Idec - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
Publicado em Idec - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (https://idec.org.br)

Início > Abastecimento no Brasil

  • Serviços essenciais

Abastecimento no Brasil

Mais da metade dos brasileiros ficou sem água no último ano, revela estudo do iCS

Pesquisa aponta que mais da metade dos brasileiros ficou sem água no último ano, revelando que o acesso a esse recurso essencial não é garantido, principalmente à população mais pobre

É um domingo de fevereiro e a manicure Wilma Gonçalves, de João Pessoa (PB), está de folga. Ela quer aproveitar o dia para fazer serviços domésticos, mas algumas tarefas são inviáveis porque, mais uma vez, não tem água em sua casa. "Falta toda semana, normalmente no domingo. Então a gente já se prepara. Eu sempre reservo dois baldes de 50 litros, por precaução", conta. "Já aconteceu várias vezes de chegar em casa do trabalho, durante a semana, e não ter água na torneira. Isso é muito constrangedor", lamenta.

A situação vivida pela manicure talvez seja distante da realidade de muitos leitores, mas é comum a boa parte da população brasileira. Pesquisa encomendada pelo Instituto Clima e Sociedade (iCS) revela que, com maior ou menor frequência, 52% dos brasileiros ficaram sem água nos 12 meses anteriores ao levantamento, realizado em novembro de 2021. A escassez é mais acentuada na região Nordeste, onde 27% dos entrevistados dizem ter ficado sem água "muitas vezes" nesse período, ante a 18% no geral. E as capitais são os locais onde falta água de maneira mais intensa: 30% ficou sem "muitas vezes" no último ano.

Para Anton Schwyter, coordenador do programa de Energia e Sustentabilidade do Idec, a pesquisa mostra um cenário de precariedade no abastecimento de água no País. "É um absurdo que mais da metade dos entrevistados tenha tido problemas no abastecimento nos 12 meses anteriores à pesquisa, uma vez que o acesso à água tratada é fundamental para que se tenha acesso aos demais direitos, como alimentação de qualidade, saúde e educação", ele critica.

O especialista também considera muito preocupante o pessimismo dos entrevistados em relação ao tema: 81% demonstrou medo de ficar sem água em 2022. As mulheres (62%), os mais pobres (59%) e os pretos/pardos (59%) são os que mais temem ficar sem acesso ao recurso, que é um direito humano fundamental, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU). "É urgente, portanto, que o tema receba a devida atenção dos governantes para que consigamos reverter essa situação de insegurança hídrica", defende Schwyter.

CRISE HÍDRICA E MUDANÇAS CLIMÁTICAS

A pesquisa também aponta que 79% dos entrevistados já ouviram falar de crise hídrica – que pode ser definida como falta ou insuficiência de água doce para uso humano – e que praticamente todos declaram ter alguma preocupação com o tema (78% se preocupa muito, e 14%, pouco).

Além disso, a grande maioria (88%) reconhece o impacto das mudanças climáticas no regime de chuvas, e mais da metade (56%) considera que, no futuro, a situação tende a piorar. Schwyter pontua que, efetivamente, o clima está mudando. "Em locais onde chovia pouco está chovendo mais ou parou de chover. Períodos secos ficam mais longos e, quando chove, chove menos. São muitas variáveis, e os climatologistas e meteorologistas ainda estão identificando seus impactos ao longo de toda a cadeia do meio ambiente", diz.

COMO FOI A PESQUISA

A pesquisa foi realizada pela Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec), sob encomenda do Instituto Clima e Sociedade (iCS). As entrevistas foram feitas presencialmente, com 2.002 pessoas com 16 anos ou mais. As visitas aos domicílios de todas as regiões do país foram feitas entre 11 e 17 de novembro de 2021. A margem de erro é de dois pontos percentuais.

 

Esse cenário traz efeitos preocupantes para o abastecimento de água. No entanto, há consenso entre especialistas de que, além dos fatores climáticos, a crise tem muito a ver com falta de planejamento e gestão dos recursos hídricos. Em muitos casos, a regra básica de guardar quando estiver sobrando (ou seja, nos períodos de chuva) para os momentos de escassez não é seguida. Por isso, embora muitas regiões tenham temporais no verão – com alagamentos e enchentes – esses mesmos locais podem sofrer com falta d'água meses depois.

 

O pesquisador do Idec explica que, no setor de saneamento, as responsabilidades de gestão e regulação são divididas entre os governos federal, estadual e municipal, e que nunca houve um grau satisfatório de integração e coordenação entre as três esferas. "Ainda temos cerca de 100 milhões de brasileiros sem coleta e tratamento de esgoto e cerca de 35 milhões ainda não têm acesso à água tratada. E existem enormes desigualdades regionais. O Norte é a região que tem mais água disponível e a menor quantidade de serviços de saneamento", pontua. Outro problema muito grave que persiste é o das perdas de água nos serviços de distribuição. Novamente, a região Norte destaca-se entre os exemplos ruins: há cidades em que até 70% da água tratada se perde no caminho entre os reservatórios e a casa dos consumidores.

