Medicamentos de alto custo
Medicamentos essenciais para a cura de doenças graves, como hepatite C, câncer, aids etc., custam caríssimo, dificultando o acesso da população brasileira aos tratamentos mais eficientes. Falta de concorrência é uma das razões
Oitenta e quatro mil dólares. Esse poderia ser o preço de uma boa casa no interior de São Paulo. Mas não. Era o valor cobrado pelo tratamento de 12 semanas contra a hepatite C, em 2015, quando o Sofosbuvir foi lançado. Esse é apenas um dos muitos casos de preços astronômicos que dificultam o acesso da população brasileira a remédios importantes. O médico Jorge Bermudez, chefe do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Fiocruz e um dos maiores especialistas em medicamentos do mundo, lembra dos oncológicos e dos empregados contra doenças raras. "O Zolgensma, usado no tratamento contra atrofia muscular espinhal, custa R$ 2 milhões de dólares", informa ele, acrescentando: "Os medicamentos têm de ser insumos de saúde, não mercadorias". E esse problema não é exclusivo do Brasil. Ele afeta países ricos e pobres, incluindo Estados Unidos e Reino Unido, onde o tema está em discussão. Na África do Sul, em 2002, um grupo de ativistas denunciou à autoridade de defesa da concorrência do país condutas anticompetitivas de farmacêuticas multinacionais que fabricavam alguns medicamentos contra o HIV.
O acesso a qualquer tipo de remédio é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal. Contudo, na prática não é bem assim. Os preços elevados impedem que um número enorme de pessoas passe por tratamentos essenciais para a cura de doenças. Por exemplo, o Ministério da Saúde estima que cerca de 700 mil pessoas precisem ser tratadas contra a hepatite C, mas até junho de 2019, apenas 102 mil pacientes haviam recebido tratamento com os medicamentos mais novos e eficientes, dentre eles o Sofosbuvir.
O alto custo de certos medicamentos preocupa o Idec. Tanto que o Instituto se juntou a outras organizações para denunciar ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) o preço abusivo do Sofosbuvir. Leia mais sobre a denúncia ao Cade na página 23.
"O Sofosbuvir é o principal antiviral utilizado no tratamento da hepatite C. É uma droga segura e altamente eficaz. A maior parte dos pacientes não apresenta nenhum efeito adverso a ele", observa Umbeliana Barbosa, médica infectologista do Hospital Emílio Ribas. No entanto, a acessibilidade ao tratamento da hepatite C ainda é um desafio em muitos países. Quando o Sofosbuvir foi lançado nos EUA, cada comprimido custava US$ 1 mil. Assim, ele foi reservado para os pacientes em estado mais grave. Desde então, os preços caíram consideravelmente em alguns países. Hoje, segundo o Fundo Estratégico da OPAS/OMS (Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde), o preço do tratamento, que dura três meses, é de U$ 87, ou seja, mil vezes menos.
"O alto custo de medicamentos não é sentido diretamente pelo consumidor, porque esses produtos acabam sendo conseguidos ou pelo SUS ou por meio de ação judicial", comenta Matheus Falcão, pesquisador do programa Saúde do Idec. No entanto, se os preços são absurdos, o governo – que tem um (baixo) teto de gasto anual – compra menos. "Em consequência, nem todo mundo que precisa de tratamento consegue fazê-lo", ele lamenta. A farmacêutica sanitarista Gabriela Chaves concorda: "Preços altos ameaçam o acesso a medicamentos e comprometem a universalidade garantida pelo SUS".
POR QUE TÃO CAROS?
De acordo com Francisco Viegas, assessor de Advocacy da DNDi (Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas, em português), vários fatores levam o preço dos medicamentos às alturas. Dentre eles, falta de concorrência (ou por barreiras em relação à patente ou por práticas abusivas que impedem ou atrasam a comercialização de genéricos), problemas na regulação de preços e falta de transparência em relação a quanto custa o desenvolvimento de um remédio.
Sobre a falta de transparência, Viegas diz que vários estudos apontam valores díspares para o processo de desenvolvimento de novos medicamentos. "Como uma organização que realiza P&D [pesquisa e desenvolvimento] visando ao interesse público, a DNDi é comprometida com a transparência e busca fomentar o debate ao divulgar o custo de pesquisas e desenvolvimentos", ele declara. A DNDi defendeu que a transparência é um elemento-chave para que os conhecimentos científico e tecnológico avancem.
Para Bermudez, da Fiocruz, quando o assunto é acesso a medicamentos, fica muito claro o confronto entre saúde e comércio, ou entre interesses sociais e comerciais. Frequentemente, os preços são fixados de maneira arbitrária, tornando o medicamento inacessível. Para justificar os preços muitas vezes extorsivos, a indústria farmacêutica alega que o investimento em pesquisas para o desenvolvimento de novos fármacos é alto. "Mas muitas vezes isso é uma falácia para acobertar a cobiça, o lucro desmedido e a falta de limites desse setor", opina o médico.
