Medicamentos
Idec constata que o teto estabelecido pelo Governo continua muito mais alto do que o preço real de medicamentos encontrado em farmácias e praticado em compras públicas. Entenda por que isso é ruim
Algumas pesquisas do Idec são clássicas, realizadas de tempos em tempos para verificar se problemas identificados no passado permanecem (ou se novos surgiram). É o caso do levantamento que compara o preço de alguns medicamentos bastante consumidos pelos brasileiros (nas farmácias e no Sistema Único de Saúde – SUS) com o teto estabelecido pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed).
Há anos, o Idec vem alertando para a grande diferença entre o valor máximo que pode ser cobrado por um remédio e os realmente praticados, o que dá bastante liberdade à indústria e ao varejo farmacêuticos para estabelecer e reajustar os preços. Além disso, permite que farmácias vizinhas vendam o mesmo remédio por valores muito distintos. O preço-teto elevado também torna a compra de tratamentos essenciais para o SUS imprevisível. "Entender essa dinâmica é fundamental para avaliar a efetividade do atual modelo regulatório brasileiro e os caminhos para aperfeiçoar suas regras, porque se existe uma política para estabelecer o preço-teto, mas este é tão alto que não faz efeito, é como se ela não existisse. Na prática, não tem limite", declara Ana Carolina Navarrete, coordenadora do programa de Saúde do Idec e uma das responsáveis pela pesquisa.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
A pesquisa foi dividida em duas partes. Na primeira, comparamos o Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG), estabelecido pela Cmed, com o valor pago pelo Ministério da Saúde nas compras públicas federais. Para isso, selecionamos oito remédios da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais 2022 (Rename), usados pelo SUS contra diabetes, hipertensão e câncer. Depois, pesquisamos os preços mais atuais (de 2022) das compras governamentais no site Banco de Preços em Saúde (BPS) e comparamos a média desses valores com o PMVG.
Na segunda etapa, comparamos o Preço Máximo ao Consumidor (PMC), da Cmed, com os valores praticados pela Drogaria São Paulo, pela Droga Raia e pela Drogasil, as três maiores redes que aparecem no ranking da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma). Foram avaliados anti-hipertensivos, antidiabéticos, antibióticos e antiulcerosos (de referência, genéricos e similares) bastante consumidos pela população. A coleta de preços foi feita no site das farmácias, e a média dos valores comparada com o PMC.
A pesquisa contou com uma terceira parte, inédita: avaliamos os descontos oferecidos nas farmácias a clientes que fornecem seu CPF. Os preços foram coletados por telefone nas mesmas drogarias da segunda fase.
Ana Carolina Navarrete, coordenadora do Programa de Saúde do Idec
E se em condições econômicas e sanitárias normais isso já era um problema, com a pandemia piorou muito. "Os preços de remédios importantes para o entubamento de pessoas com Covid, como relaxantes musculares, subiram muito, mas continuavam dentro da legalidade, porque não atingiram o teto da Cmed", exemplifica Navarrete.
Veja no quadro a metodologia da pesquisa e, a seguir, os principais resultados.
DIFERENÇAS NAS COMPRAS PÚBLICAS
Nas compras públicas, verificamos que, em todos os casos analisados, os valores máximos estabelecidos pela Cmed são muito mais altos do que os preços cobrados do Governo, o que gera insegurança para os gestores que compram esses medicamentos. A diferença varia entre 82,12% (Infliximabe) e 936,39% (Dolutegravir Sódico). "Em média, a diferença pode chegar a 300%, ou seja, o preço desses medicamentos pode mais do que dobrar de um dia para o outro e não ser abusivo", critica Navarrete.
O exemplo mais emblemático foi o do antirretroviral Dolutegravir, cujo preço-teto é quase dez vezes mais alto do que o preço real (R$ 1.274,76 e 123,00, respectivamente). "Essa diferença é péssima, porque passa a ideia de que o preço altíssimo [R$ 1.325] é aceitável, porque está legitimado pelo teto", argumenta Alan Rossi Silva, advogado da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia). "Além disso, é um volume de compra alto, pois esse medicamento é usado por cerca de 460 mil pessoas no SUS, segundo o Ministério da Saúde", ele acrescenta.
