Cadê meu remédio!
Especialistas discutem as razões e as possíveis soluções para o problema do desabastecimento de medicamentos no Brasil. Para o Idec, é preciso fortalecer a atuação do Estado e os laboratórios públicos do SUS
"A falta de medicamentos afeta diretamente meu trabalho e dos demais profissionais da unidade. A gente vê um desgaste muito grande, porque o usuário recebe um diagnóstico, uma farmacoterapia é indicada, mas o remédio não está disponível. Muitas vezes, hipertensos não conseguem estabilizar a pressão, diabéticos não conseguem estabilizar a glicose, crianças não conseguem sair do seu quadro alérgico". O depoimento é de Júlia Machado*, farmacêutica e funcionária do Sistema Único de Saúde (SUS) no Rio de Janeiro (RJ) e resume o drama cotidiano vivido desde o começo do ano por milhares de usuários e trabalhadores devido ao desabastecimento de medicamentos nas unidades do SUS e de hospitais da rede privada, bem como em farmácias de todo o País.
Um problema que ganhou contornos dramáticos em meio à crise sanitária provocada pela pandemia de Covid-19. Tanto que o lockdown adotado como forma de conter a propagação do novo coronavírus na China e na Índia, grandes exportadores de medicamentos para o Brasil, foi uma das principais justificativas para o problema apresentada pelo Ministério da Saúde, além da escassez de matérias-primas e a interrupção de fluxos de comércio devido à guerra na Ucrânia. Mas para os especialistas ouvidos para esta reportagem, também colaboram para o quadro problemas relacionados à má-gestão dos processos de compra, em grande parte realizados de forma centralizada pelo Governo Federal, bem como a ausência de uma política industrial que fortaleça a produção nacional de medicamentos, especialmente pelo setor público, reduzindo, assim, a dependência externa do setor.
O TAMANHO DO PROBLEMA
Um levantamento realizado em julho pela Confederação Nacional dos Municípios junto a 2.469 prefeituras apontou que mais de 80% delas relataram que sofrem com o desabastecimento de medicamentos incluídos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), que norteia as atividades do SUS. A lista inclui tanto remédios utilizados para o tratamento das principais condições de saúde, como antibióticos para gripe e analgésicos para dores, quanto aqueles voltados para doenças crônico-degenerativas, de custo mais alto. Da lista básica, os medicamentos mais em falta segundo os gestores são o analgésico Dipirona (injetável ou não), os antibióticos Amoxicilina e Azitromicina, o anti-inflamatório Prednisolona e o expectorante Ambroxol. Já dentre os componentes especializados, os mais citados foram os antibióticos Amicacina, Novamox, Deposteron, Noripurum, Adalimumabe, Leflunomida, Infliximabe e Tocilizumabe.
A Biored Brasil, organização da sociedade civil que vem monitorando o desabastecimento de medicamentos especializados também traz dados alarmantes. O último boletim, de junho, somou 2.735 relatos reportando a falta de 42 medicamentos nas farmácias de alto custo do País. Segundo o boletim, 40% dos pacientes contaram que ficaram 60 dias sem ser medicados. "Estamos falando de doenças crônicas, em que a falta de remédio significa a perda da capacidade laborativa e o encaminhamento para os auxílios-doença", destaca Priscila Torres, coordenadora de advocacy da Biored e integrante da Comissão Intersetorial de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica do Conselho Nacional de Saúde (CICTAF/CNS). "A falta de medicamento mata os doentes crônicos aos poucos, causando sequelas muitas vezes irreversíveis e que vão aumentar as despesas do SUS", afirma. Ela explica que se tratam ou de medicamentos cuja compra é realizada de forma centralizada pelo Ministério da Saúde ou cuja verba para aquisição é repassada pelo Governo Federal aos estados. "São medicamentos em falta por questões administrativas. O Ministério [da Saúde] não tem realizado processos de compra no tempo adequado, e isso tem recaído sobre os pacientes", protesta.
POR REMÉDIOS COM PREÇO JUSTO
Em 2021, o Idec lançou a campanha "Remédio a Preço Justo", com o objetivo de ampliar a mobilização pela urgente reformulação do atual sistema de regulação dos preços de medicamentos no País. Para o Idec, a metodologia utilizada pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed) é problemática, principalmente por se basear nos valores praticados em países mais ricos e que não possuem um sistema público como o SUS ou uma política de regulação de preços, como os Estados Unidos. Além disso, a metodologia atual proíbe que um medicamento tenha seu preço-teto reajustado para baixo. A revisão da lista de países-referência e a autorização do reajuste para baixo são dois dos principais pontos defendidos pela campanha, que também traz propostas que dialogam com a questão do desabastecimento de medicamentos. "Especialmente no eixo que propõe a ampliação da transparência do mercado farmacêutico e das informações disponíveis para os gestores, que poderiam facilitar a formulação de ações pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa, no caso de um desabastecimento, por exemplo", pontua Matheus Falcão, do Idec.
