Debate no congresso
Mais do que unificar impostos sobre consumo, Brasil precisa de mudanças profundas em seu modelo de tributação, que hoje penaliza diretamente os consumidores, principalmente os mais pobres. Entenda como o regime atual afeta a sua vida e o que é urgente na reforma em discussão no Congresso
Imagine que, em vez de pagar cinco impostos em cada produto ou serviço que adquire, você passasse a pagar apenas um. Parece ótimo, não é? É isso o que propõe o relatório final da Comissão Mista de Reforma Tributária, encerrada em maio no Congresso Nacional. Mas, infelizmente, a proposta não é tão boa quanto parece. É que, na verdade, ela prevê unificar cinco tributos que hoje incidem sobre produtos e serviços (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) em um só, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Apesar disso, a estimativa é que a alíquota desse novo imposto unificado fique em torno de 27% – uma das mais altas do mundo! Ou seja, você continuaria pagando um valor muito elevado de imposto.
O IBS oferece algumas vantagens. A unificação – que segue o modelo do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), já adotado em países da Europa, da América do Norte e em vizinhos da América do Sul – simplifica e tende a tornar a tributação sobre o consumo mais eficiente. Para Grazielle David, assessora da Rede de Justiça Fiscal da América Latina e Caribe, um ponto positivo desse modelo é trazer mais transparência. "O primeiro impacto seria tornar mais óbvio o quanto a tributação sobre consumo no Brasil é alta e a necessidade de ela ser reduzida", afirma. Para o Idec, outro ponto positivo é a previsão de criação do chamado imposto seletivo, que passaria a incidir sobre cigar- ro, bebidas alcoólicas e outros produtos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
No entanto, embora tenha aspectos interessantes, a proposta está longe de ser a solução para os profundos problemas e injustiças do sistema tributário brasileiro. No Brasil, mais de 50% da carga tributária incide sobre o consumo. Em outras palavras, mais da metade de todos os impostos e contribuições recolhidos pelo Estado nos âmbitos federal, estadual e municipal vem da produção e comercialização de produtos e serviços. "A tributação no Brasil é extremamente regressiva, incidindo mais sobre os pobres e a classe média do que sobre os mais ricos, pois como todos pagam a mesma alíquota de imposto, quem tem menor renda paga proporcionalmente mais", destaca Renato Barreto, coordenador de advocacy do Idec.
IBS E CBS: SIMPLIFICAÇÃO LIMITADA
Apesar das limitações, a "simplificação" dos impostos sobre consumo tem sido a grande aposta do governo para a reforma tributária. Além do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), também tramita uma proposta feita pelo Poder Executivo. O Projeto de Lei (PL) nº 3.887/2020 quer criar a chamada Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), que substituiria dois tributos federais (PIS e Cofins). "Diferentemente do IBS, que unificaria impostos federais, estaduais e municipais, a ideia do governo é começar pela unificação dos dois tributos federais e depois passar para a unificação de tributos estaduais (ICMS) e municipais (ISS)", explica Renato Barreto, do Idec.
Para Grazielle David, o caminho proposto pelo Executivo é perigoso. "A proposta do governo de juntar apenas PIS e Cofins pode gerar uma situação muito complexa, podendo significar, ao final, uma alíquota [de imposto] mais alta para o consumo", avalia.
A tributação regressiva é o oposto do que se adota em países economicamente mais desenvolvidos, que tributam mais renda, patrimônio e riqueza do que o consumo. "É comum ouvirmos 'eu pago muito imposto' [no Brasil]. Isso é verdade para uma pessoa de baixa renda ou de classe média, que gasta quase todo seu salário em aluguel, supermercado e serviços diversos. Já para uma pessoa de alta renda, que não gasta tanto com esses itens e tem alguns investimentos que não pagam imposto, não é tanto. É importante fazer essa diferenciação", pontua David.
QUEM DEVE PAGAR MAIS
Considerando que o atual modelo de tributação amplia as desigualdades já existentes no país, o Idec defende que a reforma tributária redistribua a carga de impostos, de modo a reduzir sua incidência sobre o consumo, e, para compensar a perda de arrecadação, aumente a cobrança sobre renda, patrimônio e riqueza, tornando o sistema de tributação mais progressivo e justo. "A reforma tributária não pode ser apenas uma simplificação e unificação de impostos sobre consumo. Para trazer mudanças significativas, ela deve prever a redução da alíquota do IBS", opina Barreto.
