Falha na conectividade
Estudo do Idec analisa políticas de universalização da Internet e iniciativas emergenciais para conectar alunos de baixa renda, permitindo que acompanhem as aulas remotas durante a pandemia, e detecta um enorme abismo digital no país
A pandemia do novo coronavírus virou o mundo de ponta-cabeça, e todos nós tivemos de mudar substancialmente nossa rotina e forma de viver. Para crianças e adolescentes, a principal mudança foi deixar de frequentar a escola para ter aulas online. Isso não seria tão problemático se não vivêssemos num país extremamente desigual. Aqui muitos alunos não possuem computador e/ou pacote de Internet para poder acompanhar as videoaulas. O mesmo acontece com professores da rede pública de ensino, obrigados a se virar nos 30 para passar o conteúdo a suas turmas, sem nenhum respaldo de prefeituras e governos. Caroline Ferreira de Mello tem 18 anos e mora no Capão Redondo, bairro periférico da Zona Sul de São Paulo. Ela terminou o curso técnico na ETEC no ano passado, com aulas à distância, e, este ano, está fazendo o cursinho pré-vestibular da Universidade Estadual Paulista (Unesp), além de aulas de Inglês oferecidos pela ONG Cidadão Pró-Mundo. Tudo isso com um celular e um wi-fi de apenas 2MB. "A conexão varia, tem dia que está boa, tem dia que fica travando ou cai", ela conta. Além disso, por ter problema de visão, a tela pequena do celular dificulta. "Preciso dar zoom toda hora", diz.
"O problema de conectividade é bem anterior à pandemia e ao fechamento das escolas. A Covid-19 apenas reforçou o abismo digital em que a sociedade brasileira vive. Agora, a universalização do acesso à Internet se faz ainda mais urgente", declara Luã Cruz, pesquisador do Programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec. Para entender o quão profundo é esse abismo, o Idec desenvolveu a pesquisa "Acesso à Internet residencial dos estudantes", a primeira da série "Desafios para a Universalização da Internet no Brasil", que será publicada ao longo de 2021. Nela foram reunidas e analisadas pesquisas sobre o acesso de professores e estudantes à Internet durante a pandemia; políticas públicas relacionadas ao tema; além de iniciativas de outros países. Os dados foram coletados entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021 no noticiário e no site das Secretarias de Educação Estaduais e nas Secretarias de Educação das 27 capitais.
CASTAS DIGITAIS
Apesar do avanço significativo no número de usuários de Internet nos últimos anos, um quarto da população brasileira acima de 10 anos (ou 47 milhões de pessoas) ainda permanece desconectada. Destes, 45 milhões (95%) pertencem às classes C e D/E, de acordo com dados de pesquisa do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Socidade da Informação (Cetic.br), de 2019. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 6 milhões de alunos da Educação Básica não tem acesso algum à Internet em casa – seja banda larga ou móvel. "Cerca de metade dos alunos desconectados estão em áreas rurais, e 84% vivem em cidades do interior dos estados", aponta Jardiel Nogueira, consultor em Conectividade e Educação e um dos responsáveis pelo estudo do Idec.
Mas não podemos simplesmente dividir o país entre aqueles que têm e os que não têm acesso à Internet. É preciso considerar que nem todos os que acessam a rede o fazem de forma igual. Enquanto na classe A apenas 11% relatam usar exclusivamente o celular, nas classes D e E, esse número é de 85%. Ou seja, enquanto as classes A e B possuem conexão de Internet fixa, mais estável e sem limitações de uso, boa parte das famílias com baixo poder aquisitivo têm no telefone móvel sua única ferramenta de acesso, conforme pesquisa da Cetic.br. "Apesar de serem úteis em alguns casos, o celular limita a produção de conteúdo pedagógico e pesquisas acadêmicas de professores e alunos", afirma Nogueira.
