Rotulagem nutricional
A partir de outubro, um selo na parte da frente do rótulo vai alertar se o alimento tem excesso de sódio, gordura saturada ou açúcar adicionado. Veja o que muda e relembre a trajetória desta importante conquista para os consumidores
"O golpe tá aí, cai quem quer", diz o trecho de uma música popular que virou febre nas redes sociais e piada útil para diversos contextos. Mas brincadeiras à parte, a verdade é que é bem fácil cair em algumas ciladas do dia a dia. No supermercado, por exemplo, ainda é muito difícil diferenciar se um produto é saudável ou não. A partir de outubro deste ano, finalmente, isso vai melhorar: alimentos e bebidas que tenham muito sódio, gordura saturada ou açúcar adicionado vão ter um selo na parte da frente da embalagem alertando que contêm quantidades altas desses nutrientes. Esse selo vai seguir um padrão: um retângulo com o símbolo de uma lupa, em preto e branco, e a inscrição "alto em" seguido de um (ou mais) desses três nutrientes críticos que, em excesso, são comprovadamente associados ao desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, como pressão alta, diabetes e problemas do coração. Assim, bater o olho na embalagem – toda feita para atrair a atenção do consumidor – e já ver esse alerta é fundamental para não cair em "golpes".
O modelo de rotulagem nutricional frontal foi definido e aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em outubro de 2020, após um longo período de debates com especialistas, em uma consulta pública que teve mais de 23 mil participações e de muita pressão da sociedade civil organizada. O Idec, particularmente, teve papel central, junto a outros parceiros, no processo de discussão e aprovação desta norma tão importante para garantir o direito à informação aos consumidores e contribuir para escolhas alimentares mais saudáveis.
VAI MELHORAR
Entre os pontos importantes da norma para evitar confusão sobre a qualidade nutricional dos produtos – intencionalmente provocada, diga-se – é que ela proíbe fazer alegações positivas sobre os mesmos nutrientes que são alvo da lupa. Isso significa que se o produto tem alerta "alto em gordura saturada", não pode estampar na embalagem "gorduras totais reduzidas" ou "zero em colesterol", por exemplo. Além disso, a lupa precisa estar na metade superior do rótulo, não pode ficar escondida num cantinho, nem competir com informações mais favoráveis ao interesse do fabricante.
DICA DE OURO
A lupa só vai alertar excesso de três nutrientes (açúcar adicionado, sódio e gorduras totais). Por isso, olhe a lista de ingredientes para conferir tudo o que o produto contém. A lista apresenta os ingredientes em ordem decrescente, exceto aditivos, que sempre aparecem por último.
Outro aspecto positivo é que a Anvisa definiu critérios bem claros sobre os alimentos que devem apresentar o selo de alerta, com uma lista dos que ficam isentos e dos que podem ou não ter a lupa. A nutricionista e pesquisadora do Idec Laís Amaral explica que não terão lupa em nenhuma hipótese os alimentos in natura e minimamente processados (como grãos, frutas, legumes e verduras), que devem ser a base da nossa alimentação, assim como ingredientes culinários processados, como sal, óleo de cozinha etc. Afinal, não faz sentido informar "alto em açúcar" num pacote de açúcar.
Só que algumas categorias de alimentos, que em tese não seriam sujeitas à lupa, podem vir a ser, a depender da forma como são comercializadas. As carnes são um bom exemplo. "Em geral, a carne é um alimento in natura ou minimamente processado e, portanto, saudável. Mas caso ela seja adicionada de sal, como uma carne pré-temperada, ela passa a ser elegível ao selo", informa Amaral. No caso de adição de sal, açúcar ou gordura, o produto passa para a segunda fase de avaliação prevista na normativa, que analisa se a quantidade do nutriente crítico fica dentro dos limites estabelecidos ou se é excessiva.
BRECHAS
Apesar dos avanços importantíssimos trazidos pela rotulagem frontal, a norma aprovada pela Anvisa deixou a desejar. Uma das principais queixas do Idec é que os critérios que definem se a quantidade de nutrientes críticos é excessiva – e, portanto, o produto deve receber a lupa – não são tão rigorosos. "Se compararmos os pontos de corte estabelecidos pela Anvisa com os do modelo de perfil de nutrientes da Organização Panamericana da Saúde (Opas), constatamos que há grandes chances de produtos não saudáveis não receberem o selo", afirma a nutricionista do Idec.
