Tratamento para todos
Em meio aos esforços para conter a pandemia do novo coronavírus, especialistas cobram medidas do governo para articular as redes pública e privada de saúde, e criticam a omissão de operadoras e da ANS
Não são poucas as contradições que marcam o sistema de saúde brasileiro. Uma delas, talvez a principal, diz respeito a seu financiamento. No único país com mais de 100 milhões de habitantes cujo sistema prevê acesso integral e gratuito para toda a população — o Sistema Único de Saúde (SUS) —, é o gasto privado que predomina no valor total despendido com o setor anualmente. E isso não é de hoje. Desde que o SUS foi criado, em 1988, pesquisadores e militantes da saúde coletiva têm denunciado essa disparidade, que causa diferenças no acesso dos brasileiros aos serviços de saúde.
E no momento em que o Brasil enfrenta a maior crise sanitária de sua história recente, com a pandemia do novo coronavírus, o desequilíbrio tornou-se ainda mais explícito. "A pandemia vem expondo os vários níveis de desigualdade que acompanham o sistema de saúde brasileiro há muito tempo, não só entre os setores público e privado, mas também entre as diferentes regiões do país", aponta Mario Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e conselheiro do Idec. O subfinanciamento do SUS, segundo ele, aliado à destinação constante de recursos públicos ao setor privado – por meio, por exemplo, de políticas de renúncia fiscal destinadas aos usuários de planos de saúde – construiu um padrão de financiamento que concentrou recursos assistenciais nas estruturas privadas e nas regiões onde vivem os extratos mais ricos da população, que via de regra são os que possuem planos de saúde. "Em uma emergência sanitária como a atual, a estrutura disponível no setor público não é suficiente, e ele vem dando sinais de colapso", alerta o professor.
LEITOS DE UTI PARA TODOS
A internação em UTI é, hoje, uma grande preocupação. Dados sobre a quantidade de leitos disponíveis no país apontam para uma enorme diferença entre o SUS e o setor privado. Segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) existem atualmente 32.757 leitos de UTI no país, somando as redes pública e privada. Desses, apenas 14.873 estão no SUS, enquanto 17.884 pertencem à rede particular, que conta com 38 leitos de UTI para cada 100 mil habitantes. No SUS, esse número cai para nove, ou seja, quatro vezes menos.
Se levadas em conta as disparidades regionais, o cenário piora. A região Norte é a mais desassistida: são cinco leitos de UTI para cada 100 mil habitantes no SUS; enquanto na rede privada, esse número chega a 32 para cada 100 mil habitantes, seis vezes mais. No Nordeste, por sua vez, há 6,4 vezes mais leitos de UTI na rede particular do que no SUS. "Nessas regiões, a proporção de pessoas que têm planos de saúde gira em torno de 10% da população. Esse é um dado importante que aponta para a desigualdade no acesso", ressalta Leonardo Mattos, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Campanha Leitos para Todos. Lançada no início de abril, ela apresenta propostas que visam a garantir "o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde" em meio à pandemia. Entre elas, está a regulação única de todos os leitos, sejam públicos ou privados. "Defendemos que o poder público requisite os leitos privados durante a pandemia e coordene o acesso a eles a partir de critérios clínicos, epidemiológicos e regionais. Seria muito mais justo", opina Mattos. A medida foi adotada por alguns países no enfrentamento da Covid-19, como Espanha e Irlanda. No Brasil, a reivindicação vem ganhando adeptos.
Em 22 de abril, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) emitiu uma recomendação ao Ministério da Saúde e a Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde para que seja criada uma fila única de leitos no país. "Dessa forma, a prioridade no atendimento seria de qualquer doente com coronavírus, tenha plano de saúde ou não", diz o texto.
Ainda no final de março, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) pedindo que o poder público passe a regular os leitos privados de UTI. A ação foi negada pelo ministro Ricardo Lewandowski. "Mas na rejeição ele diz que o Executivo já tem todos os mecanismos legais para tomar essa decisão", destaca Mattos.
NÚMEROS
Existem atualmente 32.757 leitos de UTI no país.