Pesquisa realizada pelo Datafolha em 2020 para traçar um cenário da educação no país durante a pandemia apontou que apenas 41% dos estudantes brasileiros tinham computador ou notebook em casa e que apenas 13% não precisam compartilhá-lo com outras pessoas. O número de lares que possuem celular é maior (89%), porém, 38% dos alunos dividem o aparelho com algum familiar. Quando se trata do Ensino Médio e do Ensino Superior o número de estudantes que têm um telefone móvel exclusivo sobe para 59%. A professora da Educação Infantil Karine Gonçalves Vitorin, 42 anos, que vive em Itatiba, no interior de São Paulo, é um exemplo de pessoa conectada, mas com limitações. Mãe de três meninas (Leonarda, 16 anos, cursando o 3º ano do Ensino Médio junto com o cursinho pré-vestibular; Lívia, 14 anos, no 9º ano do Ensino Fundamental; e Heloisa, 4 anos, na Educação Infantil), ela não tem computador. "O máximo que eu consegui fazer foi investir num celular mais moderno, pois com o meu antigo não teria condições de falar com meus alunos", ela desabafa. E completa: "Minhas duas filhas mais velhas ganharam um celular cada uma da minha tia, e a mais nova usa o meu". A família reside num bairro rural e usa a internet (instável) da mãe de Vitorin, que mora no mesmo terreno.
Em novembro de 2020, o Instituto Península entrevistou cerca de 3 mil professores para traçar um cenário do ano letivo de 2020: 99% declararam que usam o celular para trabalhar; 90%, um notebook; e 46%, um desktop. Com todos os desafios enfrentados, os professores não consideram o período de aulas remotas efetivo para o aprendizado dos alunos. Ainda de acordo com o Instituto Península, 72% dos entrevisados afirmaram que os alunos aprenderam abaixo do esperado, e 91% acreditam que, em razão do fechamento das escolas, é provável que os alunos mais pobres fiquem em desvantagem por conta das dificuldades para estudar em casa.
A professora Nanci Gonçalves, que também mora em Itatiba (SP) e dá aulas para o 3o ano do Ensino Fundamental, afirma que para muitas crianças 2020 foi um ano perdido. "Minha turma é teoricamente de 3º ano, mas é como se fosse o 2º, pois muitos ainda não estão alfabetizados nem conhecem os números direito", ela relata. Isso porque nem todas as crianças têm condições de acompanhar as aulas virtuais. "Algumas dividem o celular com os pais e irmãos, outras ficam com os avós que não entendem nada de Internet, algumas têm aparelhos tão velhinhos que eu mal consigo enxergá-los e/ou ouvi-los", descreve a professora, que conseguiu comprar um computador no início da pandemia, com recursos próprios – já que a prefeitura não ofereceu nenhum suporte. "A situação é tão ruim que eu sou a única da minha escola – que tem quase mil alunos – que dá aula ao vivo pelo Google Meet. A maioria apenas envia atividades por áudio ou vídeo no WhatsApp".
POLÍTICAS FOCADAS NAS ESCOLAS
Nas últimas décadas, uma série de políticas para promover a inclusão digital na educação pública foi criada no Brasil. Mas elas eram focadas na melhoria da infraestrutura tecnológica das escolas, como a montagem de laboratórios de informática, desconsiderando as dificuldades enfrentadas pelos alunos em casa. A primeira iniciativa do Governo Federal foi o Programa Nacional de Tecnologia Educacional (ProInfo), lançado em 1997. Por meio dele, as escolas recebiam computadores e recursos digitais. Entretanto, duas décadas depois, 30% das escolas continuam desconectadas, de acordo com o Censo Escolar 2019.
Dentre os poucos esforços federais voltados para pessoas, não para instituições de ensino, destacam-se o projeto Computador Portátil para Professores, de 2008, e o programa Um Computador por Aluno (Prouca), de 2010. Eles possibilitaram que alunos e professores de baixa renda tivessem um computador para realizar e corrigir atividades educacionais. Na primeira metade da década de 2010, alguns Estados e municípios implementaram políticas semelhantes. "Esses aparelhos não são os mais modernos nem têm boa capacidade de processamento e, sem manutenção, se deterioram. Além disso, a velocidade da conexão à Internet é baixa", reforça Cruz, do Idec.
