Bactérias super-resistentes
Relatório que está sendo elaborado pelo Idec, em parceria com a Proteção Animal Mundial, trata da resistência antimicrobiana, que ameaça desencadear uma catástrofe para a saúde humana em escala global
Você já ouviu falar em resistência antimicrobiana? Talvez não, mas é provável que já tenha ouvido falar das superbactérias, que de vez em quando aparecem nas manchetes de jornais, principalmente quando há um surto de uma infecção causada por uma bactéria resistente a antibióticos, em geral em ambientes hospitalares, como Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e centros cirúrgicos.
É justamente pelo risco de que esses surtos se tornem mais e mais frequentes que a resistência antimicrobiana vem ganhando centralidade nos debates sobre saúde pública em nível global. Esse é o nome de um problema complexo, que ameaça se tornar uma crise sanitária de grande escala em um futuro próximo. Estimativas alertam que as infecções hospitalares por bactérias resistentes a antibióticos sejam responsáveis por 700 mil mortes por ano em todo o mundo, e projeções indicam que esse número pode chegar a 10 milhões até 2050 caso as atuais tendências não sejam revertidas.
Com o objetivo de apresentar o que é a resistência antimicrobiana, explicar como ela pode nos afetar e apontar caminhos para evitar que esse cenário de crise se concretize, o Idec, em parceria com a organização Proteção Animal Mundial (WAP, na sigla em Inglês), está preparando um relatório sobre o tema. "A ideia é apresentar o problema e sua gravidade, propor recomendações e introduzir a necessidade de que ele seja abordado de forma integrada, uma vez que apresenta várias facetas", declara Matheus Falcão, analista do programa de Saúde do Idec, ressaltando que essa é uma pauta com a qual o Instituto vem trabalhando, de diferentes formas, há mais de 20 anos.
DO QUE SE TRATA?
Mas o que é a resistência antimicrobiana? O pesquisador Rafael Almeida, doutorando da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e membro da organização não governamental Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais (UAEM) explica: "É a capacidade de qualquer microrganismo, seja um vírus, uma bactéria ou um parasita, de se adaptar quando é exposto a um medicamento, seja um antibiótico, um antiviral ou um antiparasitário. Esses microrganismos têm essa capacidade intrínseca de adaptação e também são capazes de desenvolver novos mecanismos que permitem que eles se tornem resistentes a outros medicamentos ao longo dos anos. É um processo evolutivo". Segundo Almeida, embora se refira a todos os microrganismos, incluindo vírus e fungos, o termo é mais comumente utilizado para fazer referência à resistência adquirida por bactérias a determinados antibióticos. "Esse não é um problema novo, acontece desde o surgimento das bactérias, os primeiros seres vivos a habitarem o planeta. Mas isso vem se acelerando ao longo dos anos, com o uso exacerbado de antibióticos, tanto para o consumo humano como na agropecuária, em tratamentos, prevenção de doenças e promoção do crescimento dos animais", aponta o pesquisador. Esses são dois aspectos que o relatório deve abordar.
SAÚDE ÚNICA
Uma Saúde (ou Saúde Única) é uma abordagem de saúde pública colaborativa, multissetorial e transdisciplinar que reconhece que, para atingir o melhor nível possível de saúde e bem-estar, é necessário levar em consideração as relações entre as pessoas, os animais, as plantas e o meio ambiente. Grande parte das infecções recentes, inclusive a Covid-19, surgiu a partir do contato entre seres humanos e animais.
Essa perspectiva é colaborativa, pois parte da premissa de que todos os setores devem trabalhar juntos, cada qual com seu ponto de vista; multissetorial, pois reconhece a pluralidade de setores que devem ser envolvidos na resolução dos problemas; e transdisciplinar, pois move diferentes áreas do conhecimento para o enfrentamento dos desafios em saúde.
O chamado uso racional de medicamentos é uma perspectiva com a qual o Instituto vem trabalhando há algum tempo, segundo Falcão. "O Idec sempre defendeu que medicamentos sejam acessíveis e usados da forma certa. O que é sintetizado na frase 'acesso sem excesso', muito vista em campanhas internacionais", ele diz. E completa: esse consumo racional depende da conscientização das pessoas, mas também de uma regulação eficiente. Uma regulamentação que, por exemplo, proíba o marketing desse tipo de medicamentos ou que obrigue a retenção da receita de antimicrobianos.
Nesse sentido, uma das recomendações do relatório é avançar na implementação do Plano de Ação Nacional de Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos no Âmbito da Saúde Única (PANBR), lançado em 2018 e com vigência até 2022, em especial os objetivos relativos à promoção de estratégias de comunicação e educação em saúde a fim de aumentar o alerta sobre a resistência antimicrobiana para profissionais, gestores, sociedade e setor regulado.
