Lotação contraindicada
Ônibus e metrôs superlotados durante a pandemia colocam cidadãos brasileiros em risco. Entenda o que está por trás da lotação e as propostas do Idec para melhorar o transporte público brasileiro
Após mais de um ano de pandemia, todos nós sabemos (ou deveríamos saber) que não podemos aglomerar e que o isolamento social é fundamental para salvar vidas. Mas alguns brasileiros, por mais que queiram, não conseguem fugir das aglomerações. São pessoas que precisam trabalhar presencialmente – como os profissionais de saúde, funcionários de supermercados, farmácias e algumas indústrias – e que para chegar ao seu local de trabalho dependem de ônibus e metrô, que desde o início da pandemia, em março de 2020, estão mais lotados do que nunca. A faxineira Maria Ernestina Varão, de São Paulo, sabe bem o que é isso. Ela pega ônibus diariamente às seis e meia da manhã para chegar ao condomínio onde trabalha, na Zona Sul. "Eu moro do lado de uma garagem que está lotada. Enquanto isso, eu espero às vezes 40 minutos para pegar um ônibus lotado, tão cheio que não dá para se mexer", ela relata.
Mas como há superlotação se a recomendação é ficar em casa? É isso que explicaremos a seguir.
SUPERLOTAÇÃO NA PANDEMIA
Com a necessidade de isolamento social para conter a transmissão do novo coronavírus, o número de passageiros nos transportes coletivos caiu drasticamente em todo o Brasil – 80% nos primeiros meses da pandemia e 50% nos dias atuais, segundo dados da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU).
Por conta do modelo de contrato vigente – que remunera as empresas privadas que operam os serviços de transporte nos munícipios brasileiros por número de passageiros – a receita dessas concessionárias também despencou, já que menos pessoas significa menos dinheiro no caixa. Para reequilibrar suas contas e conter os gastos, elas reduziram excessivamente a frota em circulação, fazendo com que os poucos veículos nas ruas ficassem muito cheios. Isso porque ainda há muita gente cuja única forma de percorrer longas distâncias é o transporte coletivo. Segundo dados da pesquisa QualiÔnibus, feita pelo WRI Brasil em nove cidades brasileiras, 50% dos usuários do transporte coletivo dependem exclusivamente dele para seus deslocamentos. "É preciso oferecer um serviço de qualidade, com a implementação de mais faixas de ônibus; aumentar a velocidade das vias para que o tempo de deslocamento seja menor e os veículos consigam fazer mais viagens com menos gente; fomentar os meios de transporte ativos, como bicicleta, além de caminhada; e conectar essas opções com o transporte coletivo", sugere Cristina Albuquerque, gerente de mobilidade urbana do WRI Brasil.
A queda de receita levou algumas empresas a demitirem funcionários, a atrasarem salários e a suspenderem totalmente o serviço, levando os trabalhadores a entrar em greve e algumas prefeituras a assumir o transporte público. O Idec fez um levantamento das cidades onde isso aconteceu (veja quais são elas em https://bit.ly/2RMlbuf). "A situação é tão caótica que em algumas cidades pequenas os prefeitos colocaram ônibus escolares para rodar, porque os de linha estavam parados. E Teresina (PI), por exemplo, já presenciou seis greves de ônibus em 2021, sendo que uma delas deixou a população sem transporte por cerca de 20 dias", conta Rafael Calabria, coordenador do programa de Mobilidade Urbana do Idec.
A CAUSA DO PROBLEMA
A situação que enfrentamos hoje é consequência de décadas de contratos problemáticos. Eles determinam que empresas de transportes sejam remuneradas integralmente pela tarifa paga pelo usuário e não pelo custo que têm para gerenciar e operar o sistema de transporte. "Dessa forma, para aumentar o lucro, essas companhias reduzem a frota e colocam o maior número de pessoas nos veículos em circulação, além de aumentarem a tarifa com frequência", explica Calabria.
E qual seria a solução? Para Calabria, em médio e longo prazos seria as prefeituras reverem esses contratos com as empresas, passando a remunerá-las pelo custo do sistema. "São Paulo já mudou o contrato, e a nova regra deve começar a valer em breve. Campinas e Rio de Janeiro estão estudando a possibilidade", ele informa. E de onde viria o dinheiro para remunerar as empresas? "De fontes diversas. Além da tarifa, poderia haver repasse de verba pelos estados e pelo Governo Federal; verba proveniente de publicidade no interior dos veículos, estações, pontos de ônibus e terminais; dinheiro arrecadado com impostos sobre combustíveis de automóveis individuais etc.", ele responde. E completa: "Países como EUA, França e Alemanha têm um fundo de transportes para bancar o serviço junto com a tarifa. E na pandemia, os governos ainda deram auxílio emergencial para o setor de transportes". Albuquerque concorda: "É urgente a discussão sobre novos recursos que financiem o transporte coletivo. Cobrar pelos efeitos negativos causados pelo uso de veículos privados é uma açāo praticada no exterior e em algumas poucas cidades brasileiras, como Sāo José dos Campos (SP) e Rio de Janeiro (RJ), que pode ser mais difundida para viabilizar um transporte coletivo sustentável e de qualidade". Contudo, segundo a gerente de mobilidade urbana do WRI, esse tipo de cobrança exige coragem política e esclarecimento para que a população entenda que o carro é amplamente subsidiado embora pouco sustentável. "A questão do estacionamento público é sempre bastante elucidativa. Há um investimento do poder público para pavimentação, sinalização e manutenção das vias para a circulação de carros, ônibus, bicicletas e pedestres. Quando dedicamos uma faixa para o estacionamento de carros, ela deixa de servir ao coletivo e vira um benefício individual. E o pior, muitas vezes esse estacionamento rotativo é gratuito ou custa um preço módico quando comparado à tarifa do transporte coletivo ou de estacionamentos privados da mesma região", exemplifica Albuquerque.
CHEGA DE APERTO!
Neste momento, é urgente acabar com a lotação dos veículos e, assim, salvar vidas. Para isso, o Governo Federal precisa repassar um auxílio emergencial para as prefeituras manterem o transporte em circulação com a frequência necessária. O Idec tem feito pressão para isso acontecer. "Esse dinheiro deve ser usado pelos municípios com controle e transparência. Além disso, ele não é dado de graça. As prefeituras beneficiadas precisam retribuir fazendo melhorias na infraestrutura de mobilidade, como ciclovias, corredores de ônibus etc.", afirma Calabria.
Em dezembro de 2020, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei (PL) nº 3.364/2020, que previa um auxílio de R$ 4 bilhões para o setor de transporte público em cidades com mais de 200 mil habitantes. O texto desse PL recebeu intensa colaboração do Idec. Entretanto, o presidente Jair Bolsonaro vetou a proposta sem apresentar uma alternativa. As regras previstas no PL, além de ajudarem a reduzir a preocupante superlotação, ainda deixariam legados importantes para o setor, como transparência, ferramentas de fiscalização etc. "O veto ao projeto coloca em risco o direito dos usuários de transporte público, e o governo joga fora a oportunidade de melhorar a mobilidade e a qualidade de vida nas cidades durante e após a crise sanitária. Mas seguimos dialogando com o Ministério de Desenvolvimento Regional e com o Congresso Nacional, e lutando por medidas que possam garantir a saúde (e a vida!) dos brasileiros", finaliza Calabria.