MEDIDAS EMERGENCIAIS INSUFICIENTES
Diante da gravidade da pandemia, que levou ao fechamento das escolas, foi preciso recuperar o prejuízo, tentando superar as falhas nas políticas públicas para educação que vêm sendo implementadas desde o processo de privatização do serviço de telecomunicações, no final dos anos 1990. O ministro da Educação, Milton Ribeiro, tirou o corpo fora e eximiu-se de responsabilidade: "É o estado e o município que têm de cuidar disso aí. Esse não é um problema do MEC, é um problema do Brasil. (...) É a iniciativa de cada um, de cada escola. Não foi um problema criado por nós". Assim, coube a empresas e à sociedade civil arregaçar as mangas, doando equipamentos e apoiando medidas emergenciais de suporte econômico por meio da aplicação de recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) para o subsídio de serviços de telecomunicações essenciais para os consumidores mais vulneráveis. Mas segundo Cristiana Gonzalez, consultora da Coalizão Direitos da Rede, os recursos das organizações da sociedade civil são limitados, o que faz com que estudantes e professores dependam do voluntarismo e de ações filantrópicas, que são pontuais e dificilmente têm continuidade. "Associações de bairro, por exemplo, não conseguem se mobilizar sozinhas para garantir infraestrutura e acesso a equipamentos. Por isso, insistimos no papel do Estado", ela argumenta.
No fim de dezembro, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 3.477, que prevê que R$ 3,5 bilhões sejam destinados para prover o acesso à Internet, por meio de pacotes de dados e distribuição de dispositivos de conectividade para alunos de baixa renda e professores da Educação Básica. O PL aguarda aprovação do Senado e tem de passar por sanção presidencial. Enquanto a verba não é disponibilizada, a única ação do Governo Federal foi a distribuição de chips e pacotes de dados a 906 mil estudantes vulneráveis matriculados em universidades federais. "Não houve nenhuma ação de grande porte, em 2020, para auxiliar alunos e professores da Educação Básica", destaca o consultor do Idec.
De modo geral, as principais políticas públicas durante a pandemia foram distribuição de chips de telefonia móvel e de equipamentos (computadores, tablets e celulares), e criação de aplicativos com o conteúdo das aulas, cujo acesso não é descontado da franquia de dados. Dentre os estados que distribuíram chips estão São Paulo, Maranhão e Pará. Em abril de 2020, o Rio de Janeiro anunciou que doaria 750 mil chips com pacotes de 20GB para a rede estadual (500 mil para alunos e 250 mil para professores). Contudo, ninguém os recebeu. "É importante dizer que chips não substituem conexões de banda larga fixa, principalmente quando possuem limitações de franquia, pois os estudantes têm de tomar bastante cuidado na hora de navegar para não consumir todos os dados antes do fim do mês", expõe Cruz.
A Secretaria Municipal de Educação de São Paulo também prometeu, em agosto de 2020, entregar 465 mil tablets, com franquia mensal de 3GB, para os alunos da rede municipal até o fim do ano. No entanto, até fevereiro de 2021 apenas 10 mil tablets haviam chegado às mãos dos alunos, por conta de entraves no processo licitatório. Recife também anunciou, em abril de 2020, a compra emergencial de 12 mil smartphones com Internet para os alunos do 9º ano da rede municipal. Contudo, o Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE) tirou o caráter emergencial, obrigando a Secretaria a passar por um processo de licitação comum. A iniciativa foi então abandonada.
"Todas essas medidas são paliativas e tentam solucionar com urgência um problema estrutural. Apesar de serem elogiáveis pela boa intenção, pecam por serem insuficientes e esparsas", opina Cruz.
O QUE O IDEC DEFENDE
1. Que todos os brasileiros tenham em sua casa Internet fixa com boa velocidade;
2. Que a Internet móvel seja complementar à fixa e que não tenha limitação de franquia ou políticas de zero rating (quando é possível acessar apenas alguns aplicativos específicos fora da franquia contratada);
3. Que todas as escolas da rede pública estejam conectadas à Internet, com acesso liberado para toda a comunidade escolar;
4. A criação de uma política de subsídio para o acesso fixo domiciliar em segmentos vulneráveis;
5. A criação de pacotes de banda larga fixa mais baratos para famílias de baixa renda;
6. Políticas de distribuição de computadores de mesa ou notebooks que permitam aos alunos da rede pública realizar tarefas e pesquisas mais complexas;
7. Que as políticas de inclusão tecnológica sejam contínuas, isto é, que não sejam abandonadas quando houver troca de governantes;
8. Que as ações feitas durante a pandemia sejam mantidas quando as escolas reabrirem.