ANTIBIÓTICOS NA AGROPECUÁRIA
Há mais de 50 anos trabalhando pela implementação de práticas éticas e sustentáveis na criação de animais para a indústria alimentícia, a organização Proteção Animal Mundial acrescenta ao documento sua expertise sobre o papel da agropecuária para a resistência antimicrobiana e a importância do uso responsável de antibióticos na produção animal, como medida essencial para enfrentar o problema. "Os antibióticos sempre foram utilizados para controlar infecções bacterianas que afetam a saúde e o bem-estar dos animais. Mas o que nos preocupa é que essa utilização vem sendo feita de maneira indiscriminada", alerta Daniel Cruz, coordenador de agricultura sustentável da entidade. "Há trabalhos científicos que estimam que atualmente 70% dos antibióticos produzidos mundialmente são utilizados na pecuária", ressalta.
Segundo Cruz, o uso desses medicamentos de forma preventiva e profilática e também como promotores do crescimento – principalmente na criação intensiva – é o principal problema. "Desmame precoce, produção de animais em grandes quantidades, mutilações, ausência de enriquecimento ambiental, tudo isso é compensado pelo produtor através do uso preventivo de antibióticos. A maioria dos animais que estão sendo medicados são saudáveis, ou seja, vão entrar em contato com esse antibiótico sem precisar", destaca o coordenador da WAP. Já o antibióticos promotores de crescimento permitem que os animais atinjam o peso ideal para o abate mais rapidamente. "São antibióticos de baixa absorção intestinal, utilizados em baixas dosagens e por longos períodos. O objetivo é modular a flora intestinal para aumentar a eficiência e conversão alimentar, e consequentemente o ganho de peso", explica Cruz. "Dessa forma, os produtores economizam tempo, aumentam sua produção e lucram mais", ele completa.
Muitos dos antibióticos utilizados como promotores de crescimento – e também de forma preventiva – são considerados importantes para a saúde humana. O uso indiscriminado desses antibióticos na pecuária preocupa, na medida em que dinamiza o surgimento de superbactérias resistentes aos antibióticos mais potentes que existem, como fluorquinolonas, cefalosporinas de 3ª e 4ª geração e colistina. Esta última, inclusive, é proibida como promotora de crescimento no Brasil desde 2018. No ano passado, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) proibiu o uso de tilosina, lincomicina e tiamulina para esse fim. "Temos visto um esforço do Governo, principalmente do Mapa, nos últimos anos, mas o Brasil está um pouco atrás nessa questão – a União Europeia, por exemplo, proíbe a utilização de antibióticos como promotores de crescimento desde 2006", compara Cruz. Ainda assim, não faltam exemplos recentes que ilustram os riscos para a saúde humana do uso indiscriminado de antibióticos na criação de animais. Em 2015, uma investigação conduzida pelo jornal britânico The Guardian identificou que vários supermercados do Reino Unido estavam vendendo carne de porco contaminada por uma cepa da superbactéria SARM (Staphylococcus aureus), resistente à meticilina. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a SARM - que se proliferou a partir de fazendas europeias de criação intensiva de porcos – seja 64% mais letal do que as bactérias da mesma espécie que não apresentam resistência aos antibióticos.INOVAÇÃO E PRODUÇÃO
A terceira linha de ação abordada pelo documento do Idec e da WAP diz respeito ao papel da indústria farmacêutica nesse cenário de crise sanitária causada pela resistência antimicrobiana. "Essa é uma pauta que o Idec vem trabalhando nos últimos anos: como melhorar a inovação para garantir acesso a certos medicamentos", conta Falcão. Segundo ele, em geral, as grandes transnacionais farmacêuticas não têm interesse em investir na pesquisa e no desenvolvimento de novos antibióticos, pois são medicamentos baratos que usamos por pouco tempo (e a ideia é usar cada vez menos, por causa da resistência antimicrobiana). "Então, compensa muito mais investir em um medicamento para câncer ou num medicamento de uso contínuo para uma doença crônica", ele constata.
No caso do Brasil, a dependência de antibióticos importados é outro aspecto do problema. "Existem pouquíssimas empresas no mundo que produzem penicilina desde a primeira fase e estão todas localizadas na China e na Índia. Isso gera uma situação muito delicada", aponta Falcão. Em 2016, problemas na cadeia de distribuição de penicilina geraram uma escassez do medicamento no Brasil, desencadeando um surto de sífilis congênita, que ainda persiste em algumas regiões. O risco é de que a escassez de penicilina no sistema de saúde obrigue profissionais de saúde a prescreverem antibióticos mais potentes do que o necessário, agravando o problema da resistência antimicrobiana. "É justamente por isso que nós defendemos que é fundamental uma política pública de inovação tecnológica que financie a pesquisa sobre esses medicamentos e também os produza. E como nossos laboratórios públicos têm um papel importante, eles precisam ser ampliados e capacitados para a produção nacional de antibióticos", defende o analista do programa de Saúde do Idec.