Alimentação saudável
A NBCAL – lei que regulamenta a fabricação, comercialização, publicidade e rotulagem de produtos que podem desestimular a amamentação – é um exemplo fora do Brasil. Mas por aqui, embora esteja em vigor há 32 anos, ainda é pouco conhecida e muito desrespeitadas
O Brasil tem uma das leis mais fortes e completas em defesa do aleitamento materno, de acordo com dados do relatório Comercialização de substitutos do leite materno: implementação nacional do Código Internacional, lançado em junho pela Organização Mundial da Saúde (OMS), Ibfan (Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar) e Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A cada dois anos, a OMS pergunta a 194 países como está, em seu território, a implementação do Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno e das resoluções subsequentes que atualizaram alguns artigos. Assim, o relatório atual traz informações referentes a 2018 e 2019.
A lei brasileira baseada no Código Internacional é a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de 1a Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (NBCAL). Ela regula a fabricação, a comercialização, a publicidade e a rotulagem de produtos que podem "competir" com a amamentação, como fórmulas artificiais, leites em geral, papinhas, além de bicos, chupetas e mamadeiras. "Embora a legislação tenha entrado em vigor em 1988, ela ainda é desconhecida por boa parte dos consumidores e também por fabricantes e comerciantes, conforme verificou, mais uma vez, o monitoramento anual realizado pela Ibfan Brasil, em parceria com o Idec. Temos uma lei superforte e que é um exemplo lá fora, mas na prática ela não funciona tão bem", declara a nutricionista Laís Amaral, pesquisadora do programa Alimentação Saudável e Sustentável do Idec.
O CÓDIGO INTERNACIONAL AO REDOR DO MUNDO
Dos 194 países avaliados pela OMS, 136 possuem alguma norma baseada no Código Internacional. Entretanto, nenhuma adota 100% das regras internacionais. Nos últimos dois anos, 44 países reforçaram seus regulamentos sobre publicidade de produtos que substituem o leite materno.
Um dado que preocupa é que apenas 79 países proíbem a promoção de substitutos do leite materno em unidades de saúde e somente 51 não permitem a distribuição de suprimentos gratuitos ou de baixo custo no sistema de saúde. A situação piora quando se trata do patrocínio de reuniões de associações científicas e profissionais de saúde por fabricantes de fórmulas infantis, fórmulas de seguimento e leites de crescimento, destinados a crianças de zero a três anos. Apenas 19 países proíbem essa prática.
Dos 100 pontos possíveis, o Brasil fez 83 (assim como Uganda) – o que significa que a NBCAL é uma lei bastante robusta e que segue praticamente tudo o que estabele o Código Internacional. Ele está atrás apenas das Maldivas (93); Palau, Líbano e Armênia (90); Afeganistão (88); África do Sul (87); Kuwait (86); Fiji e Filipinas (85) e Nigéria (84).
A EXEMPLAR JUNDIAÍ
No ano passado, o Idec denunciou as empresas que infringiram a NBCAL em 2018 a dezenas de Ministérios Públicos. Contudo, o resultado foi frustrante, pois poucos responderam. "Nós, da sociedade civil, monitoramos o cumprimento da NBCAL, mas os órgãos reguladores e de defesa do consumidor também devem fazer a parte deles, punindo o descumprimento da norma", cobra Laís Amaral, do Idec.
O destaque positivo foi o município de Jundiaí (SP), cuja Vigilância Sanitária (Visa) enviou um técnico aos estabelecimentos denunciados, os autuou e abriu um processo administrativo-sanitário. Além disso, criou um roteiro para facilitar a fiscalização de supermercados, farmácias etc. "A partir de agora, incluiremos a verificação do cumprimento da NBCAL em nossa rotina de inspeção", conta Jeanine Maria Salve, nutricionista da Visa de Jundiaí, que não entende por que os outros municípios não responderam. "Quando recebemos um comunicado do Ministério Público nos sentimos obrigados a responder. Não faz sentido engavetar uma denúncia. Isso é muito triste", opina.
ASSOCIAÇÕES QUE NÃO COLABORAM
A menor pontuação do Brasil foi no quesito "engajamento com trabalhadores e sistemas de saúde". Isso porque as associações de pediatras do país continuam ignorando a existência da NBCAL, embora tenham participado da elaboração e das revisões da Lei. "Muitos pediatras recomendam a amamentação apenas até 12 meses, quando não até seis meses", critica a médica Marina Rea, membro do Conselho Global de coordenação da Ibfan.
