Robin Hood às avessas
Estudo do Idec comprova que regras para mini e microgeração distribuída por meio de painéis solares favorecem os mais ricos e impactam o orçamento dos mais pobres
É indiscutível a importância da energia solar como alternativa às termoelétricas, que impactam sobremaneira o meio ambiente, principalmente por emitirem gases poluentes que causam o efeito estufa. No entanto, isso não justifica o modelo injusto em vigência no Brasil: toda a população paga, na conta de luz, subsídios oferecidos pelo governo a quem produz a própria energia, o que é chamado de Geração Distribuída (GD), sendo a instalação de painéis fotovoltaicos nos telhados a forma mais comum. Isso ocorre porque as atuais regras da GD – descritas na Resolução Normativa nº 482/2012 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) – favorecem as famílias mais ricas, que podem gastar cerca de 15 mil para instalar painéis solares, e comprometem o orçamento das mais pobres. Essa foi a constatação de um estudo recente do Idec.
Para entender a situação é preciso saber que a fatura de energia elétrica que pagamos todos os meses é formada basicamente pelos custos de transmissão e distribuição, encargos setoriais, custo da energia e impostos. Entretanto, quem tem dinheiro para instalar um painel solar em sua casa ou comércio paga apenas uma tarifa mínima pela disponibilidade da rede elétrica. "O problema é que esse valor não cobre todos os custos que o sistema demanda. Além disso, quem adota a geração distribuída depende da rede elétrica nos momentos em que não há energia suficiente, como à noite. É aí que entra a tarifa paga pelos consumidores que não possuem placas fotovoltaicas", explica Clauber Leite, coordenador do Programa de Energia e Sustentabilidade do Idec.
PAINÉIS SOLARES PARA A ELITE
De acordo com o estudo do Idec, que analisou a base de dados da Aneel sobre a instalação de GD no país e cruzou com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, a maioria dos sistemas fotovoltaicos instalados está nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Além disso, nas cidades onde estão presentes, é nos bairros nobres que elas se encontram. Em São Paulo (SP), por exemplo, 31% das instalações ficam em bairros de classe média alta, enquanto somente 4% estão em áreas pobres. Já em Belo Horizonte (MG), a discrepância é ainda mais acentuada: 42% nos bairros ricos e 1% nos de baixa renda. Quando se trata de pessoa jurídica, 20% das instalações pertencem a empresas com capital social superior a R$ 100 milhões. "Assim, fica claro que, embora os custos gerados pelos incentivos à GD sejam rateados entre todos os consumidores, os benefícios são concedidos majoritariamente às classes mais privilegiadas", pontua Leite.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
Analisamos as bases de dados da Aneel sobre as instalações de mini e microgeração distribuída feitas em todo o Brasil até 24 de novembro de 2020 (por pessoas físicas e jurídicas) e cruzamos com os dados da mais recente Pesquisa de Orçamentos Familiares (referente a 2017 e 2018), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como a renda média das famílias brasileiras de diferentes classes sociais e o impacto da conta de luz no orçamento delas.
Para uma análise mais aprofundada foram considerados os municípios de São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Belo Horizonte (MG), capitais com número expressivo de instalações de geração distribuída.
Clauber Leite, coordenador do Programa de Energia e Sustentabilidade do Idec
Segundo a POF 2017 - 2018, 24% das famílias brasileiras vivem com menos de dois salários mínimos por mês e dedicam até 4% de sua receita às tarifas de energia, enquanto que para famílias abastadas, este número não chega a 1%. A diarista Josefa Teresa Soares, que mora no bairro Parque Santa Bárbara, em São Paulo (SP), sente na pele essa realidade: ela ganha R$ 1.500 mensais – um pouco mais do que o salário mínimo, que é de R$ 1.100 – e sua conta de luz custa, em média, R$ 100, sendo que R$ 15 são tributos, que ela nem sabia que pagava. "Quinze reais pode não fazer diferença para quem tem dinheiro, mas faz muita falta para quem não tem. Com esse valor é possível comprar 1 Kg de arroz e uma dúzia de ovos", exemplifica o pesquisador do Idec.
Mas nada é tão ruim que não possa piorar. De acordo com um estudo do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP), que considerou dados das distribuidoras Cemig, CPFL Paulista e RGE Sul, se as regras para a geração distribuída local (aquela gerada no lugar onde é consumida) forem mantidas, o impacto financeiro para quem não adotar o sistema poderá variar de R$ 97 milhões a R$ 1,5 bilhão ao longo de dez anos. "Já com a mudança das regras, os custos repassados para quem não tem sistema fotovoltaico diminuirão entre 65% e 95% até 2030, dependendo do caso", informa Virginia Parente, coordenadora do estudo.
REGRAS MAIS JUSTAS
Embora as regras em vigor para mini e microgeração distribuída terem sido fundamentais, nos últimos anos, para viabilizar a expansão da energia solar fotovoltaica no Brasil, o Idec se preocupa com o impacto que os incentivos concedidos a quem pode instalar um painel solar em sua casa ou empresa provoca na vida financeira de quem não pode se dar a esse luxo. Assim, o Instituto vem lutando por regras mais justas, de modo que aqueles que adotam a GD também paguem pelos custos de operação, como a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) e a Tarifa de Energia (TE), e que os subsídios sejam custeados pelo Tesouro Nacional, não pelos consumidores. "Os subsídios devem ser dados a quem precisa, mas os consumidores em piores condições financeiras não devem custear os que têm melhores condições", defende Leite.
É preciso deixar bem claro que o Idec zela pelo meio ambiente e é totalmente a favor da energia solar, que é uma fonte renovável. Apenas não concorda com as regras vigentes. "A energia solar realmente ajuda a reduzir a emissão de poluentes pelas termoelétricas, mas isso pode ser obtido por meio das energias solar e eólica compradas em leilões organizados pelo governo, cujo custo é cerca de três ou quatro vezes menor do que o dos painéis fotovoltaicos disponíveis no mercado. Outra opção são as usinas solares ligadas ao Sistema Interligado Nacional (SIN), que são competitivas sem precisar de subsídios", declara Leite. Parente, da USP, concorda que as tecnologias limpas são bem-vindas, pois substituem fontes mais poluentes; contribuem para a eficiência energética, evitando perdas durante o transporte da energia através de extensas linhas de transmissão; dentre muitas outras vantagens. No entanto, devem ser corretamente incentivadas e precificadas. "Os custos desses benefícios não podem ser arcados apenas por um grupo de consumidores, nem pelo grupo de consumidores que não adotam a GD, tampouco apenas pelos adotantes, porque atributos como eficiência energética e segurança do sistema são tratados pela Ciência Econômica como bens públicos", ela finaliza.
OUTRAS FONTES RENOVÁVEIS
Embora a energia solar seja a fonte renovável mais comumente utilizada para geração distribuída, existem outras tecnologias, como microturbinas eólicas, vários tipos de aproveitamento de biomassa, centrais geradoras hidrelétricas (CGHs), que são usinas hidrelétricas com capacidade para gerar de 0 a 5 MW de energia etc.