LICENCIAMENTO COMPULSÓRIO E GENÉRICOS
A questão da patente – concessão que garante a uma empresa a exclusividade de comercialização de um produto durante determinado período - é fundamental quando se fala em medicamentos de alto custo. O monopólio resultante da concessão de uma patente ou mesmo da expectativa das empresas de recebê-la inibem a competição no mercado, porque os concorrentes ficam receosos de serem processados.
De acordo com Chaves, o Acordo TRIPS, da Organização Mundial do Comércio, que tem como objetivo garantir a saúde pública, é fundamental para promover o acesso a medicamentos patenteados, pois garante aos países a possibilidade de incorporar na legislação medidas para enfrentar o monopólio na comercialização de remédios essenciais. "Está documentado que o governo brasileiro, ao longo dos últimos 20 anos, tem se esforçado para reduzir o preço de medicamentos patenteados, envolvendo estratégias que podem aumentar o poder de negociação com as empresas no momento da compra pública. Por exemplo, adotando valores de referência baseados em estimativas do custo de produção", diz Chaves.
Por outro lado, a introdução de genéricos no mercado faz os preços caírem e, portanto, aumenta a acessibilidade. Há 20 anos, o Brasil adotou a chamada "Lei de Genéricos" (Lei no 9.787/1999), que se tornou um importante instrumento em prol da concorrência. Os fármacos genéricos devem ser vendidos por um valor, no mínimo, 35% abaixo do produto de referência. A partir dessa Lei, também foram empreendidos esforços governamentais para fortalecer a indústria nacional de genéricos, ampliando a oferta.
O enfrentamento do monopólio de algumas empresas associado à disponibilidade de alternativas genéricas no mercado internacional, assim como a possibilidade de produzi-las localmente, foram importantes para aumentar o poder de negociação do Ministério da Saúde. "Quando o governo brasileiro emitiu a licença compulsória [suspensão temporária do direito de exclusividade garantida por uma patente, permitindo a produção, o uso, a venda ou a importação do produto patenteado por terceiros] do Efavirenz – para tratamento da aids – , em 2007, a aquisição de genéricos (por meio de importação e, posteriormente, da fabricação local) resultou numa redução de mais de 60% em relação ao preço praticado pela empresa multinacional fabricante do medicamento de referência", exemplifica a farmacêutica sanitarista.
DENUNCIA AO CADE
O Idec e mais oito organizações se uniram à Defensoria Pública da União para protocolar uma denúncia no Cade contra a empresa farmacêutica Gilead, por abusar do direito à patente do Sofosbuvir, usado no tratamento da hepatite C. A ação é inédita no Brasil, por ser a primeira sobre altos preços de medicamentos e por ter sido proposta por entidades da sociedade civil representando os consumidores brasileiros. Elas pedem ao órgão que multe a Gilead e imponha, em caráter liminar, o licenciamento compulsório do Sofosbuvir. A medida suspenderia a sua patente, possibilitando que outras empresas o produzissem e comercializassem. Com o aumento da concorrência o acesso à cura seria ampliado a centenas de milhares de pessoas que sofrem com a doença no Brasil.
A denúncia foi feita com base num estudo do Grupo Direito e Pobreza, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). O trabalho concluiu que desde o lançamento da droga no Brasil, a Gilead vem abusando sistematicamente de sua posição dominante no mercado, com consequências econômicas e sociais extremamente graves. Os pesquisadores apontaram que entre 2015 e 2018, a Gilead forneceu 99,96% do Sofosbuvir comercializado no país. Nesse período, o preço médio cobrado variou de R$ 179,41 a R$ 639,29 por comprimido, o que fez com que a empresa recebesse R$ 1,4 bilhão apenas do governo brasileiro. "Nesse período, o tratamento foi racionado por causa dos altos preços, impedindo que um enorme contingente de pessoas fosse tratado e curado. Entre 2015 e 2017 foram registrados quase seis mil óbitos por hepatite C no país", reforça a advogada Ana Carolina Navarrete, também pesquisadora do programa Saúde do Idec.
"O estudo da USP revelou que num breve período em que houve concorrência, os preços caíram. Ou seja, ficou claro que quando há outras opções no mercado, a multinacional estabelece preços mais acessíveis", constata Navarrete, concluindo: "Sabemos que a concorrência é um instrumento poderoso para a redução de preços. No caso do Sofosbuvir, o monopólio injustificado beneficiou somente a empresa".