Sistema Único de Mobilidade
Organizações e pesquisadores constroem Sistema Único de Mobilidade para enfrentar a crise no transporte público brasileiro
Tarifa alta, corte de linhas e baixa qualidade. O modelo de transporte público brasileiro vive, há anos, em meio a um círculo vicioso: aumenta-se o preço da passagem, perde-se usuários e, por consequência, precariza-se o serviço. Preocupados com essa situação, 145 organizações, movimentos sociais e pesquisadores se uniram para elaborar a proposta de um Sistema Único de Mobilidade (SUM).
O SUM funcionaria nos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), ou seja, um sistema nacional, integrado, que pode ser gratuito e que irá garantir o acesso aos espaços das cidades, hoje impossibilitado principalmente pelo valor da tarifa. O objetivo é trazer soluções para combater as desigualdades e a crise climática.
"A Constituição Federal define, desde 2015, que é dever do Estado garantir uma mobilidade de qualidade, universal e contínua. Contudo, a forma como o sistema é gerido e financiado hoje nos municípios não permite que esses princípios sejam assegurados. O SUM muda essa visão precarizada e conformista e traz uma ideia de integração tanto dos poderes quanto da população", afirma Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade Urbana do Idec.
A proposta do SUM surge em um momento em que o Governo Federal discute temas relacionados à mobilidade por meio do Fórum Consultivo de Mobilidade Urbana. Desde 2021, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) vem debatendo formas de aprimorar o setor junto ao Ministério da Economia; nove entidades de classe de dirigentes públicos (estaduais e municipais), empresariais e de trabalhadores do setor de transportes; e o Idec, único representante da sociedade civil. Como resultado, o Governo pretende apresentar, em novembro, um projeto de lei com um novo marco regulatório para o transporte público urbano no Brasil.
A ideia de criar um sistema único faz contraponto ao Projeto de Lei (PL) nº 3.278/2021, de autoria do ex-senador e ministro do Tribunal de Contas da União Antonio Anastasia, que está em tramitação no Senado. Para especialistas no tema, o projeto agrada apenas aos donos de empresas de ônibus ao focar no equilíbrio financeiro das companhias, com repasses de dinheiro público, sem detalhar propostas de transparência e participação social.
MODELO EM CRISE
"O transporte coletivo no Brasil vive em crise", diz Paique Santarém, ativista do Movimento Passe Livre (MPL). Ele explica que desde a década de 1990 há uma queda anual no volume de passageiros. Contudo, a pandemia de Covid-19 agravou a situação e aprofundou as desigualdades socioeconômicas.
Especialistas consultados pela reportagem enxergam dois principais problemas ligados ao modelo de mobilidade atual. O primeiro é em relação ao financiamento. Hoje, grande parte do custeio do transporte coletivo vem por meio do pagamento da tarifa para utilizá-lo. Se o número de passageiros diminui, aumenta-se o valor da passagem para garantir a manutenção do sistema e os lucros das empresas concessionárias. Outras estratégias para ampliar os ganhos é a redução de viagens, o corte de linhas e a demissão de funcionários, o que precariza ainda mais o serviço. Quem pode pagar opta por utilizar, cada vez mais, carros de aplicativos, particulares ou motos. Quem não pode é excluído do sistema e, como consequência, fica impedido de ter acesso a direitos básicos, como saúde e educação, e aos espaços da cidade.
O segundo problema é a gestão. "Hoje, fica a cargo dos municípios definir como serão os modelos de contratação, as fontes de receitas e as tarifas. É cada um por si", informa Calabria. Isso impede que haja um controle público do sistema e até transparência sobre os lucros e custos das empresas operadoras. "A população precisa entender que o transporte não é um serviço, mas um direito. Então, ele tem de ser tratado como política pública e visto pelas pessoas e pelos governantes dessa forma. Precisamos nos mobilizar para garantir um transporte melhor, com emissões limpas e tarifa zero", argumenta Cleo Manhas, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
FINANCIAMENTO PÚBLICO E PARTICIPAÇÃO POPULAR
Desde 2017, quando o SUM foi idealizado pelo Instituto Movimento pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade, as organizações sociais e os pesquisadores vêm debatendo a melhor forma de se organizar o transporte público brasileiro. Há três diretrizes orientadoras que sintetizam o sistema. A primeira é a participação social, hoje rejeitada pelos setores do transporte. "A ideia de que a população não consegue gerir o transporte é uma falácia que impede a participação dos cidadãos no sistema", declara Santarém, para quem a construção coletiva de políticas públicas de mobilidade é essencial, pois permite que as necessidades da sociedade sejam ouvidas e solucionadas.