- 14.873 no SUS
- 17.884 na rede particular
O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta havia prometido entregar um painel nacional de leitos hospitalares. Mas até o fechamento desta matéria não havia novas informações sobre o andamento da discussão.
Como destaca a coordenadora do Programa de Saúde do Idec, Ana Carolina Navarrete, a demora preocupa, não só pela importância da medida, mas pela sua complexidade. "Precisamos de um parâmetro para fazer as indenizações e munir gestores de instrumentos que permitam avaliar o preço justo do leito e também os honorários das equipes nas UTIs. E não há parâmetro ainda", diz.
PROTOCOLOS DESENCONTRADOS
Segundo Navarrete, o Idec tem recebido reclamações de usuários de planos de saúde que não estão conseguindo que seus planos cubram o teste para Covid-19, ainda que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tenha incluído, em março, a realização de testes com prescrição médica no rol de procedimentos obrigatórios. "Algumas operadoras vem colocando obstáculos à cobertura do exame, limitando-a, por exemplo, aos casos de internação. Embora isso esteja de acordo com o que diz o protocolo do Ministério da Saúde – de só testar profissionais de saúde e pessoas em estado grave –, não há essa indicação no rol da ANS. Essas negativas têm uma razão: a escassez de testes. O setor privado não está encontrando condições para a compra, da mesma maneira que o poder público também não está", declara a pesquisadora do Idec.
Com exceção do protocolo para testes, Navarrete considera que há pouca clareza sobre quais regras os planos de saúde e os hospitais privados devem seguir em relação à pandemia. "Numa crise sanitária, o ideal é ter diretrizes claras para o tratamento dos casos nos setores público e privado", ela avalia. "O mercado de saúde suplementar não é um sistema. Os pontos da rede não conversam, não há uma diretriz de cuidado clara nem protocolo de tratamento. No SUS isso existe", compara. Não à toa, é o SUS que, com todas as dificuldades, tem conseguido produzir informação consolidada sobre a pandemia. "Subnotificada, sim, mas que está sendo coletada e transmitida para a população diariamente. Isso nem de longe acontece na iniciativa privada", completa.
ANS SOB CRÍTICAS
A atuação do setor privado em meio à pandemia vem recebendo críticas. No início de abril, uma nota técnica produzida pelo Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde (GEPS) da USP em conjunto com o Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde (GPDES) da UFRJ chamou a atenção para o fato de que o setor de planos e seguros de saúde – que atende a 47 milhões de brasileiros e movimentou no ano passado em torno de R$ 213,5 bilhões –, tem se mostrado omisso diante dos impactos da pandemia. Recaem críticas também sobre a ANS, cujas medidas adotadas favoreceram as operadoras de planos de saúde e empresas privadas do setor, sem avançar nos esforços de coordenação entre o SUS e a re- de particular.
Em março, o Idec enviou ofício à agência reguladora solicitando informações e fazendo recomendações sobre medidas de combate à Covid-19 anunciadas pela agência. "Recomendamos que a ANS faça estudos de impacto regulatório para avaliar o efeito da pandemia sobre os custos das operadoras, para poder regular os reajustes que serão feitos no ano que vem. A preocupação é que as pessoas recebam reajustes elevados sob a justificativa da Covid-19, sem que se possa provar. Não tem transparência para as políticas de reajuste", informa Navarrete. Até o fechamento desta edição, o Instituto não havia recebido resposta da ANS.
Ainda em março, o Idec enviou um ofício cobrando informações ao então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que, na posição de presidente do Conselho de Saúde Suplementar (Consu), anunciou que os planos de saúde poderiam mobilizar 20% dos recursos do Fundo Garantidor da Saúde Suplementar em função da pandemia de Covid-19. O fundo é uma espécie de poupança das empresas para ser usada em caso de falência, evitando desassistência de pacientes e inadimplência junto aos prestadores. Essa possibilidade de liberação do fundo foi confirmada pela ANS em abril, mas mesmo assim não atraiu a atenção das operadoras, o que gerou novas críticas do Idec. "A adesão pífia de apenas nove empresas aos termos de compromisso foi uma mensagem clara: se for para atender inadimplentes durante a pandemia, as operadoras preferem ficar sem a ajuda financeira", rechaçou o Instituto em nota pública.