SECA POLÍTICA

Se em João Pessoa o cotidiano de Gonçalves já é bastante impactado pela falta de água, as experiências foram ainda piores no interior do estado, em sua cidade-natal, Cacimba de Dentro, onde morou de 2019 a 2021 para cuidar de sua mãe idosa. A cidade paraibana de 16 mil habitantes e clima semiárido sofre com a escassez hídrica de forma crônica. Ela conta que, no início de sua estada, o abastecimento público ocorria a cada 15 dias, e os moradores enchiam as cisternas, baldes e o que mais pudessem para utilizar nas duas semanas seguintes. Com o tempo, porém, a água passou a não chegar a certas áreas da cidade, até que a distribuição foi interrompida de vez. "Tem mais de um ano que não chega água lá. Quem tem condições compra água de caminhão-pipa, mas não sabemos a procedência. Uma vez paguei R$ 250 por 8 mil litros, para encher minhas cisternas, e a água era 'podre'. É muito sofrimento", relata a manicure.

 

O cenário de seca em certas regiões do Nordeste é cristalizado no imaginário brasileiro. No entanto, Cícero Félix, membro da coordenação da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), ressalta que o problema não é a seca. "Há períodos de estiagem e de chuvas. Conhecendo o ciclo das águas da região, temos apresentado várias possibilidades no campo pedagógico e tecnológico para resolver os problemas e ter água em quantidade e qualidade suficientes. O problema é a falta de políticas públicas que considerem as especificidades dessa região e de orçamento para a implementação dessas políticas de convivência com o semiárido", dispara.

Uma das medidas mais importantes para a região, o Programa Cisternas, desenvolvido desde 2003 pelo Governo Federal, vem sofrendo cortes sistemáticos nos últimos anos. A iniciativa é voltada a famílias rurais de baixa renda atingidas pela seca, sendo o semiárido a região prioritária, com a construção de reservatórios para captação de chuva e sistemas de distribuição dessa água. De acordo com dados da ASA, ao longo de seus 18 anos, o programa implementou mais de um milhão de cisternas para consumo humano e cerca de 200 mil para a produção de alimentos no período de estiagem. Porém, segundo Félix, a iniciativa já perdeu cerca de 90% do seu orçamento. E a demanda ainda é muito grande. "Estimamos que cerca de 350 mil famílias ainda precisam de cisternas para consumo humano e 800 mil para a produção de alimentos. São milhões de pessoas que, sem acesso à água, estão passando fome. Isso é um crime", declara.

Félix explica que, no caso das áreas urbanas – que não são o público do Projeto Cisternas –, o abastecimento deveria estar contemplado no Plano Nacional de Saneamento Básico. Nas cidades do semiárido, a cobertura desses serviços é baixa, e o receio é que a situação piore com a privatização do setor. "Muitos estados estão em processo de privatização das companhias de água e não há interesse das empresas privadas de fazer cobertura nessas áreas [pequenas cidades e bairros periféricos], porque é um investimento considerado alto para pouco retorno. A tendência é que, o processo de privatização do saneamento avançando, elas fiquem mais excluídas ainda", alerta.

CRISE HÍDRICA + CRISE ENERGÉTICA

Como no Brasil grande parte da geração de energia provém de hidrelétricas (cerca de 60%), a crise hídrica e a energética andam de mãos dadas. "Nossas hidrelétricas são instaladas em sequência, de forma que a água, após passar pela primeira usina, pode produzir energia na usina seguinte e assim sucessivamente. É um sistema inteligente que otimiza os recursos do rio. O problema é que as secas estão ocorrendo em toda a bacia, fazendo com que o volume de água seja reduzido em todas as usinas de determinada região", expli- ca Schwyter.

Com o baixo nível dos reservatórios das hidrelétricas, o Governo Federal tem acionado cada vez mais as termelétricas para socorrer a produção de energia e evitar o risco de apa- gão. Só que as térmicas tornam a geração mais "suja", porque emitem muitos gases de efeito estufa, além de serem muito mais caras.

A pesquisa encomendada pelo iCS também avaliou a percepção dos brasileiros sobre a crise energética e constatou que, cada vez mais, o custo da energia elétrica tem se tornado impeditiva. O levantamento mostra que um quarto da população (25%) teve sua renda reduzida em função dos crescentes aumentos na conta de luz; e cerca de 22% deixou de pagar a fatura de energia para comprar alimentos.

Do ponto de vista ambiental, a lógica também é insustentável "[Com as térmicas] contribui-se cada vez mais com emissões, criando mais condições para mudanças climáticas, que, por sua vez, são a principal origem da crise hídrica", argumenta Schwyter, do Idec.


URL de origem:https://idec.org.br/materia/abastecimento-no-brasil