Valor dos remédios
Projeto de lei apoiado pelo Idec quer aperfeiçoar a forma como o governo determina o preço máximo que pode ser cobrado por medicamentos no Brasil
No final do ano passado, a produtora cultural Mônica Ramos foi a uma consulta de rotina no ginecologista e perguntou se poderia tomar pílula anticoncepcional por um período curto, pois iria viajar e não queria menstruar. Saiu dali com a indicação de um contraceptivo de uso contínuo, que poderia ser interrompido após a viagem, segundo o médico. "Paguei R$ 60 na caixa, com desconto, e comecei a tomar. Só que o remédio acabou quando eu ainda estava de férias em Penedo (RJ). Então, fui a uma farmácia da cidade, mas me assustei com o preço: R$ 108! Acabei não comprando, porque não era um medicamento de que eu realmente precisava", ela relata.
É provável que você já tenha levado um susto desse na farmácia ou conheça alguém que tenha, pois remédios que custam o olho da cara é algo comum no Brasil. E diferentemente de Ramos, que pôde optar por não tomar o medicamento, muita gente não tem escolha. Assim, o preço dos remédios acaba se tornando uma questão de vida ou morte, literalmente. Por isso, o Idec, que há algum tempo vem denunciando as limitações da regulação do mercado de medicamentos no país, celebrou a apresentação de um projeto de lei que pretende aperfeiçoar esse sistema. Trata-se do PL nº 5.591/2020, proposto pelo senador Fabiano Contarato (Rede-ES). Basicamente, o texto altera a forma como são definidos os preços máximos que podem ser praticados no mercado farmacêutico brasileiro, atribuída à Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed), órgão interministerial vinculado à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
METODOLOGIA INJUSTA
Criada pela lei nº 10.742/2003, a Cmed representou um marco importante para a regulação do mercado de medicamentos no Brasil após o processo de abertura econômica nos anos 1990, quando os mecanismos que existiam para regular os preços foram flexibilizados ou extintos. Segundo a pesquisadora do Grupo de Economia da Inovação do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ), Caroline Miranda, esse período ficou marcado por inúmeras denúncias de preços abusivos praticados no mercado farmacêutico. Tanto que o Congresso Nacional instaurou, em 1999 – mesmo ano em que foi criada a Anvisa – uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o problema. O resultado foi a criação, em 2001, da Câmara de Medicamentos (Camed), que dois anos depois foi substituída pela Cmed. "Os parâmetros para a definição de preços-teto e do reajuste anual foram estabelecidos por uma resolução aprovada em 2004", informa Miranda.
Mas de acordo com Julia Paranhos, pesquisadora da UFRJ e coordenadora do Grupo de Economia da Inovação, passadas quase duas décadas, a metodologia utilizada pela Cmed já deu inúmeras mostras de que carece de revisão. "Em 2004, o mercado farmacêutico brasileiro tinha uma característica. Hoje, em 2021, tem outra completamente diferente. O mercado avançou, as empresas avançaram, então a regulação precisa avançar junto", defende. Atualmente, a partir do momento em que um medicamento é introduzido no país, a Cmed define um preço-teto com base nos preços praticados nos países de referência: Estados Unidos, Grécia, Itália, França, Espanha, Portugal, Nova Zelândia, Austrália e Canadá. Esses preços máximos são reajustados anualmente através de uma fórmula que leva em conta a inflação anual calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), além de outros fatores.
NEM TUDO O QUE SOBE DESCE
Um dos principais problemas da metodologia atual, segundo a coordenadora do Programa de Saúde do Idec, Ana Carolina Navarrete, é que ela não permite que o preço-teto seja reajustado para baixo. "Uma vez que o medicamento entra no mercado, a tendência é surgirem drogas genéricas, aumentando a concorrência e levando à redução dos preços. Contudo, o teto não pode ser reduzido", destaca. "Assim, numa crise de desabastecimento, escassez ou outro problema econômico, a empresa que comercializa esse medicamento pode subir o preço duas ou três vezes e ainda ficar dentro do limite", ela complementa. Foi o que aconteceu em meio à pandemia do novo coronavírus, mesmo após o Governo Federal apresentar a Medida Provisória 933, que suspendeu o reajuste anual dos preços-teto dos medicamentos em decorrência da crise sanitária. "'Foi uma medida 'para inglês ver'. Digamos que o preço-teto de um medicamento é de R$ 400, mas ele é vendido por R$ 60. De que adianta congelar o reajuste do preço máximo se a regulação permite que seja cobrado até R$ 400?", critica a coordenadora do programa de Saúde do Idec.