A segunda diretriz tem relação com a participação das três esferas de governo. Em vez de ficar tudo sob a responsabilidade dos municípios, os governos estaduais e a União passariam a ter um papel mais ativo na mobilidade urbana, contribuindo com a capacitação técnica, o envio de recursos, a compra de frotas novas e as obras de infraestrutura.
Por último, está a forma de financiamento do sistema. Manhas explica que há diferentes formas de custeio que poderiam garantir, inclusive, a gratuidade do serviço. Dentre elas está a reforma tributária e a criação de taxas municipais. Um estudo do Inesc realizado em 2019 concluiu que o transporte gratuito e universal custaria R$ 70,8 bilhões por ano, o equivalente a 1% do PIB. "Apesar de todas as diretrizes se complementarem, a não tarifação do sistema é uma das mais importantes, principalmente por ser o Brasil um país tão desigual", ela comenta.
AMPLIAÇÃO DOS DIREITOS
Em um manifesto lançado no final de setembro, o grupo apoiador do SUM afirmou que com a crise generalizada, são necessárias medidas urgentes para ampliar o serviço de transporte, além de mudar a forma como enxergamos a mobilidade urbana, a fim de combater as mudanças climáticas, melhorar a qualidade de vida das pessoas e reduzir as desigualdades. No documento, as entidades elencaram cinco princípios fundamentais para a construção do Sistema Único de Mobilidade.
1) Equidade
O sistema precisa ser um instrumento de combate às desigualdades, à violência e às exclusões territorial, social, de gênero e racial, especialmente para as pessoas que são impedidas de se locomoverem pela cidade. Ou seja, a mobilidade não pode ser um entrave para que as pessoas estudem em escolas e universidades boas ou fazer com que percam oportunidades de emprego por conta da distância e da dificuldade de acesso.
2) Universalidade
O SUM precisa garantir o acesso das pessoas a todos os espaços e oportunidades que a cidade oferece. "Os prefeitos não dão atenção à pauta do deslocamento, porque entendem que as pessoas se viram na hora de se deslocar. Porém, o sistema tem de abarcar a todos, dando opções para a população se locomover", enfatiza o coordenador do programa de Mobilidade Urbana do Idec. As linhas de ônibus, trem e metrô precisam atender às necessidades de toda a população, inclusive de quem mora em áreas periféricas, e ter horários expandidos, garantindo que todos os cidadãos consigam ir a qualquer lugar a qualquer hora.
3) Acessibilidade
O serviço de transporte deve ser visto como um meio de inclusão social, mas também de garantia ao acesso de pessoas com deficiência, baixa mobilidade ou restrição de mobilidade. A mobilidade é garantida quando todas as frotas de ônibus e estações de metrô podem ser acessadas por toda a população.
4) Integralidade
O SUM precisa garantir a integração completa dos meios de transporte. Ou seja, o acesso aos ônibus, metrôs e trens deve ser facilitado tanto economicamente quanto física e operacionalmente, sem restrição de horário. Quanto mais integrado é o sistema, mais fácil as pessoas chegam aos lugares e menos precisam de carro para se locomover.
5) Sustentabilidade
O SUM precisa ser um meio de combate à crise climática e de melhoria da qualidade do ar. Somente com um sistema fortemente estruturado e planejado é possível realizar as trocas das frotas existentes por veículos mais sustentáveis e que emitam menos gases do efeito estufa, ampliar a oferta de transporte coletivo, incentivar e melhorar as condições para caminhar e pedalar, além de aperfeiçoar o planejamento urbano para reduzir as desigualdades regionais.
Saiba mais
Veja a proposta do SUM em: https://bit.ly/3eRZ9Sy