", exemplifica.
CAMINHANDO A PASSOS LENTOS
A eletrificação do transporte coletivo é vista por especialistas como a melhor solução para zerar as emissões de poluentes. "A eletrificação representa um avanço em termos de qualidade, com veículos mais silenciosos, confortáveis e seguros. Além de contribuir para a redução da emissão de particulados, que impactam diretamente a saúde da população, a compra de veículos elétricos pode fortalecer essa indústria, com geração de novos empregos", argumenta Annie Oviedo, pesquisadora do programa de Mobilidade Urbana do Idec.
Atualmente, alguns países da América Latina estão substituindo ônibus movidos a diesel por frotas elétricas movidas a bateria. Segundo a E-BUS Radar, ferramenta digital que acompanha a evolução da frota de ônibus zero emissão na região, o país campeão é a Colômbia, com 1.589 veículos elétricos, seguido do Chile, com 819; e do México, com 98. O Brasil aparece em 4º lugar, com 84, sendo que 27% está em Salvador (BA) e sua região metropolitana (veja no quadro onde estão os veículos elétricos no território brasileiro).
Para Felipe Barcellos, pesquisador do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), o País ainda está engatinhando no quesito eletrificação. "A gente tem um setor muito acostumado com a operação pautada no diesel, então há o desafio de quebrar essa cultura, que vem desde as fábricas de ônibus e de motores, que já estão consolidadas, passando também pelas empresas que operam o serviço".
Entretanto, o cenário pode mudar. De acordo com estimativas do Guia de Investimento para Ônibus Zero Emissão no Brasil, lançado no final de janeiro pelo Grupo C40, Zero Emission Bus Rapid-deployment Accelerator e Iniciativa Transformadora de Mobilidade Urbana, os municípios de São Paulo (SP), São José dos Campos (SP), Campinas (SP), Salvador (BA), Niterói (RJ), Rio de Janeiro (RJ), Curitiba (PR) e Goiânia (GO) devem comprar 11 mil ônibus nos próximos anos. Essas oito cidades têm estabelecido compromissos, realizado testes-piloto, adquirido ônibus zero emissão, dentre outras medidas que demonstram avanços. Porém, a transição para um modelo mais sustentável enfrenta algumas barreiras, como as de tecnologia e infraestrutura. Ao renovar suas frotas, as cidades precisarão criar pontos de recarga dentro das garagens e comprar apenas veículos movidos a bateria. Para isso, as fábricas deverão produzir esse tipo de transporte.
UM NOVO JEITO DE FAZER TRANSPORTE
O modelo de negócio também deve ser revisto para que a compra desses ônibus seja economicamente viável, já que costumam ser mais caros do que os movidos a diesel, e para que haja mais controle e transparência no processo. "Para a gente avançar de verdade, ter uma frota elétrica numerosa e que resulte em redução das emissões, o ideal é que o Estado ajude a comprar a frota", defende a pesquisadora do Idec, que acredita que ter a participação do Governo nesse processo traria benefícios para a mobilidade urbana, pois ele teria um papel mais ativo na gestão do transporte. "Ao reduzir o tamanho dos contratos, você reduz a concentração de poder, porque hoje a mesma empresa contrata os trabalhadores, compra os ônibus e renova as frotas quando ela quer. É muito controle para uma empresa só", ela diz. Os demais entrevistados ouvidos para esta reportagem concordam. Sem esse financiamento público, a eventual renovação da frota em grandes proporções recairia sobre os usuários, ou seja, a tarifa, que já é muito cara, poderia subir ainda mais.
Outra opção seria o Governo Federal comprar a frota e alugá-la aos municípios. "Seria uma forma de segurar a onda das operadoras. Além disso, por ser uma compra segura, seria possível negociar melhor o preço e ainda trabalhar a implementação em municípios que não têm transporte ou onde ele é muito precário", avalia Oviedo.
Para Vormittag, do ISS, a solução é fazer um debate transversal entre as pastas de saúde, meio ambiente e transporte, para que sejam estabelecidas metas que gerem benefícios para as três áreas. Além disso, a sociedade deve se apropriar do tema e pressionar os gestores públicos para que as mudanças necessárias sejam feitas no setor de transportes. "Tem que mudar o sistema, mas isso não quer dizer que a gente não tenha de mudar nossos pensamentos e nossas atitudes também, em prol de nossa saúde e do meio ambiente", finaliza.