Machado, a farmacêutica do SUS cujo depoimento abre esta matéria, menciona que embora tenha se intensificado ao longo de 2022, o desabastecimento de medicamentos tem se tornado um problema crônico. "É muito difícil termos 100% da nossa lista padrão disponível. Algumas faltas são pontuais, como de matérias-primas. Mas isso é uma exceção. Geralmente é por corte de verbas ou pela má gestão da programação de compra daquele produto", avalia.
MEDIDAS ESTRUTURAIS URGENTES
O Ministério da Saúde – que não respondeu ao nosso pedido de entrevista até o fechamento desta edição – anunciou nos últimos meses medidas como a flexibilização das regras para importação de medicamentos por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e também a suspensão, até o fim de 2022, do teto de preços de alguns medicamentos em falta, que é estipulado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), vinculada à Anvisa.
Para Matheus Falcão, assessor do Programa de Saúde do Idec, as medidas anunciadas apontam para uma sobrevalorização, por parte do Governo, do que ele considera "uma parte pequena" do problema. "Pode acontecer de o teto de preços ser muito baixo e estar prejudicando a compra do medicamento, mas é a grande minoria. Pode acontecer que reduzir o imposto vai facilitar a compra? Pode, mas de forma muito pontual. Está muito longe de serem as medidas essenciais para resolver o problema", opina. "É uma tentativa oportunista de avançar uma agenda de desregulação de preços de medicamentos, como se a regulação fosse a origem do desabastecimento. Isso não corresponde à realidade", declara. Para ele, desde a década de 1990, a indústria farmacêutica brasileira vem se tornando muito dependente da importação dos chamados Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) – ingredientes fundamentais para produzir o efeito desejado em um medicamento ou vacina – principalmente da China e da Índia. "Se acontece um problema com o fornecedor, seja logístico, seja regulatório, temos um problema grave de abastecimento no País", aponta Falcão.
O assessor do Idec defende que a resolução passa pela implementação de medidas de caráter estrutural. Ele cobra mais atuação do Estado no planejamento de uma política industrial e de inovação tecnológica que ajude a capacitar a indústria brasileira para a fabricação de produtos de alta tecnologia voltados aos interesses da saúde pública. "Uma ferramenta que o Brasil tem, mas que é pouco explorada, são os laboratórios públicos, como o Instituto Butantã e os dois da Fiocruz: Bio-Manguinhos e Farmanguinhos, que são bastante capacitados", destaca.
O QUE OS CONSUMIDORES PODEM FAZER?
Por se tratar de um problema estrutural e de alta complexidade, os consumidores acabam tendo pouca oportunidade de cobrar seus direitos, mas Matheus Falcão, do Idec, destaca algumas possibilidades. "Uma empresa que vai parar de produzir um medicamento precisa notificar a Anvisa, e essa informação precisa estar disponível para os cidadãos. Se um consumidor não conseguir encontrar o remédio que precisa em uma farmácia, ele pode acionar a agência reguladora, que tem um número gratuito para informações, e também denunciar o desabastecimento", informa.
No caso dos medicamentos de alto custo fornecidos pelo SUS, uma alternativa é acionar a ouvidoria. "Se o Ministério não recebe relatos de falta de medicamentos, é como se o problema não existisse", indica Priscila Torres, do CNS. Outra opção é a via judicial, principalmente através das Defensorias Públicas. "Se o paciente não tem condições de comprar um remédio e está sem acesso a esse direito através do SUS, ele pode contar com a Justiça", orienta.
Falcão cita ainda dois exemplos de políticas que deveriam ser mais utilizadas pelo Estado. A chamada encomenda tecnológica, quando o Estado faz um acordo com um laboratório público para que ele desenvolva um novo medicamento ou se capacite na produção de novas drogas; e os contratos plurianuais, que funcionam bem atualmente na produção de vacinas, mas poderiam ser utilizados também para antibióticos. "É um contrato assegurando que o laboratório público vai fornecer para o Ministério da Saúde por um determinado período. Isso cria uma sinergia entre o Ministério, que compra muito antibiótico, e o laboratório público, que vai ter um comprador garantido", explica Falcão. E finaliza: "Saúde é direito de todos e dever do Estado e, de acordo com a Constituição Federal, investir em inovação e produção local faz parte desse direito".
Saiba mais
Campanha "Remédio a Preço Justo": https://remedioaprecojusto.org.br/