DIFERENÇAS NAS FARMÁCIAS
De acordo com a pesquisa, a variação entre o preço-teto da Cmed e o preço de medicamentos nas drogarias do País é menor do que no caso das compras públicas, mas ainda assim alta. Para os remédios de referência, a diferença ficou entre 29,51% (Glifage xr) e 89,08% (Clavulin). "Em média, a diferença é de 51,10%, ou seja, o preço pode subir mais de 50% de um dia para o outro e não ser considerado abusivo, pois está abaixo do teto", constata Navarrete.
A maior variação foi encontrada nos genéricos, de 91,90% (Atenolol) a 384,54% (Omeprazol); e a menor, nos similares, de 28,89% (Venzer) a 32,20 (Aradois). Entre os genéricos, destaque para o Omeprazol, vendido por R$ 25,09, em média, mas com teto de R$ 121,57.
TEM SOLUÇÃO?
Para o Idec, o sistema regulatório de preços de medicamentos está esgotado e não consegue proteger o consumidor. "Ele precisa ser reformado urgentemente", declara Navarrete. Mas como resolver essa questão? "Precisamos de uma nova lei que altere as regras para o cálculo dos preços-teto de medicamentos no País e exija mais transparência da indústria farmacêutica", responde a responsável pela pesquisa. A boa notícia é que o projeto para essa lei já existe (PL nº 5.591/2021) e tramita no Senado. Navarrete destaca quatro pontos do PL, também presentes na campanha "Remédio a Preço Justo", do Idec.
1) O cálculo de preços deve levar em conta a realidade do Brasil (hoje, são usados países ricos como referência);
2) A Cmed precisa ser autorizada a reajustar o preço-teto para baixo quando a economia desacelera e os preços dos medicamentos caem no mercado, o que atualmente não é permitido de forma expressa na lei;
3) Os preços de medicamentos têm de refletir os custos reais das empresas que desenvolvem e produzem medicamentos. Para isso, elas precisam informar quanto gastaram com pesquisa e desenvolvimento;
4) É essencial haver participação social na Cmed, que hoje é composta apenas pelos Ministérios da Saúde, da Fazenda e do Comércio Exterior, além da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Para o farmacêutico Elton da Silva Chaves, assessor técnico do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), representante legal da gestão municipal na saúde, ter um órgão que regula os preços de medicamentos no Brasil foi uma conquista, mas ele concorda que a metodologia precisa ser revista e atualizada. "É preciso verificar se os países usados como referência para a determinação dos preços-teto estão adequados para o cenário atual, por exemplo. Além disso, o órgão precisa ser menos reativo e mais proativo, refletindo sobre outros formatos de governança e a criação de conselhos consultivos que dialoguem com os ministérios, melhorando sua atuação", ele sugere.
QUANTO VALE NOSSO CPF?
A pesquisa constatou que, para os medicamentos de referência, o desconto oferecido nas farmácias aos consumidores que fornecem o número de seu CPF é de cerca de 25%, em média R$ 82,91. "Embora sejamos contra informar dados pessoais na farmácia sem saber para que eles serão usados, entendemos que o desconto faz diferença para o consumidor. Hoje, o brasileiro não pode abrir mão de um desconto de 25%. É pouco factível acharmos que as pessoas vão negar o fornecimento do seu CPF", diz Navarrete.
O maior desconto encontrado foi para o antibiótico Clavulin: R$ 100,95 (economia de quase 50%). Para os medicamentos similares não conseguimos reduções significativas, e não conseguimos avaliar os genéricos porque nem todas as farmácias tinham os medicamentos analisados.
A pergunta que fica é: "por que nossos dados pessoais valem tanto?" Quem responde é Souza, que fez seu mestrado sobre a compra e venda de dados pessoais no setor da saúde: "Essas informações são preciosas para as estratégias de marketing das empresas, podendo render frutos muito mais valiosos do que os R$ 82, que a farmácia perde com o desconto". Por outro lado, para o consumidor, pode ser perigoso. "Em caso de vazamento ou de acesso irregular a essa informação, pessoas mal-intencionadas podem gerar enormes prejuízos financeiros e emocionais ao cidadão, realizando compras de produtos, solicitando cartão de crédito, dando entrada em financiamentos etc.", ela alerta. Além disso, quando realizou sua pesquisa de mestrado, entre 2016 e 2018, ela detectou que havia uma troca de informações, baseadas no registro de CPFs fornecidos no momento da compra, entre farmácias, seguradoras e operadoras de planos de saúde e empresas de vários setores. "Esses dados, se utilizados de maneira equivocada, podem gerar processos discriminatórios, como restrições na contratação de planos de saúde", conclui Souza.
Saiba mais
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