A proposta de aumentar a tributação sobre renda e patrimônio pode assustar o cidadão de classe média que, com razão, já acha que paga muito no Imposto de Renda (IR) ou já teve a amarga experiência de gastar "uma nota" de impostos ao herdar um imóvel da família. Mas, na realidade, ela não é voltada ao trabalhador assalariado ou ao profissional liberal, e sim ao seleto grupo de brasileiros cuja renda vem de dividendos de ativos financeiros, que não pagam IR. "Estamos falando de menos de 1% a 3% da população, dependendo do tributo. Apesar de ser um grupo pequeno, a concentração de renda é tão alta, que isso seria suficiente para tornar o sistema mais progressivo e permitir essa redistribuição [da carga tributária], diz David.
E dá pra fazer isso sem penalizar a classe média. A pesquisadora lembra que o Brasil já teve tributação de dividendos. Isso foi nas décadas de 1950 e 1960, mas com as políticas neoliberais a partir dos anos 80 e 90, as regras mudaram. Aqui nunca se regulamentou a tributação de grandes fortunas, apesar de prevista na Constituição Federal. "Diversos países têm sistemas para taxação de grandes fortunas, patrimônio, herança, inclusive os Estados Unidos", informa. "Alguns estudos do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] mostram que seria arrecadado entre R$ 40 bilhões e R$ 60 bilhões [com a taxação de grandes fortunas no Brasil]. Isso é equivalente a dois [Programas] Bolsa Família! A capacidade de reduzir desigualdades é gigante", ela complementa.
MUDANÇAS URGENTES
Enquanto uma reforma ampla e justa não avança, o Idec defende que algumas mudanças pontuais sejam adotadas nas regras de tributação, para trazer impactos positivos para a renda e a saúde das famílias brasileiras. Entre elas, o fim da redução de impostos sobre produtos que provocam grandes danos à saúde da população e ao meio ambiente, como os agrotóxicos. "Esse tipo de produto deveria ter uma taxação maior, com a adoção de um imposto seletivo, que tribute mais de acordo com o dano causado pelo produto", sugere Barreto.
O que deveria ter impostos reduzidos são os alimentos da cesta básica e os orgânicos. De acordo com dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), dos R$ 443,56 cobrados pela cesta básica no Brasil, R$ 102 (23%) são impostos. No contexto de avanço da fome no país – que em 2020 atingiu 19 milhões de pessoas, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil –, reduzir impostos sobre esses itens é urgentíssimo.
A redução de impostos também é necessária em serviços essenciais como a energia elétrica, cuja carga tributária é bastante elevada. Cerca de 40% do valor da conta de luz é composto de encargos e tributos. "A redução da carga tributária do setor precisa estar necessariamente condicionada à transferência desse benefício aos consumidores", ressalta Barreto.
David concorda que, no atual contexto, a redução de impostos em alguns setores é importante, mas pondera que essa não deveria ser a regra, pois em muitos casos ela não resulta em preços menores para o consumidor. "É muito difícil exigir redução de valor a uma empresa privada. Precisa haver mecanismos [de controle] pelas agências reguladoras de cada setor", diz.
Considerando as limitações dessas medidas pontuais e das propostas do Governo Federal e do Congresso, o Idec faz coro a iniciativas de organizações da sociedade civil que vêm pleiteando uma reforma tributária 3S – sustentável, solidária e saudável, encabeçada por instituições de peso como a Oxfam e a ACT Promoção da Saúde. Para garantir os "3 s", além da adoção de um sistema de tributação progressivo, que promova a redistribuição de renda, é necessária "a adoção de critérios para incentivos fiscais coerentes com a promoção da saúde e sustentabilidade ambiental, e a consequente vedação de benefícios fiscais para produtos nocivos à saúde, que comprometem a vida e o bem-estar desta e das futuras gerações", de acordo com carta aberta enviada aos parlamentares. Parece utópico, mas sem sonho não há luta nem mudanças políticas.
MUDAR A CHAVE
O Idec defende uma mudança na lógica da tributação, de modo que a redução no valor dos tributos ou a tributação maior de alguns setores seja pautada na promoção da saúde e de ambientes mais sustentáveis, não em interesses econômicos.
Redução de impostos
Cesta básica
Alimentos orgânicos
Mobilidade sustentável
Energia elétrica
Serviços de telecomunicações
Saneamento
Bebidas adoçadas
Alimentos ultraprocessados
Agrotóxicos
Emissão de gás carbônico
Impostos mais altos*
(*por meio da adoção de imposto seletivo e/ ou do fim de desonerações tributárias hoje aplicadas)