Em sua dissertação de mestrado, Miranda apontou algumas distorções similares ao exemplo dado por Navarrete. Ela identificou discrepâncias no preço-teto definido pela Cmed para vários medicamentos e o preço efetivamente praticado no mercado em 2019. A maior delas foi referente ao antidepressivo Oxalato de Escitaloprám, com 10 mg e 60 comprimidos, cujo preço médio era de R$ 64, significativamente inferior ao preço-teto definido pela Cmed naquele ano, de R$ 383. "É uma diferença muito grande. Pagar R$ 60 em um medicamento e amanhã ter de pagar R$ 380 poderia ser considerado abusivo, mas na prática não é, porque a regulação permite", reforça a pesquisadora.
PROPOSTAS POSITIVAS
Segundo Navarrete, um dos méritos do PL nº 5.591/2020 é que ele garante a possibilidade de que os preços-teto sejam reajustados para baixo. Mas não é o único. O projeto propõe ainda uma revisão do grupo de países usados como referência pela Cmed para a definição dos preços dos medicamentos, que hoje é composto de países desenvolvidos. Por isso, o PL propõe que sejam utilizados como referência apenas países "compatíveis socioeconomicamente" com o Brasil, vedando aqueles onde não há sistema público de saúde de acesso universal – como o SUS – nem política de regulação de preços de medicamentos.
Além disso, o PL pretende ampliar e democratizar a composição da Cmed, atualmente formada por representantes de quatro ministérios: Saúde, Economia, Justiça e Segurança Pública. "O PL introduz novos atores essenciais para essa discussão, como a ANS, que é a agência reguladora de planos de saúde; a Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde], que avalia as tecnologias que serão ou não oferecidas pelo SUS; o Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde] e o Conasems [Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde]. Eles são representantes dos municípios e estados, que também são compradores de medicamentos", explica a pesquisadora do Idec.
O senador Contarato chama a atenção para um terceiro elemento positivo no projeto: a transparência sobre os custos e preços praticados pelo setor farmacêutico, especialmente em relação ao desenvolvimento de novos produtos, o que é fundamental para conferir mais nitidez aos itens que compõem o preço. Navarrete explica que, atualmente, as empresas precisam informar os custos de logística e distribuição no momento em que um medicamento é registrado na Anvisa, mas essas informações podem ser dispensadas pela agência. "Isso costuma acontecer com frequência. E o PL avança quando torna esses dados obrigatórios. E também ao obrigar as empresas a fornecerem informações relativas ao financiamento da pesquisa e desenvolvimento daquele medicamento, muito utilizadas para justificar os altos preços cobrados", ela diz.
Procurada pela Revista do Idec, a assessoria de imprensa da Anvisa respondeu que a agência não se pronuncia sobre projetos legislativos em andamento.
LUTA POR JUSTIÇA
O Idec lançou, no início de março, a campanha Remédio a Preço Justo, em apoio ao Projeto de Lei nº 5.591/2020. O objetivo é explicar aos cidadãos brasileiros os limites da regulação atual de preços de medicamentos no Brasil e mostrar a necessidade de modernizá-la, pressionando pela aprovação do PL no Congresso. Após anos provocando a Cmed, sem respostas satisfatórias, esta é a primeira campanha do Idec sobre o tema.
O Idec também está realizando uma pesquisa sobre a evolução do preço-teto de medicamentos estratégicos para o SUS, como antirretrovirais e aqueles usados no tratamento de diabetes e câncer. "Hoje, o preço do mesmo remédio pode variar muito em um mesmo bairro e isso não é justo nem para os consumidores nem para o SUS. Um valor elevado na tabela significa espaço para abusos por parte do varejo e da indústria. Com a pesquisa, estamos buscando identificar o tamanho do problema", diz Navarrete, finalizando: "É preciso lembrar-se de que ninguém compra medicamentos porque quer, mas por necessidade. E o acesso a eles é um componente fundamental do direito à saúde".
Saiba mais
Campanha Remédio a Preço Justo: https://www.remedioaprecojusto.org.br/