Assim como na maioria dos países, no Brasil é muito comum fabricantes de leites e fórmulas infantis patrocinarem eventos de sociedades de profissionais da saúde. Isso vai contra a NBCAL, que proíbe terminantemente a promoção de fórmulas infantis nesses eventos. "Esse é um grande desafio nosso, pois já denunciamos essa prática à Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], mas nada é feito. Essas associações jogam a culpa nas indústrias que, por sua vez, alegam que receberam permissão dos organizadores", destaca Rea.
Há nessa prática um claro conflito de interesses. A nutricionista Enilce Oliveira F. Sally, doutora em Saúde da Mulher e da Criança, define a relação entre profissionais de saúde e a indústria como preocupante. "A promoção comercial de substitutos do leite materno acaba chegando às mães por meio desses profissionais, às vezes de forma sutil, mas muitas vezes de forma escancarada", ela relata. Para a nutricionista, o tema "conflito de interesses" deveria ser debatido nos cursos universitários da área de saúde, assim como as legislações nacional e internacional relacionadas à proteção da amamentação.
A médica pediatra Sônia Salviano, membro do conselho diretor da Rede Ibfan, concorda com Sally. Para ela, brindes, jantares, viagens para eventos e financiamento de pesquisas e publicações seduzem muita gente levando ao desrespeito da legislação. "Enquanto os profissionais não entenderem que a amamentação é indispensável para garantir a saúde durante toda a vida, e os gestores não assumirem suas reais responsabilidades, coibindo as práticas abusivas da indústria, as crianças continuarão a ser desmamadas precocemente, o que pode causar doenças e até óbito", argumenta Salviano.
O Brasil deveria seguir o exemplo da Associação de Pediatria do Reino Unido (Royal College of Pediatrics), que decidiu, depois de muitos anos de discussão, parar de aceitar patrocínio de fabricantes de fórmula infantil.
NOVO ANO, VELHAS INFRAÇÕES
A Ibfan Brasil e o Idec identificaram 433 infrações (de 171 empresas) à NBCAL em 2019 (saiba mais sobre a metodologia no quadro ao lado). Os produtos com mais irregularidades são os leites fluidos, em pó ou à base de vegetais (31%), seguidos pelos compostos lácteos (28%). Das 433 infrações, 305 são referentes à promoção sem frase de advertência e 103 a ofertas proibidas. "Não é possível que a gente ainda encontre promoção comercial de leite sem frase de advertência ou com frase inadequada em grandes estabelecimentos, que estão cansados de saber que é proibido. Isso pode ser considerado má-fé", afirma Rosana De Divitiis, cientista social e membro do conselho diretor da Ibfan Brasil.
Juntas, fórmula infantil e fórmula infantil de seguimento foram responsáveis por 14% das irregularidades. Esses produtos não podem ser promovidos de nenhuma forma. Mas isso continua acontecendo. "Ofertas podem influenciar as mães a comprarem o produto quando não conseguem amamentar, sem orientação profissional", explica De Divitiis.
Você, consumidor, pode nos ajudar na luta em prol da amamentação infantil: se encontrar publicidade antiética de produtos substitutos do leite materno, denuncie! A denúncia pode ser registrada no Observatório de Publicidade de Alimentos (OPA) – www.publicidadedealimentos.org.br – do Idec.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
De junho a outubro de 2019, nossos pesquisadores visitaram estabelecimentos comerciais (supermercados, drogarias, entre outros) em 40 municípios de 12 estados (distribuídos pelas cinco regiões brasileiras). Eles também acessaram o site dessas lojas e dos fabricantes de produtos regulados pela NBCAL.
Após análise das infrações, enviamos, junto com o Idec, uma notificação às empresas, que tiveram sete dias a partir da data de recebimento para se manifestarem.
Das 171 empresas notificadas, apenas 49 responderam. Destas, 21 discordaram, 23 concordaram e duas concordaram parcialmente com os nossos argumentos. Três pediram esclarecimentos, pois alegaram desconhecer a legislação. A grande maioria (122 empresas) não se manifestou.
Claudia Gondim, fonoaudióloga e coordenadora do monitoramento em 2019