Amaral também ressalta que a regra brasileira considera apenas três nutrientes críticos para destacar na rotulagem frontal, o que não significa que um produto sem lupa não tenha outros ingredientes problemáticos. Pelo modelo da Opas, também são considerados críticos gorduras totais, gordura trans e adoçantes. Os adoçantes, aliás, são um exemplo concreto de brecha na regulamentação já explorada pelos fabricantes. "No Chile, onde a rotulagem frontal também não alerta a presença desses aditivos, para não ficar com o selo 'alto em açúcar', as empresas reformularam os produtos e substituíram açúcar por adoçante, inclusive em produtos com apelo infantil", conta Amaral, completando: "O consumo excessivo de adoçantes é associado a riscos à saúde, principalmente de crianças e gestantes.
Isso quer dizer que, a partir de outubro, mesmo que o produto não apresente nenhum selo, não dá para garantir que ele é saudável. Por isso, além de observar se há lupa na parte da frente do rótulo, é importante olhar a lista de ingredientes, na parte de trás. "A lista é um dos aspectos mais importantes da rotulagem. Ela apresenta os ingredientes na ordem decrescente de quantidade, com exceção dos aditivos alimentares, que estão sempre por último. Assim, a dica é evitar os que têm sal, gorduras e açúcar entre os primeiros itens, e evitar os ultraprocessados de maneira geral, que são os que contêm aditivos e outros ingredientes com nomes pouco familiares", recomenda a nutricionista.
Outro ponto a ser aprimorado na norma diz respeito ao modelo escolhido pela Anvisa para sinalizar a rotulagem frontal. Por enquanto, o Brasil será o único país do mundo a adotar a lupa. Outros países da América Latina, onde a discussão sobre rotulagem frontal de advertência está bastante avançada, utilizam o octógono. "Faltam estudos que comprovem a superioridade da lupa frente a outros modelos de rotulagem largamente testados. O Canadá chegou a discutir a lupa, mas ela foi descartada depois que um estudo de uma universidade local apontou que esse modelo foi o que se saiu pior entre todos os avaliados", comenta Amaral.
NÓS QUE LUTAMOS
Atuamos de forma intensa nos processos de discussão que culminaram na aprovação da rotulagem frontal no Brasil. Tudo começou em 2014, quando participamos da criação do Grupo de Trabalho (GT) sobre Rotulagem Nutricional da Anvisa, proposto para identificar problemas e propor melhorias nas regras de rotulagem nutricional dos alimentos embalados.
Após a conclusão das discussões no GT, desenvolvemos, junto com pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR), um modelo de rotulagem frontal de advertência, em formato de triângulos, com base em diversos estudos científicos realizados em parceria com pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/SP) e experiências internacionais. O modelo foi apresentado à Anvisa em 2017. Na mesma época, criamos a campanha "Você tem o direito de saber o que come", para informar os consumidores e pressionar a agência a atualizar as regras de rotulagem.
Em 2019, a agência reguladora abriu, enfim, o processo de consulta pública sobre rotulagem nutricional. Além de contribuir como especialista, estimulamos a participação dos consumidores, orientando-os, passo a passo, como participar. Deu certo, pois a consulta recebeu cerca de 23 mil contribuições.
Agora, neste meio tempo entre a aprovação e a implementação da norma, seguimos em nossa missão de informar os consumidores. Entre as ações, lançamos o site De Olho nos Rótulos (bit.ly/3GRHLGK), que reúne informações sobre rotulagem nutricional e tem uma ferramenta de contagem regressiva para a implementação da nova norma. Dentro do site, a página Raio-x dos rótulos se propõe a traduzir o rótulo para o consumidor, analisando produtos específicos e considerando as marcas mais famosas, os que têm apelo para crianças etc.
Além disso, continuamos acompanhando as discussões técnicas sobre o tema nos âmbitos nacional e internacional. "Temos avançado, junto com parceiros, em estudos sobre a norma", informa Amaral. Luta que segue.